Novamente, é possível constatar a acuidade e a atualidade da teoria do Estado de Bakunin.[1] Nesta conjuntura, ela pode ser utilizada, dentre outras coisas, para subsidiar análises críticas à corrupção e apontar saídas aos dilemas surgidos em relação ao Estado brasileiro.
Segundo sustenta Bakunin, o Estado, este instrumento das classes dominantes, funciona sob uma determinada lógica, inscreve historicamente determinadas regras em sua estrutura, em relação às quais a ação humana possui severos limites. É essa capacidade estrutural que possui condições de criar uma das classes dominantes, a burocracia, que, em geral, concerta-se com outras para oprimir e explorar os trabalhadores e adapta-se às regras forjadas institucionalmente muito mais do que as modifica. Para o revolucionário russo, não se trata de sustentar um estruturalismo determinista, mas de assumir que, nas relações sociais que se dão na institucionalidade do Estado, a probabilidade de sua estrutura, de sua lógica e do sistema historicamente forjado determinarem a ação da burocracia é imensamente maior do que os movimentos em sentido contrário.
Em “Estatismo e Anarquia” (1873), Bakunin explica, ao contrapor a ideia de Estado operário, segundo ele defendido pelo marxismo[2]: “Sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e colocar-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado, não mais representarão o povo, mas a si mesmos e a suas pretensões a governá-lo.”
Desse modo, mesmo que um trabalhador bem intencionado eleja-se ou tome com outros o Estado, na medida em que se tornar um governante será convertido, pela força das coisas, num burocrata e, assim, num inimigo de classe dos trabalhadores. Analisando a história global – nela incluída exemplos como as trajetórias do Partido dos Trabalhadores no Brasil e o Partido Verde na Alemanha, duas experiências oriundas do movimento popular de seus respectivos países –, essa predição de Bakunin mostra toda sua força.
Tomando em conta os acontecimentos recentes no Brasil, especialmente aqueles vinculados à corrupção de Estado, e tentando fazer um exercício de aplicação da mencionada teoria bakuniniana à nossa realidade, alguns apontamentos muito breves podem ser feitos.
Grande parte da crítica à corrupção atual vem tendo por base o argumento de que indivíduos, grupos e/ou partidos incorreram numa falta moral, apropriando-se indevidamente de recursos públicos e privados. Quando a crítica é colocada nesses termos, tende-se a supor, como parte significativa das pessoas tem feito, que se essas pessoas, grupos e/ou partidos forem substituídos por outros, com maior virtude moral, a questão da corrupção pode ser resolvida.
Nada mais equivocado. Tanto esta crítica como a solução que dela deriva são completamente falaciosas e sustentá-las indica ingenuidade ou certo realismo maquiaveliano. Este último, amplamente ensinado nas instituições que formam a burocracia brasileira e extensamente aceito e praticado pelos políticos em geral, preconiza, dentre outras coisas, atuar de acordo com as regras da política e justificar-se de acordo com os pressupostos da ética vigente. Ou seja, em bom português, fazer uma coisa e dizer que faz outra. As recentes surpresas e indignações da burocracia em relação às denúncias de corrupção são o maior exemplo disso.
Qualquer um mais informado sabe de algo que já é completamente notório – e os recentes acontecimentos confirmam isso para quem ainda não sabia – que, no Brasil, a corrupção é elemento constituinte do Estado; faz parte das regras do jogo, da lógica deste Estado. E não surpreende que, mesmo sendo a corrupção uma exigência para se operar com eficácia neste Estado, quando ela é exposta ao público, os políticos em geral finjam surpresa e indignação.
Nesse sentido, é imprescindível que a corrupção não seja discutida na mencionada chave moral, mas como ela realmente se apresenta: um elemento de caráter estrutural e sistêmico do Estado. Essa outra chave permite compreender que a corrupção não depende da boa ou má vontade, da boa ou má intenção dos burocratas. Ela possui condições muito mais propícias para corromper do que para ser modificada ou combatida.
Tendo-se tornado historicamente um pilar do sistema de Estado brasileiro, a corrupção não se solucionará com a substituição das peças do jogo político. Substituir os moralmente “maus” pelos “bons”, realizar impeachment e/ou novas eleições etc. não fará mais do que dar continuidade ao que agora se apresenta. Nesse momento, o que urge é o questionamento e o enfrentamento direto e profundo das regras desse jogo e do modus operandi do tabuleiro em que ele está sendo jogado.
No campo das reformas, as soluções só podem vir por meio das mudanças que envolvam as estruturas e regras políticas institucionais. No campo revolucionário, elas passam, necessariamente, por uma reflexão aprofundada acerca do papel do Estado na sociedade. Em ambos os casos, a burocracia não pode ser aliada, em função de seus próprios interesses, que tendem à continuidade do statu-quo.
Também em um e outro caso, a ferramenta mais eficaz de transformação não se encontram dentro, mas fora do Estado. São os organismos de poder popular, ou seja, associações de trabalhadores, vizinhos, estudantes; movimentos populares que, na base da pressão e separados da burocracia, estão em condições reais de impor suas reivindicações.
Deve-se lembrar, com base em qualquer teoria séria da estratégia, que a forma dessas organizações e lutas – ou seja, seus meios – determinará necessariamente seus fins. Aquilo que se aspira para uma futura sociedade deve nortear o modelo organizativo desses movimentos. Partindo de uma perspectiva libertária e igualitária, emergem como mandatórios princípios como a unidade e a independência de classe – e, assim, o combate à burocratização, à dominação político-partidária, patronal, religiosa etc. –, a organização pela base, a articulação e a delegação por meio do federalismo, a devida vinculação entre reivindicações imediatas e um programa político mais abrangente para o futuro.
Nem deveria ser necessário mencionar que “combater a corrupção” e fazer o combate ao Estado exige, necessariamente, que se abandonem muitas das práticas vigentes em sindicatos e outros movimentos burocratizados.
Notas:
- Alguns dos traços fundamentais da teoria bakuniniana do Estado podem ser conhecidos no meu artigo “A Lógica do Estado em Bakunin” [https://ithanarquista.wordpress.com/2014/05/23/felipe-correa-a-logica-do-estado-em-bakunin/]. Para um aprofundamento, recomendo meu livro Teoria Bakuniniana do Estado (Intermezzo/Imaginário, 2014).
- Essa posição que Bakunin atribui aos “marxistas” refere-se, na realidade, à noção de “Estado popular” de Lassale, a qual, naquele momento, ao menos publicamente, era confundida com as posições de Marx e a social-democracia alemã em geral.
São Paulo, março de 2016