Em 2008, Ancara via mais uma vez seus esforços para entrar na União Europeia (EU) serem infrutíferos. Desde os anos 80 a Turquia tenta se qualificar para ser aceita na EU, tendo como ponto alto deste processo, a abertura dos tramites legais para obtenção por parte bloco a sua candidatura em 1999. Mas desde então, o centro nervoso e político turco sofre com a má vontade de alguns Estados europeus em aceitar o país na União Europeia. O principal motivo para isso é inicialmente o fato da Turquia não ser vista pelos demais membros da EU como um Estado europeu, mas sim um Estado asiático, já que apenas 5 % do seu território se localiza em tal continente.
Para dificultar a situação turca, o bloco impõe diversas medidas a serem tomadas como pré-requisitos da aceitação da Turquia dentro da organização. Entre estas medidas está a revogação de leis consideradas antidemocráticas, como o famigerado Artigo 301 do Código Penal Turco que condena a prisão “ Uma pessoa que denigre publicamente a nação turca, o Estado da República da Turquia ou Grande Assembleia Nacional da Turquia e as instituições judiciais do Estado é punível com pena de prisão de 6 meses a 2 anos”. Críticos alegam que este dispositivo jurídico poderia ser usado para cercear a liberdade dos cidadãos turcos, já que qualquer crítica ao governo ou suas instituições poderia ser considerada como crime.
Os embates com a EU levaram a um redirecionamento na sua projeção de excedentes de poder. A Turquia, desde 2002 está sob o comando do Partido da Justiça e Desenvolvimento, ou AKP (Adalet ve Kalkınma Partisi) de cunho religioso, redireciona seus esforços para (re)conquistar a liderança regional na região do Oriente Médio. O problema é que após quase quarenta anos voltada quase exclusivamente para a Europa, o Estado turco vê o Oriente Médio já hierarquicamente dividido entre Israel (Hegemonia regional) e Síria e Egito disputando a liderança dos Estados muçulmanos.
Esta estratégia de alcance da liderança regional é chamada por seus detratores de Neo-otomana. Essa estratégia tem esse nome por que se caracteriza pela retomada da influência, e se possível, o controle direto de Ancara na região do Levante, que era uma das províncias do finado Império Otomano. O fato de o segundo mandato como presidente e o mandato como primeiro-ministro de Recep Tayyip Erdoğan serem autoritários e contrários à tradição laica do país materializa esta denominação.
Em uma primeira etapa da nova estratégia, a Turquia aproveita seu bom momento econômico da primeira década dos anos 2000 para aumentar seus laços comerciais com os países vizinhos, pois quanto maior o peso de Ancara na balança comercial destes países, mais influência teria. Esta estratégia não funciona muito bem a princípio, pois Síria e Egito, por exemplo, mantém-se com uma agenda própria, dando pouca ou nenhuma relevância para as ações da Turquia na direção de obter um maior protagonismo.
Com o início da chama Primavera Árabe no final de 2010, a Turquia viu tanto o Egito quanto a Síria colapsarem diante dos inúmeros protestos e golpes e contragolpes de Estado. No caso da Síria, o presidente Bashar Al-Assad não sofreu um golpe de Estado propriamente dito, mas sim uma Guerra Civil sem precedentes. Em uma tentativa de obter maior influência sobre o vizinho, Ancara demanda uma série de leis a serem adotadas por Damasco para de-escalar o já latente conflito em 2011 sob o risco de ter a Turquia como “simpática” aos grupos rebeldes, mais notadamente a FSA (Free Syrian Army, o Exército Livre da Síria).
Mas, com o fracasso da FSA em derrubar o governo Assad, Ancara passa a apoiar com armas, dinheiro e livre-transito na sua fronteira grupos radicais como a Frente Al-Nusra (filial da Al-Quaeda na Síria) e mais posteriormente o DAESH, ou estado Islâmico. Em meados de 2015, as relações entre Ancara e o DAESH se tornaram visíveis na comunidade internacional e o país passa por um grande constrangimento internacional. A compra de petróleo contrabandeado da Síria extraído pelo DAESH em Hama, mais o abate do caça-bombardeiro russo com a consequente morte do piloto russo Oleg Anatolyevich Peshkov, serviu não apenas para arranhar profundamente a imagem do país, mas também para desencadear uma série de sanções de Moscou que agravaram a crise econômica que a Turquia começava a vivenciar.
Dois pontos levaram Ancara a apoiar o DAESH e outros grupos fundamentalistas. O primeiro ponto é que dentre os setores “rebeldes” (em revolta contra o governo da família Asad e a minoria alauíta, ramo expandido do xiismo), os grupos fundamentalistas tinham melhor preparo e obtinham importantes vitórias sobre Damasco, como a captura de Palmira e boa parte da província de Der-ez-zor pelo DAESH em 2014, e parte considerável da província de Aleppo. Outro ponto é que o DAESH considera as populações curdas infiéis e que necessitam serem conquistadas ou aniquiladas, sendo assim a ameaça mais perigosa às populações semiautônomas de Afrin, na província de Aleppo e Al-Hasaka, na província de mesmo nome. Na lógica básica do realismo cru, o inimigo do inimigo comum (DAESH e Ancara x esquerda curda), a aliança com o Estado Islâmico é vista como “natural”.
Relações obscuras entre a Turquia e o ISIS
Outro resultado da falha e agressiva política externa de Erdoğan foi o aumento dos ataques terroristas em solo turco, especialmente em Istambul. Com a diminuição do apoio ao DAESH, Ancara passa a ser alvo de inúmeros ataques terroristas, como o ocorrido em janeiro de 2016, que vitimou 14 pessoas em Istambul. Desde 2013, aproximadamente 300 civis, nacionais e estrangeiros já morreram vítimas de atentados perpetrados pela organização. Vale observar que em se tratando de Turquia, a incerteza é a única constância. Há de se considerar a permanente possibilidade de infiltração conspiratória ou manipulação de células jihadistas por controladores da inteligência turca. Ao mesmo tempo, sofre grande pressão da resistência curda no sul do país, através de ações de guerrilha e ataques às forças de segurança neo-otomanas e kemalistas.
Para concluir, podemos considerar que a recente tentativa de golpe de Estado em curso em Istambul também pode ser considerada mais um resultado da nefasta política externa implementada desde 2011 pelos governos Erdoğan (2003-2014 como premier), de Ahmet Davutoğlu(2014-2016) de Binali Yıldırım desde 24 de maio deste ano. O realinhamento turco com a órbita russa e a urgente necessidade de recursos levaram ao governo do AKP a avançar na aventura da instabilidade regional e doméstica.
Pedro Guedes é estudante de graduação em relações internacionais na Unisinos (E-mail: pedro_0141@hotmail.com)