Sangue Azul, o livro de Leonardo Gudel e editado pela Geração está bem longe de ser uma obra ficcional. Nele poderiam estar presentes personagens como Zacarias Gonçalves Rosa Neto, o Zaca, ex-PM, ex-líder do narcotráfico no Morro Dona Marte e um emblemático exemplo da fusão de parte do aparelho policial carioca e fluminense com os inimigos que eles supostamente deveriam combater  - Foto:Geração Editorial
Sangue Azul, o livro de Leonardo Gudel e editado pela Geração está bem longe de ser uma obra ficcional. Nele poderiam estar presentes personagens como Zacarias Gonçalves Rosa Neto, o Zaca, ex-PM, ex-líder do narcotráfico no Morro Dona Marte e um emblemático exemplo da fusão de parte do aparelho policial carioca e fluminense com os inimigos que eles supostamente deveriam combater
Foto:Geração Editorial

26 de agosto de 2010, Bruno Lima Rocha

A noção de realidade tem relação com a experiência. A hiper-realidade é tributária da fabricação de bens simbólicos e projeções distintas do cotidiano vivido e das relações de força que estruturam a vida das maiorias. Quando algo ocorre de forma sistemática e faz parte do cotidiano de um terço dos moradores da segunda maior cidade do Brasil, isto não é inusitado, mas rotina. Assim, desde um ponto de vista de reconhecimento da plenitude dos direitos dos cidadãos residentes nas comunidades carentes chamadas de favelas, é diária a convivência com pessoas armadas, substituindo ou rivalizando com o monopólio da força estatal. Segundo toda e qualquer noção oficial de soberania, cabe ao Estado o uso de força letal, preventiva ou reativa. Caberia aos três níveis de governo prover o conjunto de direitos de toda a população, dentre eles a segurança física e patrimonial. Ao mesmo tempo, sabe-se que o controle parcial ou total de territórios, por parte de quadrilhas medianamente estruturadas, implica em governar de forma paralela ou complementar.

Tudo o que narrei acima não chega nem a 10% das caracterizações de direitos e deveres do Estado – e as lacunas – para com seus cidadãos. A solução empregada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio foi tornar permanente a presença física de polícia ostensiva nas áreas de encostas com ocupação fundiária irregular (as favelas). O que até bem pouco atrás era denominado de “invasão ou ocupação permanente”, hoje atende pela sigla de Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Ao mesmo tempo em que se reconhecem as UPPs como reais e não apenas episódicas, por outro, esta medida é recente e paliativa. Para aqueles que julgam ser exagero meu, basta comparação com a intensidade de policiamento na própria Zona Sul e áreas litorâneas valorizadas da Zona Oeste (como a Barra da Tijuca e Recreio). Não estou aqui defendendo a ampliação desta política, mas apenas constato que se fosse prioritário o policiamento ostensivo das áreas de favela, deveria haver um deslocamento de contingente do asfalto para o morro. E isso está longe de acontecer.

Estamos todos acostumados a naturalizar a ausência de um direito e fazer da falha virtude. Na manhã do último sábado dia 21 de agosto, o bairro de São Conrado se deparara com uma situação de guerra urbana. Como é sabido, um comboio de veículos motorizados (vans e motos) totalizando cerca de 40 homens armados, foi interceptado por barreira policial de rotina. A reação imediata de uma parte do “bonde” foi invadir o conhecido Hotel Intercontinental, fazendo hóspedes e funcionários de reféns. A pronta resposta do Estado foi defender estas vidas, rendendo e após executando a prisão dos seqüestradores dentro da lei, de forma pública e sem execuções sumárias. Qualquer pessoa que tenha morado no Rio e transitado por comunidades de favelas sabe que o normal é justamente o oposto. Até nos acostumamos com as falas secas de âncoras de telejornais, comentando, num pé de reportagem que “fontes da polícia afirmam que os nove mortos na operação desta tarde no Morro X eram traficantes”.

O cinismo oficial e oficioso (através da mídia grande) é aliado dos mecanismos de sobrevivência cotidiana. A circulação de bondes é norma das guerras de redes de quadrilhas, apelidadas de “comandos”, e com difusão pública desde o conflito pelo morro Dona Marta em 1987. Na ocasião, os bandos de Zaca e Cabeludo se enfrentaram a luz do dia, diante das câmeras de TV e, desde a parte debaixo do morro, distando poucos metros do 2º Batalhão de Polícia Militar. Esta foi a grande estréia midiática da então “nova” realidade. De lá para cá nada mudou, só aumentou de intensidade.

Os freqüentes tiroteios, tendo o fuzil como arma-base tanto por policiais como por traficantes, também são corriqueiros, co-existindo na Cidade Maravilhosa há duas décadas e meia. Rigorosamente, desde a segunda metade dos anos ’80 do século XX que o Rio é palco de um domínio territorial associado com o uso exclusivo das forças armadas para assegurar o controle da distribuição de drogas no atacado e varejo. E, conforme a literatura especializada vem relatando, tal co-existência seria impossível sem a contaminação de partes significativas do aparelho policial fluminense.

Infelizmente, nada do que ocorrera no sábado, 21 de agosto é “novidade”. O inusitado é que o drama se passou no asfalto e não no alto de morros, longe das câmaras de TV e da difusão midiática posterior.

Para buscar alguma conclusão e perspectiva

A constatação de sábado 21 de agosto é que a PM foi eficiente no combate. Se teve eficiência na operação repressora, é porque todos foram ou são ineficientes ou negligentes ou associados com as organizações criminosas dominantes das rotas de abastecimento do Rio e Grande Rio. Ou seja, aplaude-se a ação correta como virtude, quando a mesma é obrigação do Estado e retrata a falha preventiva deste. A ponta do fuzil é a ponta do problema.

Repito, em tese, nosso contrato social teria o conjunto do ente estatal na obrigação de prover direitos e deveres iguais perante a sua própria legalidade. Assim, seria obrigação do Estado prover tudo o que consta na Carta Constitucional, sem distinção de classe social, gênero, nível de escolaridade, credo religioso, posição a ocupar nas engrenagens de governo ou empresa, assim como nenhuma outra forma de discriminação. Bem, como se sabe, essas premissas do Estado democrático de direito estão mais próximas de um recurso discursivo para alimentar um sistema de crenças em alguma espécie de sociedade capitalista justa e sadia do que necessariamente como uma base de estatutos para a convivência coletiva.

É preciso compreender a radicalidade destes discursos de legitimação para um país carente, com líderes personalistas e carismáticos e preparando-se para ser vitrine do mundo na Copa de 2014 e nas Olimpíadas de 2016. O Rio de Janeiro, cenário da atuação das redes de quadrilhas a co-controlar uma parcela de território urbano e metropolitano, já tem como de costume organizar e ser anfitrião de grandes eventos, como a Eco 92 (Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, organizada pela ONU) e o Panamericano de 2007, verdadeiro balão de ensaio para os Jogos Olímpicos. O que costuma ocorrer no Rio é um aumento do índice repressivo, um zoneamento por cores (variável de intensidade de controle e nível de risco físico para os visitantes) e o bom andamento dos eventos. Depois, tudo volta rotineiramente ao normal, a norma da guerra urbana, onde o Estado tem como complemento oficioso os para-militares que tristemente se alcunham de “milícias” (para desespero da tradição de esquerda insurgente) e o aparelho policial é endemicamente atravessado por suspeitas de corrupção e uso privado dos recursos estatais para prover justamente, segurança física e defesa patrimonial.

O sábado 21 de agosto teve como marca a difusão pública de algo que ocorre sistematicamente e não ganha divulgação. É difícil para um cidadão comum e corrente, desambientado com a pressão das redes de quadrilhas e as “invasões” policiais a constatação de que o direito de todos não está assegurado. E, indo além, que o aparato de segurança “pública” não é da res publica e sim de alguns poucos. Pena mesmo é ver tanta energia que vem debaixo desperdiçada numa versão de capitalismo selvagem e sem saída. Acreditem, o tiroteio no asfalto é o efeito colateral da desgraça sistemática das áreas hoje ocupadas pelas UPPs.

Este artigo teve foi originalmente publicado (em sua primeira parte) no blog de Ricardo Noblat

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