23 de julho de 2009, Bruno Lima Rocha, escrito no Vale dos Sinos
Neste brevíssimo texto, faço o debate, de forma propositiva, de uma concepção de democracia como forma social de ampliação de direitos. Para debater este viés, o da democracia política com distribuição sócio-econômica, entendo ser necessário tanto fazer a crítica ao neoliberalismo e dos pressupostos transferidos para os estudos políticos neoinstitucionalistas, como desenvolver a modelagem teórica adequada. Com isso, espero contribuir no diálogo entre aqueles trabalhadores intelectuais que ajudam a pôr água no moinho da luta epistemológica produzida na América Latina em prol da democracia participativa e direta. Vejo a este processo como um desafio metodológico à altura dos estudos e do pensamento político pós-colonial.
Ou criamos conceitos operacionais ou seremos eternos colonizados
Esta peleia teórica passa pela criação de um conceito de processo para a radicalização democrática aplicável na acumulação de forças onde atuem organizações políticas extra-institucionais, como impulsionadoras de movimentos populares. Este método condensa-se na ação estratégica de empoderamento contínuo de sujeitos sociais organizáveis, elencando as arenas prioritárias, visando o aumento da participação direta da maioria. Para ampliar a participação necessita-se da compreensão do papel da análise estratégica e de seu respectivo planejamento, subordinando as rotinas do ativismo ao objetivo finalista.
A categoria do planejamento da atividade política está sempre em disputa. Hegemonicamente, seu sentido é escamoteado por um esforço de esvaziar de significado real esta categoria. O planejamento, em sendo estratégico, é sempre subordinado ao objetivo e não ao contrário. Não existe um tipo-ideal de planificação, porque esta categoria é acessória da categoria objetivo finalista. Para obter finalismo, é necessário ter a capacidade de impor uma ou mais agendas simultâneas. Na ausência de um planejamento próprio, o poder de agenda é imposto de cima para baixo. Para reagir a esta pressão, faz-se urgente ter no horizonte o fato consumado que as arenas institucionais da política profissional, consagradas através das relações de clientela e da cobertura da mídia corporativa.
Com a falta de uma teoria democrática que contemple o processo político de empoderamento dos sujeitos sociais organizados coletivamente na forma de movimentos populares, a agenda destes movimentos sempre será reativa e não proativa. Procedendo assim, perde o sentido uma organização política que supere o papel de intermediação-representação e se proponha a servir de motor e força estratégica deste mesmo processo. Eis a necessidade da teoria.
A proposta aqui é fomentar uma janela de crítica e possibilidades para debater, a partir do campo da politologia (também chamada no Brasil de ciência política) os pilares de uma teorização de processo de acúmulo para uma democracia radical. E, desde agora e sempre, esta premissa de proposição encarna em si mesma uma dimensão ontológica que se coloca diametralmente em contra da corrente hegemônica do pensamento político liberal-oligárquico (ainda que travestido de outros nomes) e aponta a convergência interdisciplinar com outras matrizes das ciências humanas e sociais que se coloquem a serviço dessa causa coletiva.
A hegemonia dos colonizadores retumba entre os colonizados
Embora pareça repetitivo, reitero e reforço a noção de que as ciências sociais vivem uma crise, onde especificamente, as teorias democráticas referenciadas na América Latina têm de exercer uma constante luta intelectual para ser reconhecidas por seus próprios pares latino-americanos. Isto não é novidade nas ciências humanas e sociais. Ao contrário, afirmo que a peleia de idéias e de conceitos-chave, de opção por variáveis macro-explicativas em detrimento de outras, é constitutivo tanto em nossa lida diária como nas demais matrizes históricas de qualquer forma de pensamento.
Parto do princípio da urgência da sinceridade teórica, sem ocultar nem travestir premissas. Neste campo, a dimensão ontológica implica necessariamente nas escolhas feitas. Isto é, na eleição das ferramentas de análise elencadas como válidas e no uso de um corpo conceitual que seja coerente com os pressupostos teóricos, metodológicos e o suporte ideológico dos trabalhadores intelectuais que se dedicam a montar e operar teorias. É sempre assim que funciona e quando alguém fala em neutralismo, na verdade, o que existe é premissa oculta. Não existe nenhuma forma de “neutralismo” científico nem nada por estilo. O rigor é distinto da “neutralidade”. Ser “neutro” nas ciências humanas é apenas reproduzir o senso comum dominante, sem saber ou admitir o que se está fazendo.
Estas características não contêm nenhuma contradição ou conflito inerente. Ao partir do princípio que não existe neutralidade científica nos saberes das humanidades, admitimos que a precisão analítica não é correlata de uma pretensa neutralidade. Qualquer argumento neste sentido termina implicando em suposto cientificismo, o que, em tese aqui desmentida, universaliza(ria) um ou mais pressupostos particulares. Na correlação de forças do universo acadêmico dos países centrais e sua relação desigual com o campo intelectual da América Latina, ocorre justamente o inverso.
A crise de paradigmas é da “democracia” que vive em crise
Assumo como ponto de partida a condição de crise de paradigmas e funções nas ciências sociais contemporâneas em geral e das teorias democráticas meramente procedimentais e ritualísticas em particular. Infelizmente, e não há nenhuma novidade nisso, e segue valendo a lógica dos assimilados. Não há ninguém que conheça melhor a literatura dos países centrais que o leitor colonial. Assim, as categorias que se apresentam como “novas”, justo por visarem radicalizar a democracia, aprofundando os critérios de participação, ativismo, protagonismo popular, ação coletiva e gestão direta dos recursos públicos, e vista pela hegemonia do campo como algo “raro”.
O exemplo mais absurdo se dá no debate dos “clássicos” da política do Ocidente, quando se estuda o Federalismo. Ao mesmo tempo em que se apresenta como modelo federalista o arcabouço oligárquico da Revolução Escravocrata das 13 colônias inglesas, se nega rotundamente o Federalismo Histórico e Revolucionário da Gesta Artiguista cujo projeto político concreto foi a Liga Federal dos Povos Livres.
Ao não buscar novos parâmetros, e por se negar a reconhecer em sua própria matriz histórico-estrutural as saídas para as crises da sociedade onde se insere e extrai sua produção intelectual, o cientista social da colônia fica no papel de tradutor de conceitos e apresentador de teorias normativas e inaplicáveis. Ou seja, este tipo de trabalhador hiper especializado não pode nem buscar soluções para esta “democracia” liberal conservadora porque seu trabalho termina por legitimar o sistema de carreiras políticas profissionais e de partido de intermediação. No final das contas, não pode este cientista social (como um todo) e político (em específico) ser parte da solução das maiorias porque pertence ideologicamente a minoria que é causadora destes mesmos problemas.
Este exemplo vale tanto na luta contra a não-história (a pós-modernidade), como nos embates entre a democracia participativa e as matrizes de pensamento liberal-conservador e sua democracia de poucos para quase ninguém. Conclui-se que para superar esta hegemonia que gravita em nosso campo é preciso um esforço analítico, teórico-epistemológico, com premissas explícitas e a dimensão ontológica sendo demonstrada desde o princípio da própria formulação. A resultante deste esforço, mais do que uma “análise política da América Latina” é a afirmação de uma escola de análise política latino-americana, buscando ultrapassar a democracia de tipo liberal e indo ao encontro da dimensão substantiva e participativa da mesma.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos (IHU)