Fabiano Bringel – 24 de fevereiro de 2016

Um dos sintomas de esgotamento da extração das Drogas do Sertão e do Projeto Pombalino, políticas criadas por Marquês de Pombal para a Amazônia, foi à eclosão da Cabanagem (1835-1840). Os “deserdados”, na sua essência índios e negros, levantaram-se e instauraram a maior “revolta regional” do Brasil. Durante cinco anos e três governos cabanos aconteceu uma experiência real de poder popular na parte setentrional do país. No dia 07 de janeiro de 1835, data do levante, os Cabanos decretaram independência do Brasil com o assassinato dos principais dirigentes da Província, representantes do poder central, e de inúmeros portugueses que controlavam e concentravam as riquezas.

Domingos Antonio Raiol, o Barão de Guajará, uma das “vítimas” da violência (seu pai foi assassinado pelos Cabanos na Vila de Vigia) e da expropriação (várias de suas propriedades foram socializadas pelos revolucionários) é uma das referências para quem quer estudar minuciosamente o movimento. Em seu clássico Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos políticos da Província do Pará desde o Ano de 1821 até 1835[1] descreve os principais elementos que envolveram o episódio. Não esquecendo o lugar de tal descrição já que o Barão era uma das principais lideranças da classe dominante. Raiol caracteriza assim o evento

A anarquia reinava desde o princípio do ano, e o movimento descido à última escala social. Dominavam os turbulentos, os analfabetos, os homens sem conceito, para quem era indiferente a perturbação da ordem pública. Sem terem que perder, êsses indivíduos estavam dispostas a entrar em qualquer aventura que se lhes deparasse. Os motins eram-lhes jogos de azar, nos quais poderia ser-lhes favorável a sorte. […] como aos referidos desordeiros, que viviam ociosos, fora de seus domicílios, sem amor ao trabalho, exaustos de recursos e sem habilitações. (RAIOL, 1970:805)

A Cabanagem se escalona regionalmente chegando à parte do Maranhão e penetrando no atual Estado do Amazonas. Ganhou a cidade de Manaus no dia 06 de março de 1836 e subiu o Alto Amazonas. Essa “campanha” liderada por Apolinário Maparajuba mobilizou uma tropa de duas mil pessoas. Podemos, então, falar tranquilamente que o movimento cabano ganha ares de guerra de libertação nacional. Talvez a maior que o Brasil já viu. Segundo o Coronel Gustavo Moraes Rego, em seu clássico estudo sobre os aspectos militares da Cabanagem, o movimento se distinguia pela ‘efetiva e dominante participação das massas; a ascensão de líderes dos mais baixos estratos da sociedade; a violência sem freios da rebelião e a escala que a insurreição conseguiu, tomando o poder e mantendo-o por um tempo considerável’.

Apesar de todos os elementos que localizam a cabanagem como um dos movimentos com maior protagonismo popular no Brasil pesam algumas reflexões que seus objetivos não constituíram um projeto revolucionário de sociedade. Que os cabanos jamais apresentaram um projeto político, um modelo de sociedade ou um programa de reformas sociais. Embora, agissem com extrema violência e seus líderes proclamassem violentos discursos contra os ricos e os portugueses, em nenhum momento os cabanos trataram formalmente abolir a escravidão. Respondemos que realmente não existe nenhum registro de um programa ou de um projeto formal de mudanças para que pudéssemos chamar a Cabanagem de “revolucionária”. Suas principais lideranças eram, na sua maioria, gente oriunda das classes populares e, quando se trata de Amazônia, pessoas com origem negra e indígena. Além disso, havia uma heterogeneidade de aspirações em seu meio. Desde o escravo negro buscando livrar-se dos grilhões que o aprisionava até o branco empobrecido que lutava contra a exploração excessiva dos comerciantes portugueses.

Vale ainda ressaltar que o principal veículo de enunciação não eram livros ou panfletos com grafias especificas e especializadas como se fazia na Europa “revolucionária” do XIX. Seguindo a tradição de resistência dos povos autóctones, os cabanos tinham na oralidade sua principal fonte de propagação e difusão de ideais. Talvez aí resida sua força e, ao mesmo tempo, sua fragilidade. Força, porque não se encontravam em nenhum alfarrábio suas táticas, estratégias e princípios dificultando a ação da repressão. E debilidade, porque, para os “homens” da grafia, da ciência e da racionalidade o movimento cabano continua sendo desclassificado como um movimento espontaneísta que “não tinha um programa revolucionário” de mudanças.

Apresentamos aqui essa pequena reflexão sobre a Cabanagem para situar um marco de transformação no cenário espaço-temporal da região. A passagem do vetor econômico marcado pelas Drogas do Sertão para um novo vetor, o da Borracha. Dessa vez, com a instalação de um capital mercantil burguês.

Tal passagem para uma fase “áurea” da Amazônia com o “boom” da borracha se deu mediante os escombros da Cabanagem e o período de um intenso processo de perseguição e repressão aos sobreviventes da insurreição. Para ilustrar, afirmamos aqui que a repressão na Cabanagem custou à vida de mais de trinta mil pessoas, aproximadamente um quinto da população da região na época.

A reorganização da sociedade amazônica mais uma vez se deu a partir de violenta militarização sob o comando do Estado. Esse fenômeno que sempre esteve presente na história da Amazônia, dessa vez, foi protagonizado por Francisco José de Souza Soares d’Andrea, Presidente e Comandante de Armas da Província do Pará, em 1838, nos últimos suspiros da revolução. Suas preocupações centrais foram à repressão e a reorganização da ordem pública com o princípio orientador da negação do absenteísmo.

Tal perspectiva objetivava a reorganização do trabalho sob o controle do Estado procurando a eliminação do “ócio” e fazendo recrutamento compulsório de mão de obra não-branca para a reconstrução da infraestrutura e para serviços de particulares ligados ao status quo da época. O mecanismo encontrado para isso foi o Corpo de Trabalhadores. Essa instituição foi um instrumento de coerção ao trabalho de “índios, mestiços e pretos não escravos” e sem propriedades ou ocupações reconhecidas como constantes. Instituídos no contexto da repressão ao movimento cabano.

Essa “disciplinarização” da força de trabalho foi à marca da transição para fase gomífera. Em 1849, um pouco menos de dez anos depois da derrota da Cabanagem, existiam nove Corpos de Trabalhadores mantidos pela Província do Pará, com um efetivo de 7.626 indivíduos relativamente desorganizados pela falta de novos alistamentos e pelo pequeno número de alistados. É no interior desse efetivo que vão ser encontrados os primeiros trabalhadores convertidos em seringueiros para trabalhar e, assim, dinamizar o novo vetor econômico para região.

Para Amazônia isso significou novos ares de uma relativa modernização capitalista. Os grandes investimentos, antes empregados no comércio de escravos, são reconduzidos e investidos em atividades agora mais rendosas como bancos, empresas de navegação, indústrias e companhias de comércio. Os ares de modernização do território rebatem no espaço amazônico a partir dos seguintes elementos: i) fragmentação territorial. Temos a instalação efetiva da Província do Amazonas em 1852 redesenhando a correlação de forças entre a elite local articulada com a internacional; ii) introdução da navegação à vapor. Novo sistema técnico de transporte introduzido nos rios da Amazônia através da Companhia de Navegação do Barão de Mauá; iii) isso possibilitou maior circulação, além das mercadorias, notavelmente a borracha, de pessoas e informação. Novas ideias começaram a circular embaladas pelos novos imigrantes sejam eles europeus ou mesmo de mascates de origem hebraica e árabe que começaram a explorar os comércios nos regatões[2] e, por fim, na estrutura fundiária que através da Lei de Terras dá acesso à terra e, logo, aos seringais, a um subestrato importante da elite.

Se morreu a Cabanagem. Viva a Cabanagem. No seu aniversário de 181 anos que fique o seu legado de luta e organização. Pois, como fala parte do hino da corrente social libertária Resistência Popular “Tremam os covardes por nosso amor. À liberdade, bravo valor. Vinguemos o sangue derramado, varrendo da terra o opressor. Viva os que preferem a morte à vergonha da retirada. Viva a Amazônia, livre e em luta. Morram os tiranos. Viva a Cabanagem!”.

 

[1]RAIOL, Domingos Antonio Raiol. Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos políticos da Província do Pará desde o Ano de 1821 até 183. Belém: EDUFPA, 1970. A edição original é datada de 1890. Na edição da editora da UFPA são três volumes e cinco tomos ao todo.

 

[2]Embarcações cheias de mercadorias que eram oferecidas nos mais distantes rincões da Amazônia para populações que não tinham acesso ao comércio nas cidades.

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