É facilmente identificável o núcleo duro do que estamos criticando através da observação de duas peças típicas. Uma, trata das matérias de telejornalismo onde especialistas em recursos humanos, “coaching”, reconversão e recolocação de carreiras, advertem os telespectadores de prós e contras na atitude de cada um dentro do ambiente de trabalho e na relação com os companheiros de jornadas, chefias e hierarcas da empresa. Outra pode ser identificada nos protagonistas de telenovelas e reality shows, onde a figura do empreendedor econômico é o herói social, a meta alcançável para todos os personagens e a baliza da moral circulante.
Em ambos os gêneros televisivos nota-se a exacerbação do indivíduo e a ausência de uma noção coletiva, uma identidade antagônica, como a de classe. Trata-se assim do acionar discursivo de uma doutrina baseada em uma lógica de suposta escolha racional baseada em maximizar ganhos e minorar perdas, tomando a forma-empresa como a analogia única para os indivíduos. Deste modo, cada pessoa, cultivaria dentro de si um respeito pelo empreendimento como única forma de “progresso” social, sendo que esta opção vai incidir na esfera privada da vida. Assim, os consultores difundidos pelas TVs comerciais te dizem como vestir, o que fazer na internet e até manuais de etiqueta.
Já a ficção, para além das telenovelas, uma bela paródia do “admirável mundo corporativo” é o reality show O Aprendiz, a versão brasileira do programa estadunidense The Apprentice, apresentado pelo magnata Donald Trump. No Brasil, este espetáculo de difusão vulgar da doutrina neoclássica fora comandado pelo publicitário Roberto Justus e atualmente é veiculado na Record e tem no comando João Dória Jr. No roteiro, jovens profissionais disputam entre si para ver se conseguem cumprir as tarefas e ao mesmo tempo ser bem visto pelas chefias, no caso, o apresentador e seus conselheiros. O show demonstra como trabalhadores qualificados assumem a forma da empresa já em seu período de treinamento, cooperando pontualmente e competindo sem cessar até restar um personagem vitorioso, aceito na empresa ou remunerado. Fica fora de cogitação uma unidade dos estagiários ou recém formado em contra as regras do próprio “jogo”. Ao não contestá-las, os indivíduos ali presentes reproduzem literalmente o código de valores circulantes em empresas de porte e entre pessoas auto centradas.
Nas peças narradas acima, o que deve estar oculto é a identidade coletiva para além da reprodução padronizada de hábitos e valores dos mandantes. A máxima da redução subordinada é quando estas matérias relatam aos que trocam trabalho por salário, não mais como trabalhador, mas sim como “colaborador”. Se há algo de comum a todas as correntes do pensamento social no Ocidente, é associar o conceito de classe a uma idéia de antagonismo de maiorias contra minorias possuidoras, ou detentoras de poderes de mando real (como o de contratar e demitir) sobre as demais. Passando a “colaborador”, quem trabalha na prática colabora com seus patrões ou controladores, e esta é a mensagem veiculada abertamente, quando ora algum se vê mencionado o termo sindicato, ou então quando se afirma que “o trabalhador, em nenhuma hipótese, poderá falar mal da empresa”. Ora, um subalterno que não reclame é um dominado que tem ao dominador organizando sua estrutura de pensamento. Enfim, é alguém vivendo a identidade do “andar de cima”, uma esquizofrenia muitas vezes repetida para dar coesão na base da pirâmide social, pactuando uma sociedade ainda profundamente injusta e desigual.
É parte de qualquer sistema de valores a reprodução dos formatos coletivos dentro das individualidades. Assim como um exército tem no corpo dos soldados a última linha de defesa, um sistema de dominação estrutura a adesão aos seus valores através da individuação e a carga circulante de valores e atitudes através de sua reprodução cultural ainda de maior impacto. Por mais que estejamos permeáveis a redes sociais e domínios da internet, a maioria dos brasileiros ainda é atingida através da televisão aberta generalista. Estes veículos de TV, cujo campo se estrutura na forma de oligopólio, dão vazão, como conteúdo narrativo de seus produtos com maior impacto (o telejornalismo e a telenovela), a um jogo de espelhos distorcidos, onde o andar de baixo se enxerga em projeção no andar de cima. Uma comparação quase surrealista seria a de um porteiro de edifício que confunde sua própria imagem com a dos moradores de um luxuoso edifício com escritórios e salas multiuso. Ao não reconhecer-se, este trabalhador projeta a si naqueles que controlam a força de trabalho de terceiros, realizando simultaneamente, um apagão nas identidades coletivas capazes de gerar conflito social e re-distributivo. Na ausência do “nós”, impera o “eu”, impondo sobre as individualidades formas padronizadas de comportamento, justamente àquelas que vão ao encontro das necessidades de contratantes e seus departamentos de recursos humanos.
Assim como é impossível pensarmos uma sociedade contemporânea sem mídia, tampouco é viável imaginar algum grau de transformação sem afetar os interesses e conteúdos desta mídia capitalista.
Artigo originalmente publicado na Revista IHU-Online, em 07/05/2012