Por Bruno Lima Rocha – 23/12/2015
“Somos um Continente total ou parcialmente dominado por uma herança colonial maldita através do criollismo das famílias europeias dos vice-reinados, cujo exemplo mais radical é o brasileiro, onde o que resta de elite quatrocentona segue tendo pouca ou nenhuma identificação com nosso próprio povo, fazendo a permanente opção pelo eixo eurocêntrico e especificamente anglo-saxão do mundo contemporâneo. No Brasil, isto ganha a forma de complexo de vira-latas e entreguismo inveterado”, escreve Bruno Lima Rocha.
Eis o artigo
Nos últimos seis meses, a América Latina vem sofrendo com uma nova guinada à direita, orientada para os desígnios do pós-Consenso de Washington e, ideologicamente, voltada para o eixo de domínio financeiro entre Nova York e Londres. O eterno contraponto em nosso continente se dá em dois contrapontos visíveis, sendo que neste texto faço o aporte de um terceiro, com identidade coletiva e as opções daí derivadas.
O primeiro contraponto que temos aqui deriva do fato de sermos total ou parcialmente dominados por uma herança colonial maldita através do criollismo das famílias europeias dos vice-reinados, cujo exemplo mais radical é o brasileiro, onde o que resta de elite quatrocentrona segue tendo pouca ou nenhuma identificação com nosso próprio povo, fazendo a permanente opção pelo eixo eurocêntrico e especificamente anglo-saxão do mundo contemporâneo. Nota-se tal modelo nas manifestações mais à direita, mesmo as de corte liberal (liberal-democrata), e na formação de frações de classe dominante que não hesitam em liquidar patrimônio, recusando-se em ser classe dominante de países emergentes ou com vocação para potência média (como é o caso brasileiro).
O segundo contraponto é mais reivindicável, embora tenha esgotado seu ciclo e, em termos de estratégia econômica e teoria do desenvolvimento, venha tendo voos de galinha e maximizando ainda a herança colonial. Refiro-me, obviamente, a chamada virada democrática iniciada com a eleição de Hugo Chávez para a Presidência da Venezuela (em dezembro de 1998) e cujo fim de ciclo percebe-se no país hoje governado por Nicolás Maduro, assim como na eleição de um menemista para a Casa Rosada na Argentina (Mauricio Macri) e a crise política brasileira que não termina. Brasil (através do pacto lulista), Argentina (com a linha Kirchner e a reconfiguração de um peronismo “nacionalista”), Paraguai (que sofrera golpe branco), Venezuela (chavista e pouco bolivariana), Honduras (também passando por um golpe branco), Chile (cuja adesão ao modelo foi sempre parcial), Nicarágua (com a eleição de Ortega e o alinhamento chinês e russo), El Salvador (com a FMLN transformada em tímido partido social-democrata), Uruguai (com a Frente Ampla flertando assinar Tratado de Livre Comércio com os EUA), Peru (com o falso alvaradismo de Ollanta Humala), além de Bolívia (com Evo) e Equador (com Correa) aplicando reformas constitucionais para a reedição permanente de mandatos, são a prova viva de que nossos países não completaram sequer uma institucionalização republicana inclusiva, que dirá poder exercer em grande medida uma política soberana de seus próprios recursos estratégicos, a começar por minérios e recursos hídricos.
Insisto neste segundo contraponto, pois aí se dá a ilusão do exercício do Poder Executivo e a necessidade de conformar uma elite dirigente com passado no campo nacional-popular e desejando servir a uma classe dominante com vocação latino-americanista. Tal setor de classe não existe e, seguindo a conta da geopolitik como reflexo internacional da real politik e das variáveis do realismo, terminamos por aderir de forma total ou parcial aos seguintes equívocos: políticas de curto prazo reforçando exploração hidromineral; alinhamento com o eixo dos BRICS (o que em termos globais é correto), mas sem uma projeção distinta além da promoção das Transnacionais (TNCs) brasileiras em novas fronteiras econômicas (como na África); falta de concertação estratégica para diminuir a dependência financeira e também político-jurídica junto ao capital parasitário a corroer a maior parte dos recursos de nossos países (vide o caso na nova inflexão de Guido Mantega à frente da pasta da Fazenda no primeiro governo Dilma e o orçamento limitado diante dos gastos com o espólio rentista).
Se somarmos estas escolhas do Poder Executivo comandado por militantes de ex-esquerda (ao menos assim o eram no período da Bi-polaridade ou na democratização), mais ao posicionamento da direita ideológica da América Latina, perceberemos que o desafio de um capitalismo periférico em nossos países é justamente a necessidade de planejamento estratégico e concertação entre elites dirigentes, tecnocracia e setores de classe dominante dispostos a confrontar suas matrizes político-ideológico-jurídicas do “ocidente” capitalista. É justo neste quesito que as teorias do desenvolvimento, em maior ou menor grau, se deparam com o dilema da dependência e sua limitação do posicionamento do andar de cima da pirâmide social e a presença de grupos de TNCs não latino-americanas aprofundando a interdependência e a perda de poder de tomada de decisão por parte dos governos de turno. Ou seja, saídas estruturais implicam em posicionamentos pós-coloniais e não em reedições de inserção periférica no capitalismo do século XXI.
Assim, a dimensão do terceiro contraponto é a ausência do que vamos afirmar aqui. A única possibilidade de avançarmos para uma segunda independência é conquistar mais espaços de participação política e a ampliação de experimentalismos institucionais para radicalizar nossas democracias, ultrapassando o formalismo e o arranjo entre poderes republicanos já estabelecidos. Assim, o que afirmei acima como segundo contraponto não coaduna com a capacidade de realização. Por exemplo, na Bolívia, a constituição pós-Evo prevê formas comunais de Justiça, mas toda esta realização depende necessariamente da permanência do MAS e do próprio Morales no centro do poder político. Obviamente, se a longevidade das instituições leva ao seu aprimoramento, o mesmo vale também para a institucionalidade que nasce do poder do povo, em especial se esta tem raízes na resistência latino-americana anticolonial. O exemplo dado acima pode ser universalizado dentro do desafio de proteger territórios e criar outras formas de vida, de modo a ter na base de nossas sociedades, poderosas organizações populares com poder de veto sobre o sistema jurídico e político, criando uma correlação de forças distinta da atual, onde a legitimidade anda distante da legalidade, a começar pelo modelo de democracia de representação e partidos de tipo burguês, com intermediários profissionais e carreiras políticas longevas.
Superadas as ilusões do capitalismo periférico e do pacto de classes como alternativa a nossas sociedades latino-americanas, é possível antever que durante o caos da nova restauração burguesa e neoliberal (a exemplo dos anos ’90), tenhamos o emergir de vigorosos movimentos populares de perfil latino-americano e anticolonial.
Publicação original na versão digital e impressa para a Coluna Crítica Internacional da Revista do IHU – No. 479 – ano XV – 21/12/2015