14 de fevereiro de 2012, de São Paulo, Felipe Corrêa
“Para uma Teoria Libertária do Poder” é uma série de resenhas elaboradas sobre artigos ou livros de autores do campo libertário que discutem o poder. Seu objetivo é apresentar uma leitura contemporânea de autores que vêm tratando o tema em questão e trazer elementos para a elaboração de uma teoria libertária do poder, que poderá contribuir na elaboração de um método de análise da realidade e de estratégias de bases libertárias, a serem utilizadas por indivíduos e organizações.
Neste quinto artigo da série, utilizarei para discussão o livro, de Fábio López López, Poder e Domínio: uma visão anarquista, publicado em 2001, como resultado de reflexões militantes ligadas ao contexto de desenvolvimento do anarquismo de matriz especifista que, naquele momento, desenvolvia-se no Rio de Janeiro, assim como no resto do país. É relevante mencionar que o livro, como colocado pelo próprio autor, é feito por um militante voltado para a militância e, portanto, não tem a intenção de ser um trabalho acadêmico. O que não impede ele de trazer diversos elementos conceituais e argumentações relevantes, que podem contribuir significativamente para o objetivo desta série. Como nos outros artigos, seguem apresentadas, também esquematicamente, as principais contribuições do autor.
DOMÍNIO
O conceito de domínio
Para López, poder e domínio são fenômenos sociais distintos e, por isso, têm definições distintas e devem ser chamados de maneira diferente.
* Domínio/dominação: “Domínio (ou dominação) é dispor da força social de outrem (do dominado), e, conseqüentemente, de seu tempo, para realizar seus objetivos (do dominador) – que não são os objetivos do agente subjugado.”[p. 83]
Definem-se, assim, alguns elementos fundamentais: o dominador dispõe da força social do dominado (conseqüentemente de seu tempo); é dominado aquele que realiza os objetivos do dominador que são distintos dos seus. Há, portanto, diferenças significativas entre poder e domínio: “No domínio encontramos exatamente os mesmos elementos, mas a diferença entre ambos é que, na relação de poder, o objeto controlado pelo poderoso é distinto do subjugado. Já na relação de domínio, o objeto controlado é a própria força social do subjugado. Na relação de domínio, a força social do subjugado não é mais comandada pelo próprio, mas por seu dominador. Sendo assim, o domínio é um fenômeno socialmente distinto do poder, pois contém em seu bojo a alienação do agente dominado – no poder não há alienação, mas subjugação e resistência.” [p. 84]
Para López, o domínio é um tipo de poder e, por isso, possui as características definidas pelo conceito e pela dinâmica do poder; entretanto, há diferenças que são fundamentais. Nas relações de poder há poderosos, subjugados e resistência; a peculiaridade das relações de dominação é que elas constituem relações de poder em que há comando, controle da força social do subjugado e sua alienação.
* Comando: “o comando é dado pelo dominador para que o dominado execute determinada tarefa através de sua força social alienada”.[p. 88]
* Alienação: “‘desenvolve-se quando os agentes sociais particulares não conseguem discernir e reconhecer nas formas sociais o conteúdo e o efeito da sua ação e intervenção’”.[p. 93]
No domínio, os agentes subjugados não controlam sua força social; não comandam suas ações e sua vontade, na prática, não possui relevância. O controle da força subjugada, da vontade dos agentes subjugados e o comando de suas ações são realizados pelos agentes poderosos. “O que talvez exemplifique melhor esta relação (alienação-dominação) seja o fato de o dominado estar alienado de seu próprio tempo de vida realizando atividades de interesse de terceiros”.[p. 95] Aquele que é submetido a uma relação de dominação não é simplesmente subjugado, mas dominado; “para estar dominado não basta a um agente deixar de se opor ao poder; o dominado de alguma forma consente e, na prática, colabora com o dominador – independente do que pense ou de sua vontade”.[p. 86] Essa afirmação enfatiza a questão da legitimidade como um fundamento importante das relações de poder em geral, e das de dominação em particular. Independente de fundamentar-se na ameaça, na utilização da força ou na legitimidade, o ponto em questão é que o dominado utiliza “sua força social para a realização dos objetivos do dominador”.[p. 87]
“O domínio/alienação traz o duplo empobrecimento ao mundo do dominado/alienado: 1.) A vida do dominado fica mais pobre à medida que dedica seu tempo (patrimônio irrecuperável) à realização das vontades alheias. 2.) Quanto mais coisas forem criadas através da força social do dominado, e que serão apropriadas ao comando do dominador, mais fraco e pobre relativamente fica o dominado.”[p. 93] Vê-se que as conseqüências do domínio para o agente dominado são significativas: a alienação do tempo para a realização de vontades alheias e o enfraquecimento e empobrecimento do agente dominado em relação ao dominador. Tal processo não se limita à esfera econômica, mas também à política (com a diminuição da capacidade e da intervenção do agente nas tomadas de decisão ou pela coação exercida em relação a ele) e também ideológica/cultural (com a incapacidade de avaliação crítica da sociedade, assumindo valores da moral vigente; pela capacidade do agente dominador forjar saberes, vontades, desejos).
Outro elemento relevante da dominação é a dependência do agente dominado em relação ao agente dominador.
* Dependência: “relação onde a ação ou concessão de determinado agente se torna imprescindível para a vida de outro (o dependente)”.[pp. 87-88]
A dependência caracteriza-se quando um agente controla elementos que se tornam imprescindíveis para a vida de outros agentes, sejam esses elementos materiais – meios de produção, alimentos, água, remédios, moradia, roupas –, ou imateriais – saber, amor, drogas, consumo, ambição, prestígio etc. São elementos considerados imprescindíveis para os agentes em questão.
Pode-se dizer que o “domínio se identifica pela falta de opção, pela coação, pela mera hierarquia, pela alienação, pela falta de voz, pela recompensa residual, tendo em vista a finalidade real do projeto”. [p. 98]
Tendo em conta que a diferenciação entre poder e dominação é uma das grandes contribuições do livro de López, serão aqui considerados os elementos principais capazes de caracterizar uma relação de dominação, e que não podem ser generalizados a todas as relações de poder: a.) o agente subjugado tem sua força social utilizada para a realização dos objetivos do agente poderoso, os quais são distintos dos seus; b.) a força social do agente subjugado, e, portanto, seu tempo, pertence ao agente poderoso e por ele é controlada; c.) o agente subjugado é alienado; d.) há enfraquecimento e empobrecimento relativo do agente subjugado; e.) há hierarquia entre os agentes subjugado e poderoso; f.) coação, dependência, falta de opção e de voz do agente subjugado são comuns, mas não presentes em todos os casos de domínio.
A dinâmica do domínio
Como um tipo de poder, a dominação obedece a uma dinâmica semelhante àquela exposta para o poder. Entretanto, a dinâmica do poder possui algumas características que permitem diferenciá-la da dinâmica do domínio. A dinâmica em que se pode notar quando uma relação de poder torna-se uma relação de dominação é a seguinte: “Uma força social (F) que se impõe e passa ter poder (P); este poder pode ou não gerar uma dependência (De) – coisa que geralmente opta por fazer – estando os subjugados dependentes, eles se deixam dominar (D); ao incorporar a força social dos dominados, o poder terá acrescido esta força à força originalmente comandada (F’). Desta forma, temos o seguinte movimento: F-P-De-D-F’. Ao final do ciclo, o agente poderoso estaria comandando mais força (F’), contudo, não aumentará seu poder necessariamente. Caso consiga aumentar este poder (P’), ele gerará mais dependência (De’), mais domínio (D’) e haverá novo acréscimo na força social (F”) comandada pelo poderoso – a continuidade do movimento seria F’-P’-De’-D’-F” – e assim, o ciclo se repetiria indefinidamente até haver uma crise na ordem.”[p. 91]
Quando os poderosos incorporam a força social dos dominados em seu próprio favor, fazendo-os atuar para seus objetivos, distintos daqueles que buscam os subjugados, surge o domínio. Por meio dessa dinâmica, percebe-se, assim como no poder, a lógica expansionista do domínio, que poderá ser institucionalizada para manter o status quo com menores esforços e custos. Para López, há uma crise nessa ordem, que pode ou não ser institucional, quando esse processo de acúmulo permanente de forças pelo poder é interrompido, ou seja, quando essa dinâmica apresentada não ocorre continuamente.
PODER POPULAR OU AUTOGESTIONÁRIO VERSUS PODER ALIENADO OU HIERARQUIZADO
A distinção fundamental de López entre poder e domínio fornece as bases para se conceber modelos de poder que permitem avaliar as relações sociais do passado e do presente, assim como conceber projetos futuros a serem impulsionados por agentes sociais. Se o poder pode ou não constituir dominação, decorre disso que há possibilidade de haver poder sem dominação. O modelo de poder que não se caracteriza pela dominação é chamado por López de poder popular ou autogestionário; o modelo de poder que se caracteriza pela dominação é chamado de poder alienado ou hierarquizado.
Poder popular ou autogestionário
Nesse modelo de poder, os agentes não são “meros instrumentos alienados submetidos à vontade de terceiros. Isto significa que, para existir de fato um poder popular, as vontades e sugestões dos que compõem voluntariamente aquela força social têm de ser elementos relevantes no planejamento e na tomada de decisão da organização. Quando o denominamos ‘poder popular’, estávamos querendo realçar que esta é a única forma de o povo se organizar e ter poder sem cair nas mãos de um comandante, dominador, chefe, dono, déspota, príncipe, tirano, seja lá o nome que receba, aquele que impõe sua vontade a todos na organização.”[p. 121]
Nota-se, assim, que esse modelo de poder possui duas características básicas: alto nível de participação e participação voluntária. A participação generalizada ao conjunto dos agentes que compõem uma organização, uma associação, uma sociedade, ocorre quando há participação no planejamento e nas tomadas de decisão; ou seja, as decisões são tomadas “pela base”, “de baixo para cima”, com participação ampla. Essa participação exclui modelos de delegação sem controle da base – quando se escolhe alguém para decidir em nome do coletivo ou por ele – e também situações mais evidentes, quando alguns monopolizam as decisões que terão implicação sobre o coletivo. Ela também implica que nenhum agente participe obrigado, coagido, ameaçado; o agente deve buscar, por conta própria, a associação com a liberdade de cindir quando quiser.
Poder popular ou autogestionário implica, pois, ao invés de dominação, autogestão, no que diz respeito à sua estrutura interna (como se organiza e do que se compõe): “Autogestão significa gerir a si próprio. Autogestionária seria aquela organização que permitisse a todos os componentes a participação no planejamento e nos seus processos decisórios”.[p. 122] Essa participação ampla estabelecida pela autogestão é, portanto, o traço mais característico desse modelo de poder. Organizações, associações e sociedades que desenvolvam modelos de poder popular ou autogestionário devem contar com fatores relevantes para sua realização: “as informações devem ser de acesso a todos; a totalidade dos membros tem de participar, de alguma forma, dos processos decisórios de questões relevantes; o coletivo tem de assumir as responsabilidades, conseqüências e a execução do deliberado por ele mesmo”.[Ibid.] Isso não significa que todos devem participar de todos os processos de tomada de decisão, mas, fundamentalmente, que um agente social deve participar daquilo que for relevante, ou seja, das questões cujas decisões tiverem conseqüências sobre ele. “Autogestionária é a organização onde as conseqüências e a responsabilidade pela execução recaem sobre aqueles que deliberaram”.[Ibid.] Por meio da autogestão, respeita-se a liberdade e a autonomia individuais, sempre dentro de uma lógica de liberdade e autonomia coletiva.
Outro elemento fundamental para o processo de autogestão diz respeito à delegação de poder, com respaldo da base, apoiando-se na rotatividade e na possibilidade de destituição do delegado do cargo a qualquer momento. Dessa maneira, as decisões são tomadas pelos organismos autogestionários e, em caso de articulação com instâncias mais amplas, pode-se delegar a função de articulação, por meio de um processo conhecido por federalismo. Tarefas simples e que não envolvem decisões relevantes podem também ser delegadas no intuito de minimizar a burocracia.
Poder alienado ou hierarquizado
O traço mais marcante desse modelo de poder é a dominação. “A estrutura do poder alienado só pode ser hierárquica, onde o ‘topo’ da organização (diretor, presidente, príncipe etc…) é responsável por todas as decisões estratégicas que caberiam à assembléia de uma organização autogestionária. Esta é a mais importante distinção entre modelos: na autogestão quem executa participa da decisão, na hierarquia alguém decide para outros executarem.” [pp. 127-128] A participação do poder alienado ou hierarquizado é reduzida e está monopolizada por uma pessoa ou um setor minoritário; nele, a participação é restrita, ao passo que no modelo de poder pautado na autogestão é ampla, generalizada.
Neste modelo de poder, a vontade daqueles que decidem é imposta ao coletivo, a participação é restrita e, muitas vezes, não-voluntária. A dominação econômica é capaz de obrigar agentes a fazer parte deste poder, assim como a coerção política. Entretanto, não é somente a ameaça e a violência que pautam esse modelo de poder; a legitimidade, como se viu, é um elemento central forjado por elementos culturais e ideológicos que contribuem para que o sistema seja integrado voluntariamente com os agentes, frequentemente, acreditando que tal modelo é justo ou correto.
As decisões no modelo de poder alienado ou hierarquizado são tomadas de cima para baixo, com uma minoria que delibera e uma maioria que segue as deliberações. Quando há delegação, esta geralmente se dá com a maioria dando plenos poderes de decisão à minoria, que decide em seu lugar, sem rotatividade e possibilidade de destituição do delegado a qualquer momento.
ANARQUISMO E RESISTÊNCIA
Poder e Domínio possui contribuições fundamentais para a discussão do anarquismo. Para as discussões que se restringem às análises de sistemas de dominação, talvez a diferenciação de dominação e poder não sejam tão relevantes. Entretanto, para a discussão do anarquismo, essa diferença é central. Pois o anarquismo, em linhas gerais, posiciona-se contra os modelos de poder alienados ou hierarquizados, pautados na dominação, e em favor da construção de modelos de poder popular ou autogestionário, pautados na autogestão.
Em seu projeto revolucionário de superação do capitalismo e construção do socialismo libertário, o objetivo do anarquista não é substituir uma classe dominante por outra. “O anarquista luta contra a ordem imposta pelas instituições que dominam e, conseqüentemente, alienam. Ou seja, para o anarquista, a sociedade pós-revolucionária não deve admitir que nenhuma organização tenha poder graças à força social obtida através da alienação de qualquer agente. A sociedade revolucionária admitirá o poder; mas não tolerará de forma alguma o domínio. O único poder legítimo é o constituído pela soma da força social de agentes autônomos, que livremente escolheram integrar uma organização para construir um projeto. Assim deverá se constituir o poder revolucionário. Em suma, a verdadeira revolução social deve pôr fim nas relações de domínio.”[pp. 178-179] A necessidade de coerência entre meios e fins defendida pelos anarquistas também impõe a necessidade de construção de organizações políticas e sociais, que afastem a dominação e incorporem a autogestão.
Sendo o poder compreendido da maneira conceituada por López, pode-se afirmar que o anarquismo não é e nem nunca foi contra o poder; constitui-se, distintamente, como um modelo de poder específico, caracterizado pelas relações de autogestão – defendidas tanto nos meios quanto nos fins buscados pelos anarquistas. As instituições defendidas pelos anarquistas são pautadas na autogestão, impedindo a dominação. Uma sociedade futura, socialista e libertária, não seria estática, harmoniosa, e sem conflitos; ela “teria conflitos, luta por poder, opressão, insatisfação de alguns, porém ninguém seria usado para construir aquilo que não defenda voluntariamente”[p. 179] – devendo-se recordar a concepção de opressão do autor não implica necessariamente dominação. A autogestão significa exatamente um modelo de poder que não implica dominação.
Como para López uma relação de poder nasce para equacionar um conflito, em teoria, para ele, poderia até haver uma sociedade sem poder. Entretanto, isso implicaria que, sempre, todos estivessem de acordo com tudo; isso, na prática, afirma o autor, seria impossível. Sustenta, portanto, que, levando em conta a impossibilidade de sociedade sem conflito, seria irrelevante os anarquistas sustentarem posições de luta contra o poder, de maneira geral, ou pela constituição de uma sociedade sem poder.
Para caminhar rumo ao objetivo estratégico e finalista de transformar a sociedade, por meio de uma revolução social, no socialismo libertário – caracterizado por um modelo de poder popular e autogestionário –, López enfatiza que é necessário organizar-se como resistência ativa e articulada, buscando em um aumento progressivo de força social que permitirá um enfrentamento de maior envergadura com o sistema de dominação vigente. Transformar as mentes e os corações não basta; é preciso conseguir intervir concretamente no jogo de forças, de forma a avançar estrategicamente para um novo modelo de poder, pautado pela autogestão em todos os níveis.
Fábio López López. Poder e Domínio: uma visão anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2001.
Notas:
1. Uma das características do texto de López é a quantidade de conceitos criados e utilizados, os quais contribuem para a compreensão mais clara de sua proposta. Para que o leitor não os perca, destacarei sempre esses conceitos no corpo do texto.
2. Dessa forma, os objetivos de “longo prazo” que os partidos políticos dizem buscar acabam caindo no vazio, uma vez que suas ações práticas, quando estão na condução do Estado, são majoritariamente voltadas para a perpetuação de seu controle.