O episódio cabano das Alagoas, na verdade no norte de Alagoas e sul de Pernambuco, inaugura uma nova fase nos Clássicos. Além dos personagens e primeiros escritos políticos, vamos buscar na gênese das lutas populares brasileiras as raízes nunca abordadas de forma integrada e coletiva. A Cabanada alagoana é mais um exemplo de luta coletiva, com ares de epopéia, constitutiva da formação alagoana, promotora de unidade de classes oprimidas e forjadora de um significado distinto para o território daquela então província. Na seqüência consta a pesquisa feita pela colaboradora do portal, a acadêmica de história Daniela Soares, onde encontrou um bom artigo a respeito desta luta quase desconhecida para o conjunto dos brasileiros. Se fica a crítica para o trabalho exposto, é seu viés economista em e xcesso. Mas, a pesquisa em si já é mérito. Em cada rincão do país existem lutas e episódios políticos e sociais que, se apresentados em contesto distinto, formam um novo discurso generalizante. Esta é uma das missões da página, rendendo desde já o reconhecimento para o historiador alagoano Dirceu Lindoso. Foi pelas palavras dele, com o livro A Utopia Armada, onde a luta protagonzada pelos negros papa-méis, herdeiros diretos do Quilombo de Palmares, ofereceram a este analista possibilidade de se dar conta do óbvio. A luta desses cabanos é continuidade do ambiente político da insurreição de 1817, fato que leva à emancipação política de Alagoas, desvencilhando-se de Pernambuco. Construção que não pode ser vista de forma picotada. História mal contada é trajetória incompreendida.
por Vicente Paula Ferreira e cia
Desconhecemos a nós mesmos, de modo tal a nunca gerarmos identidades regionais somadas de modo a construir uma nova nacionalidade. Nenhuma novidade, dividir para reinar é uma máxima operando no terreno das identidades coletivas. Segue o trabalho selecionado.
Dívida de Sangue. Queixas orçamentárias e declínio de produtividade agrícola na guerra dos cabanos (Alagoas – Pernambuco/ 1832 – 1835), trabalho de Janaina Cardoso de Mello, doutoranda em História Social – UFRJ, apresentado no I Colóquio do Laboratório de História Econômica e Social (Lahes/UFJF, de 13 a 16 de junho de 2005)
"A guerra dos cabanos foi basicamente uma insurrecionalidade realizada pela massa popular dos campos e matas do sul de Pernambuco e norte de Alagoas. Uma massa composta de índios aldeados, brancos e mestiços livres que viviam em regime de moradores e lavradores nas periferias dos engenhos e negros fugidos dos plantéis, que organizando mocambos mistos, travavam com as forças militares provinciais um confronto fundamentado em táticas de guerrilha apreendidas nos tempos das invasões holandesas na região. Seus ataques e recuos para as matas com "trilhas quase intransitáveis" tornavam a repressão legalista ineficaz.
(…) a composição social e étnica do movimento cabano variou entre os anos de 1832 e 1835. Em 1832 houve uma maior participação da população indígena que compunha o aldeamento de Jacuípe, devido ao assassinato do capitão-mor dos índios Hipólito Nunes Barcelar, fato que desencadeou uma resposta coletiva violenta contra os engenhos e marcou o início da participação indígena na guerra cabana. No ano de 1833 visualiza-se uma inserção maior de escravos levados à guerra por seus senhores, como no ano anterior, ou como fugitivos dos plantéis de açúcar. Já em 1834 os negros "papa-méis" (na fala regional exclusivamente fugitivos) tornam-se a quase totalidade dos participantes efetuando ataques aos engenhos para libertação de outros escravos. (…) há uma redução progressiva do número de índios, moradores e lavradores a partir de 1834 e isso ocorre devido à escassez de recursos nas matas com a destruição dos roçados de milho pelas topas legalistas, às epidemias, à intensificação da repressão militar com as "expedições batedoras das matas" e as propostas de anistia com oferecimento de roupas, alimentos, remédios, sementes e instrumentos para o cultivo da terra no governo provincial de Pernambuco de Manuel de Carvalho Pais de Andrade. Os negros papa-méis estavam excluídos dessa negociação, pois para eles só restaria o retorno à condição escrava na plantation, por isso permanecem no combate mesmo após o término oficial deste, vivendo em mocambos no Riacho do Mato até 1850 quando Vicente Ferreira de Paula é preso.
De início a revolta foi capitaneada por uma classe de senhores de terra como Domingos Lourenço Torres Galindo (ex-Capitão-mor da vila de Santo Antão e proprietário nas proximidades da povoação de Bonito), Manuel Afonso de Melo (da região de Uma), Antonio Timóteo (pequeno proprietário em Panelas do Miranda) em Pernambuco; João Batista de Araújo (de Barra Grande) e Alexandre Gomes de Oliveira (diretor do aldeamento de índios de Palmeira) em Alagoas. Esses homens com inserção na sociedade enquanto participantes da categoria de "homens bons" proclamavam o discurso de restauração do trono à D. Pedro I em clara oposição ao governo liberal moderado instalado nas províncias e Corte. Elaboraram um levante que deveria ser vitorioso em poucos dias, porém o prolongamento e a natureza rústica do confronto, submetendo-os a uma vida penosa embrenhada nas matas, enfrentando inimigos armados e insetos, alimentando-se de frutos silvestres, tendo seu vestuário esgarçado por causa dos espinhos e galhos, fizeram com que essas lideranças oriundas de um cotidiano de privilégios e luxos fossem facilmente capturadas, mortas em combate ou em desespero buscassem a rendição às tropas governistas. A partir de 1834, a guerra dos cabanos assume sua feição eminentemente popular sob a liderança do mulato Vicente Ferreira de Paula. Situação esta que propicia a intensificação do medo branco frente à ameaça cabana às suas propriedades e à própria ordem que se acreditava hegemônica até a conflagração.
(…) a estrutura agrária escravista que compunha desde o período colonial uma sociedade patrimonial, em essência patriarcal e rural, cujo centro era o complexo "casa-grande/ senzala" assistiu à transferência ou deslocamento de um grande contingente de trabalho para fora de seu espaço de reprodução. Isto é, o escravo abandonava a condição de trabalhador na plantation, tornando-se um proto-camponês mocambeiro nos arraiais cabanos. Concomitantemente o índio abandonava a aldeia para ocupar um lugar na insurrecionalidade das matas, desertando das funções que lhe foram designadas pelo Estado Imperial. O mesmo ocorria com moradores e lavradores ao abandonarem suas atividades nos engenhos de açúcar, aderindo à cabanada sem o consentimento senhorial. Eram braços a menos que implicavam no declínio da produtividade agrícola justamente numa lógica econômica que se baseava na apropriação do trabalho alheio (de escravos, moradores, lavradores e índios), e apropriava-se por direito do produto do trabalho alheio.
(…) a guerra cabana representa uma interrupção compulsória no direito senhorial, num processo "de baixo para cima", no qual as camadas populares em estado aguerrido isentam-se ao pagamento de "meia-terça" do trabalho nos canaviais e nos roçados de subsistência cujos víveres transitavam entre a senzala e a casa grande. Além do fato de fundamental importância de que os saques e incêndios contra os engenhos representavam não apenas a subversão da ordem dominante, mas a apropriação por inversão e destruição do patrimônio senhorial. Nesse contexto, vários senhores de engenho tornavam-se paradoxalmente aliados dos cabanos fornecendo víveres para que suas propriedades não sofressem a violência de ataques surpresas.
Esse movimento insurrecional a despeito de sua diversidade étnica e social consegue aglutinar um contingente significativo em prol de demandas sociais como: terra, liberdade, justiça, religiosidade plural. Busca formas alternativas de exercer uma "cidadania possível" no exterior do sistema econômico exportador, demonstrando a capacidade de autonomia dos oprimidos em transformarem as funções que lhes confere a sociedade tradicional ou os domínios, de natureza subalterna e alienatória, num desempenho contestador que permite a formação de sua identidade de pobres das matas.
(…) nas correspondências trocadas entre o presidente da Província de Pernambuco Manuel Zeferino dos Santos e o Ministro do Império Nicolau Pereira de Campos Vergueiro encontram-se queixas quanto aos insucessos da repressão governista de Alagoas aos cabanos. Relata-se que Pernambuco estaria arcando com o ônus de combater o contingente aguerrido nas duas províncias sem possuir, contudo homens suficientes para compor as tropas de linha. Isto porque estas provêm de recrutamentos entre civis que abandonam o campo de batalha em função das privações que sofrem suas famílias em decorrência de sua prolongada ausência no trabalho agrícola. Também se faz referencia à "fome de farinha", uma vez que o inverno do ano anterior havia contribuído para o apodrecimento do produto que servia de base alimentar às tropas e por isso estaria havendo uma especulação nos preços do produto fornecido aos militares (…), ainda fala da redução do soldo de 500 réis que provocou a indignação dos soldados e do Comandante de Armas, representando mais um fator de desestímulo às forças da legalidade que combatendo em um local de natureza hostil e desconhecida, sofriam com a falta de víveres, uniformes, munição, pagamentos em atraso e agora com a diminuição de sua única fonte de ressarcimento por estarem longe do cultivo. Aliado a esse problema, a correspondência em junho do mesmo ano expõe outro obstáculo à manutenção das tropas: a falsificação das moedas de cobre com quais se efetuava os pagamentos.
(…) os recursos financeiros servem para possibilitar uma melhor organização à Secretaria do Estado dos Negócios da Guerra, no sentido de planejar e executar junto aos órgãos militares competentes as ações necessárias para disciplinar o contingente militar envolvido em constantes sedições, bem como premiar aqueles que se destacassem por bons serviços prestados. Ao Conselho de Guerra caberia justamente evitar a morosidade no julgamento dos processos militares em seus tribunais. Os Comandantes de Armas com seus respectivos ajudantes de Ordem, instalados em seis províncias, deveriam zelar pelo bom funcionamento dos quartéis. Sobre o Estado Maior do Exército e demais elementos da corporação, apesar do número excessivo, o Ministro que advoga em sua causa solicitando a concessão de vantagens para aqueles que demonstraram bom desempenho, propondo um planejamento para evitar o ócio militar e a "compra de patentes".
Com relação ao Corpo de Engenheiros o Ministro adota posição diversa da anterior indicando uma proposta de substituição destes que só têm onerado os cofres e não tem executado os serviços necessários. Aos Corpos de Linha e Artífices o ministro refere-se a necessidade de uma maior organização destes que compreendem os Batalhões de Caçadores, Corpos de Cavalaria e Artilharia. Imperativo também indicado para as Divisões do Rio Doce (as quais alega o Ministro não conhecer suficientemente) e aponta uma solicitação de Goiás em constituir um batalhão de repressão aos "índios hostis" à exemplo do Maranhão. Ressalta a grande despesa dos reformados, mas também a contribuição destes à nação.
As Pagadorias são relatadas como produtoras de inconvenientes em várias províncias e por isso, aponta o Ministro em direção a uma proposta que deverá substituí-las. Apresenta o insucesso da fusão da Academia Militar e a de Marinha, ressaltando seus gastos e indicando a futura separação das duas instituições. Solicita a regulação dos ordenados dos empregados dos Arsenaes de Guerra do Pará, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e dos encarregados dos Armazéns e Depósitos de outras Províncias, mostrando-se satisfeito com esses Arsenaes e avaliando positivamente sua importância.
Sobre o Arquivo Militar fala de sua transferência para um local que abrigava o antigo hospital militar que possibilite seu melhor funcionamento e da aquisição de materiais inclusos na despesa. O Ministro revela as esperanças do governo na Fábrica de Pólvora, esperando que esta venha a abastecer todo o império e por isso justifica os investimentos feitos, uma vez que desta proviriam lucros. Já com relação à Fábrica de Ferro, o ministro reclama dos gastos que serão necessários para a aquisição de terrenos adjacentes e propõe arrenda-la. O ministro faz referência à substituição dos "hospitaes geraes" que não curavam os enfermos militares e ainda sobrecarregavam as despesas do orçamento, valorizando a substituição destes pelos "hospitaes regimentaes" e apontando a necessidade de se conceder as gratificações dos médicos. E incluso nas diversas outras despesas está a reforma dos edifícios militares e fortalezas em ruínas, indicando ainda os gastos com onze pensionistas que freqüentavam a Academia Médico-Cirúrgica recebendo uma quantia mensal. Essas informações revelam a extrema preocupação do Ministério da Guerra em preparar as instituições que davam sustentação ao governo regencial nas províncias instáveis. Organização que além de contar com recursos financeiros da Fazenda, deveria investir permanentemente na disciplina das tropas para o sucesso dos combates contra os "inimigos do Império".
Os valores relacionados revelam o alto investimento feito pelo Estado para manter as forças da ordem agindo contra a "sedução da desordem", fosse esta proveniente das próprias fortalezas militares, de classes senhoriais aliadas a projetos restauradores ou do "populacho" (as camadas sociais populares formadas por pobres livres, índios e escravos) que encontrava brechas nas disputas políticas citadinas entre liberais moderados e exaltados para sublevar-se em busca de melhores condições de vida ou em represália a ações dos governantes consideradas "injustas". A cidade oferecia espaços mais propícios para o desenvolvimento de idéias contestatórias (devido á proximidade com o Porto enquanto porta de entrada para idéias diferenciadas no desembarque de estrangeiros e publicações européias); o campo transparecia a imagem de populações subjugadas pelo domínio senhorial desde os tempos coloniais. Apesar da exaltação citadina, devido á politização das ruas insuflada pelos periódicos e panfletos de cunho doutrinário que defendiam correntes políticas moderadas, exaltadas e restauradoras, o campo revelou-se também um foco de preocupação para os políticos da Corte. (…) A representação política na capital do Império defendia os interesses dos grandes latifundiários, ou seja, da elite agrária que muito havia perdido com as revoltas populares da primeira metade do século de 1800.
No movimento cabano de Pernambuco e Alagoas a situação havia adquirido uma dimensão de gravidade nacional ao apreender dois pontos decisivos para a economia agro-exportadora: a posse de terras por "livres" e a "liberdade" de escravos. Os livres em questão eram compostos por moradores, lavradores e índios que aproveitando o jogo de forças entre os fazendeiros da região em luta pelo poder inserem-se nas brechas abertas pela guerra cabana para assegurar a posse de uma pequena parcela de terra entre as matas onde se realizava o conflito. Procuram manter nestas áreas arraiais para o cultivo do milho, da mandioca e a criação de animais. Porém, isso não ocorre sem contestação por parte dos senhores de engenho que se sentem desafiados em seu poder.
Eram estas áreas de antigos mocambos, que abrigara diversos quilombos no período colonial, sendo o mais famoso deles: o Quilombo dos Palmares. Ainda Tollenare observou no sul de Pernambuco em 1817 uma formação camponesa no interior do sistema agrário composta por arraiais que além de seus roçados complementavam sua economia primitiva com frutos comestíveis das matas. Logo, os habitantes livres da região entendiam ser este um costume tradicional de posse por ocupação efetiva com suas cabanas. Ainda sobre a questão da posse da terra, outro elemento misturava-se a essa reivindicação armada que era a participação de escravos que lutavam na cabanada para manter terra e liberdade. Eram, pois, herdeiros de Zumbi, ocupando a mesma região. Por isso, em 1834 quando há o enfraquecimento dos combatentes devido á deserção dos componentes "livres", são os negros fugidos da ordem escravocrata que mantêm a resistência nas matas e a salva-guarda de seu líder Vicente Ferreira de Paula. Formam a sua "Guarda Negra" e seus mocambos nas matas, sendo fontes de preocupação para as autoridades provinciais (…). Mais do que isolados nas matas, o contingente ofensivo desses mocambos negros atacavam os engenhos para libertar outros escravos aumentando de forma significativa número de escravos em fuga, fora da lógica de produção capitalista, e fragilizando dessa forma não somente a disciplina necessária ao domínio senhorial sobre terras e homens, mas a própria economia açucareira da região fronteiriça (…).
Mesmo com a pressão inglesa para a interrupção do tráfico atlântico de escravos para o Brasil a idéia de que a escravidão seria provisória e negativa reduziu sua intensidade á partir da década de 1830, quando a alta dos preços dos escravos atingiu proporções elevadas fazendo com que os fazendeiros avaliassem o ganho obtido sobre o custo do escravo e o tempo de permanência deste em cativeiro exercendo funções produtivas. Ora, a fuga incidia diretamente sobre as expectativas de lucratividade senhorial, porém era a única alternativa vislumbrada para a libertação uma estrutura odiosa aos cativos.
(…) os negros papa-méis assumiam o risco de uma morte em combate, porém preservando sua liberdade insurrecional até o último instante, ao retornar para o espaço de sofrimento dos plantéis dos engenhos. Despossuídos oficialmente de terras e riquezas, constituíram no Riacho do Mato (região fronteiriça de Pernambuco com Alagoas) um espaço de liberdade possível para sobreviver de sua economia de coleta e roçados, além de praticar costumes diferenciados dos brancos portugueses, como o despique (troca de mulheres) que permitia a reprodução do grupo mocambeiro. Diferentemente de movimentos posteriores, já na República, como Canudos ou Contestado, os cabanos do norte do Brasil (no período do conflito ainda não se utilizava a designação nordeste) não foram "arrasados" pelas forças do governo que para por fim à contenda não os importunou até 1850, quando numa emboscada o líder Vicente Ferreira de Paula foi aprisionado. Coincidentemente ou não, neste mesmo ano se promulgariam duas importantes leis: aquela que cessaria do tráfico atlântico e a Lei de Terras que iria pôr fim às esperanças das "gentes pobres" de legitimar sua posse sobre terras devolutas, ou matas incultas.
A dívida de sangue era afinal cobrada… "
Introdução e Revisão de Bruno Lima Rocha
Pesquisa feita por Daniela Soares, colaboradora desta página e editora de Trecos & Trapos