Bruno Lima Rocha (@estanalise – blimarocha@gmail.com – estrategiaeanaliseblog.com) – artigo originalmente publicado na Revista Manutenção
Em artigo anterior deste portal debatemos de forma comentada as contribuições de John Hobson quanto ao imperialismo entrecruzado pelo poder do capital financeiro. Mesmo não sendo marxista, sigo no debate sem sectário através das boas contribuições desta tradição para a economia política (a crítica da economia política) e a economia política internacional. No texto que segue, aportamos bons textos de comentaristas brasileiros/as no debate das interpretações de Lenin (o próprio, dirigente bolchevique que pode ser considerado um adversário político da tradição anarquista, a qual eu pertenço) e também de Rudolf Hilferding. Começamos pelo economista austríaco, que não tem relação alguma com a metástase doutrinária derivada deste país e que atende pela alcunha de “escola austríaca”.
Para Hilferding (1910, apud ROIO, 2018, p. 02) há a relação entre a cartelização dos segmentos empresariais, a presença de capitais cruzados e a participação acionária dos grandes bancos nestes gigantescos conglomerados econômicos, conformaria o papel estratégico das então modernas praças bancárias. No desenvolvimento teórico, o autor já observa uma dimensão ainda mais organizada do capitalismo em sua etapa monopolista, cuja dimensão concorrencial se daria entre países (elites dirigentes e classes dominantes controlando empresas e instituições-chave de Estado), e não necessariamente na concorrência doméstica entre empresas capitalistas. A dimensão concorrencial não tem mais a estatura estratégica, a não ser que a concorrência se dê em termos da expansão global do capital. Conforme Roio, (2018, p. 02),
Hilferding percebia na formação e afirmação dos cartéis e dos trustes a particularidade do capitalismo do início do século XX, que tendiam a monopolizar o mercado. Crucial seria o papel dos bancos – também eles em processo de crescimento e fusão – na constituição das grandes empresas monopólicas.
Ainda na contribuição de Hilferding (1910), a formação do capital financeiro era justamente o processo de fusão e concentração através da participação dos grandes bancos, seja como acionista, controlador ou financiador. Observe-se que, dependendo da dimensão destas fusões, sempre há algum papel do Estado, com licenças autorizativas, mecanismos de fiscalização, órgãos avalistas e afins. Logo, conclui-se que não se trata necessariamente de laissez faire e sim a necessária coordenação privada-estatal ou estatal-privada para fazer o deixa ir (do termo consagrado laissez faire) ser ajustado para ter a “permissão para ir”. Segundo Roio (2018, p. 02-03),
A virtual fusão do capital industrial em processo de concentração e centralização com o capital bancário constituíam o capital financeiro. A implicação desse processo seria a diminuição da concorrência no mercado interno e o aumento de preços, além da introdução de importantes elementos de planejamento empresarial.
Neste trecho abaixo, Hilferding (1910) nos aponta a antessala do arranjo interno que pode levar à guerra, mundializando a disputa entre os impérios, fazendo da corrida imperialista a etapa anterior ao conflito, em todos os níveis. É o capitalismo organizado que possibilita a guerra total, àquela mesma antevista por Clausewitz e por ele tão temida. A articulação entre indústria, Estado, tecnocracia, controles empresariais, instituições-chave e projeção de excedentes de poder nas colônias, faz a associação de potências e a concorrência entre blocos levada às últimas consequências. Apenas as formas de capitalismo organizado conseguem promover as condições para o poder global e sua disputa. De acordo com Roio (2018, p. 03),
Nessa situação, a concorrência se projeta para o mercado mundial, com a necessidade de se exportar o capital excedente, que busca sempre novos mercados e força de trabalho barata, além de fontes de recursos naturais. A concorrência no mercado mundial demanda o apoio e a presença constante do Estado junto ao capital, de modo que se estreitam as relações entre Estado e burguesia. Junto com os elementos de planejamento empresarial, os vínculos entre Estado e burguesia apontam para a constituição de um capitalismo organizado.
Dentro desse debate sobre as interseções do capital financeiro como a fusão dos trustes bancários com os oligopólios industriais, a contribuição de Lenin (1916) ainda se mantém relevante. Há diversas releituras, interpretações e resumos dos trabalhos do líder da minoria, que se transformara em maioria, ao atacar o Palácio de Inverno. Ressalto que o aporte do autor russo aqui não implica em afiliação teórica ou ideológica com ele (muito longe disso), mas o reconhecimento que este trabalho foi pioneiro e importante, mantendo-se atual.
Vale a pena observar a caracterização de Lenin (1916) sobre as “ilusões” das formas dos capitais, porque ele contesta a existência de uma natureza diferente entre o produtivo e o especulativo, entre o que gera riqueza material e o fictício. Para Lenin (1916, apud TRANSPADINI e BUENO, 2014, p. 191):
A associação entre grandes bancos e grandes indústrias permitirá ao capital construir uma dupla ilusão envolvendo o capital na função de mero emprestador. De um lado, essa função desempenharia um papel aparentemente menos perverso que o capital produtivo industrial, pois não seria responsável direto pela exploração da força de trabalho já que apenas empresta dinheiro. De outro, também pode ser vista como uma função parasitária, que drena, na forma de juros, as forças do capital produtivo. Essas ilusões são desfeitas quando lembramos que o capital bancário não é outro senão o capital desmembrado e autonomizado em função específica para a produção e realização da propriedade individual da riqueza social.
A leitura do trecho abaixo permite algumas interpretações, dentre as quais a observação de que, supostamente, o capital bancário derivaria do produtivo, algo que realmente não se realiza como fenômeno histórico. Já o complemento entre ambos e a interpenetração do circuito bancário nos conglomerados oligopolistas é uma caracterização efetiva, que até o período histórico desta pesquisa é verificável. Para tanto, Transpadini e Bueno (2014, p. 191-192) acrescentam que:
[…] esse é o mote da formulação do conceito de capital financeiro em Lenin, expressão da união permanente entre vários capitais em um só capital, nublando o começo e o término do poder individual de cada capitalista na extração de mais-trabalho na nova fase do capitalismo. É assim como na forma do emprestador, o capital bancário ganha, na sociedade em que o mercado aparece como sujeito, um status de “salvador da pátria”, impulsionador do crescimento econômico e da modernização, uma vez que sua aparição na produção é ainda mais invisível que a do proprietário da sociedade anônima, da qual este capital é parte integrante.
A dupla conclui que a caracterização do capital financeiro em Lenin (1916) leva à interpenetração do capital financeiro em todas as classes de mercado das economias capitalistas. Os autores completam (2014, p. 192):
O que, então, caracteriza o capital financeiro, para Lenin? É a expressão da união permanente entre vários capitais em um só capital, nublando o começo e o término do poder individual de cada capitalista na extração de mais-trabalho na nova fase do capitalismo.
Entendo que há uma dinâmica própria para cada modelo empresarial, classe de mercado e espaço geográfico em que a prática incide. A definição de imperialismo do próprio Lenin (1916) é muito mais sofisticada do que a que costuma ganhar incidência nos debates correntes. Para o ex-dirigente dos social-democratas da Rússia (1916), o imperialismo implica em cinco traços fundamentais, conforme segue:
1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse “capital financeiro” da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.
Cabe retornar às contribuições de Hilferding, em artigo comentado, no que diz respeito à extração e renda da periferia para o centro do mundo capitalista, e o conluio de interesses entre “burguesia” local e especuladores transnacionais.
Parte de tal dinâmica se assenta no livre trânsito do investimento de portfólio nas diferentes praças de zona de expansão imperialista. E é imperialismo, sobretudo, porque no contexto atual se impõe um controle transnacional sobre as políticas econômicas, principalmente dos países periféricos, que objetivam garantir a mobilidade do capital, neutralizando a capacidade nacional de definir uma política monetária própria, um determinado regime de câmbio e uma maior autonomia sobre o orçamento público. (Traspadini e Bueno, 2018, p.152)
Logo, a ortodoxia neoliberal é inclemente na imposição de receituário de tipo “terra arrasada”, a exemplo do que ocorre no Brasil desde o “governo Joaquim Levy” (2015), piorado no governo Temer-Meirelles (de 2016 a 2018) e chafurdando ainda mais no mesmo modelo horroroso e sociopata no Desgoverno Bolsonaro-Guedes, aposta na subordinação de países e sociedades inteiras, e exportação de capital para o centro, extração de renda e pauperização da maior parte da população. O mecanismo é demonstrado abaixo.
A especulação acionária e o investimento em renda fixa conduzidos pelo capital internacional, ainda que não gere valor nos termos do IDE como interpretados por Hilferding, consiste em sua essência no mesmo domínio imperial, pois arregimenta um controle do capital monopolista que subordina as políticas econômicas dos países hospedeiros às suas necessidades de valorização. No limite, à medida que se sacramenta a conversibilidade na conta financeira do balanço de pagamentos e remuneração real por meio de elevadas taxas de juros, fortalece-se o canal de extração de renda da periferia para as economias centrais, dimensionado, aliás, por um arco de interesses entre burguesias locais e internacionais. (Traspadini e Bueno, 2018, p.152)
Comentário final
Particularmente entendo que estamos diante de um problema de luta conceitual, mas também semântica. O imperialismo, como fenômeno do capitalismo monopolista e a disputa entre potências, foi corretamente interpretado por Lenin (1916), mas em uma dimensão parcial. A libertação de territórios, povos, soberanias coletiva e nações sem Estados nacionais é anterior à formação do capitalismo monopolista do último quarto do século XIX e do primeiro do século XX. Não se trata do objeto deste estudo, mas como um aporte ao esforço decolonial e anti-imperialista, vejo-me obrigado a reforçar esta característica. A imposição de normas e valores, instituições e alianças, da primazia das forças externas sobre as relações sociais concretas nos territórios existentes, em que as formas de trabalho assalariado muitas vezes sequer eram majoritárias (ou são ainda nesta etapa do século XXI), e as relações de classe se subordinam a outras formas de vida e à rendição dos Estados do socialismo real (ou do capitalismo de Estado), foram tão imperiais como as invasões navais britânicas ou o big stick estadunidense.
Traspadini e Bueno (2018, p. 154) apontam uma linha conclusiva importante, de caracterização do capital financeiro, seu caráter de unidade e valorização de si mesmo em detrimento dos processos produtivos que geram trabalho vivo e emprego direto.
“O capital financeiro seria a intersecção das diferentes frações de classes, pois mesmo com distintos tempos históricos e origens, ele soldaria suas bases, projetando-a internacionalmente. Sem eliminar as disputas intercapitalistas, o capital financeiro permitiria arregimentar as grandes burguesias numa nova esfera de valorização, na qual a centralização do capital refletiria o curso que os diferentes padrões mundiais de acumulação assumiriam no futuro”.
A citação acima vai ao encontro do tema de fôlego deste analista no estudo entre capital financeiro e a mundialização do capitalismo improdutivo e absolutamente parasitário. Cabe analisar a fundo o papel estratégico das Jurisdições Especiais para o imperialismo do século XXI sob o regime de acumulação financeira, é necessário caracterizar os conceitos-fundamentais para contribuir no esforço analítico e de compreensão do tema. Quanto menos nossas sociedades e cadeias de valor estiverem expostas à pressão e chantagem especulativas, mais soberania e capacidade produtiva teremos, podendo estar menos distante o bem estar social tão almejado.
Referências:
Marcos del Roio, Uma nota sobre a teoria do Imperialismo – 2018 (https://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS%20IV%20COLOQUIO/comunica%E7%F5es/GT3/gt3m4c6.pdf)
Fábio Antonio de Campos e Mauricio de S. Sabadini, Hilferding e o Nexo Imperialista entre Capital Financeiro e Exportação de Capital – 2018 (file:///C:/Users/Dell/Downloads/35042-Texto%20do%20Artigo-117421-1-10-20190711.pdf)
Roberta Traspadini e Fábio Marvulle Bueno – Lenin e a interpretação do imperialismo no século XX e XXI – 2014 (https://www.nexos.ufsc.br/index.php/rebela/article/view/2708/1839)