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LARI de Análise de Conjuntura Internacional
Conjuntura Internacional

Reflexão acerca da realidade haitiana em tempos de intenso fluxo migratório

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O mapa político do Haiti reflete a fratura eleitoral e societária do país

15 de setembro de 2015, Maíra Kristoschek Garcia

 

O Brasil depara-se, atualmente, com o crescente fenômeno da migração haitiana. Para entender os motivos dessa migração, faz-se necessário olhar para a História e buscar nela, explicações socioeconômicas para o “problema”. Compreende-se como “problema” o fato de haver um grande contingente de “exilados” econômicos em função de seu país de origem ainda caracterizar um Estado falido. Vejo como positiva para uma sociedade o fato de poder receber novos membros de distintas matrizes culturais e espaços geográficos. Também observo que não se trata de julgar a capacidade de recepção do Brasil e sim a incapacidade de auto sustentação da sociedade haitiana e seu constante caos interno.  

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O Haiti, o primeiro país da América Latina e Caribe a libertar-se do colonialismo europeu e a declarar independência - em 1804, apesar de só ter sido reconhecido politicamente pelo governo francês em 1824 - é, ironicamente, o país latino-americano mais pobre na atualidade. No pequeno país, não existe classe média. Existem infinitos pobres e uma minoria rica, elite política do país. Vale observar que a radicalidade da rebelião haitiana não veio acompanhada da construção de instituições e normas de democracia popular. O estilo jacobino de seus líderes anti-coloniais resultou na tradição autoritária, seguida de perfil imperial, que até hoje é parte constitutiva da política haitiana.

 

A história haitiana é manchada de sangue por dois governos autoritários. No primeiro, governo de François “Papa Doc” Duvalier (politicamente centralizado), foi redigida uma nova Constituição e fecharam-se as portas da Assembleia Nacional. No segundo, governo de Jean-Claude “Baby Doc”, que assumiu o poder após a morte do pai, iniciaram-se protestos pelo território haitiano, rebeliões e acontecimentos sangrentos. Baby Doc abdicou do poder e levou do Haiti grande parte da fortuna do país. 

 

O regime duvalierista (1957 - 1986) ocorreu num período marcado pelo autoritarismo e pela centralização política. O aparato repressor do Estado foi empregado para perseguir e eliminar toda e qualquer forma de oposição política. Os setores conservadores da sociedade haitiana auxiliaram na imposição das bases desse regime, entre eles militares, a Igreja Católica e a elite mulata. O regime Duvalier também amparou os interesses estadunidenses no contexto bipolar do sistema internacional, por afastar as revoltas populares, bem como tornar inviável a expansão do comunismo no território haitiano. Papa Doc manteve-se no poder de 1957 a 1971, permanecendo em cargo vitalício e escolhendo seu filho como sucessor. A nova Guarda Presidencial passou a ser composta por milícias civis armadas, sob a tutela de Duvalier. Os Tonton Macoutes (Voluntários da Segurança Nacional) tinham a função de controlar o sistema de informação, inteligência e controle. Eram responsáveis pela perseguição e eliminação de todo aquele que contestasse o governo. De acordo com Ricardo Seitenfus, uma vez que os Voluntários da Segurança Nacional não eram uma instituição haitiana, o caráter voluntário da milícia fez com que os recursos econômicos necessários para o seu funcionamento fossem obtidos por meio de atividades ilícitas.

 

O fim do regime da família Duvalier, em 1986, é resultado de desgaste político (ocasionado pelas inúmeras medidas centralizadoras) e da falta de habilidade política de Baby Doc. É neste contexto que ocorre a vitória de Jean-Bertrand Aristide nas primeiras eleições democráticas (ano 1990). Um ano depois, Aristide perde o poder devido ao golpe militar em nome do General Raul Cedras. Aristide retorna ao poder sob a tutela estadunidense, da OEA e de tropas de países da região, numa invasão com o intuito de restaurar o governo eleito e promover a estabilização da situação econômica e política haitiana. A intervenção norte-americana, em 1994, é também realizada por razões de ordem interna, como a migração haitiana para os EUA e o fato de o Haiti estar posicionado entre Colômbia e Estados Unidos, rota do tráfico de drogas, e a ditadura do General Cedras facilitar as operações ilegais no país. Fazia-se por tanto, necessário colocar no poder um presidente confiável, aliado das forças armadas norte-americanas, a fim de auxiliar no combate ao tráfico de drogas.

 

Eleições - de questionável qualidade no processo de disputa democrática - foram então realizadas apenas em 2000. A oposição insatisfeita passa a clamar pela renúncia do presidente, em meados de 2003. A tensão popular e a eclosão de conflitos armados por todo o país forçam o presidente Aristide a deixar o país. Ao fim, o governo haitiano acaba por pedir a intervenção das missões de paz das Nações Unidas, em 2004. Era necessário reorganizar o aparelho de Estado e o sistema político além de curar uma população exposta a diversos tipos de abusos de poder.

 

A Constituição do Haiti (Constitution d’Haïti) promulgada em 1987, possui forte influência de duas potências globais: Estados Unidos e França. O limitado espaço de inserção internacional reflete também na conturbada esfera doméstica. O país é assolado por disputas não legais pelo poder de fato, incluindo domínio territorial de cidades e enormes zonas favelizadas, sendo comandado por gangues e milícias. A tentativa de retomada da vida política regular inicia-se novamente em agosto desse ano, com a realização do primeiro turno das eleições legislativas. O segundo turno está marcado para o dia 25 do mês de outubro. Vale salientar que a primeira etapa desse processo foi bastante violenta.

 

Os indicadores de desenvolvimento são muito precários também, considerando o Índice de Desenvolvimento Humano, no qual o Haiti ocupa o 168º, com IDH de 0,471. Grande parte da população é analfabeta, e, o complemento da falta de escolaridade é a fuga de cérebros. No ano de 2010, cerca de 85% dos haitianos com ensino superior encontrava-se no exterior. É também frágil a ordem jurídica interna. O Direito não chega até o povo haitiano, com existência precária das instituições básicas de normatividade social, como polícia, defensoria e cortes judiciais. A condição de ingresso material reflete a escassez de serviço público, sendo que em sua maioria, a população segue vivendo num estado miserável. A vulnerabilidade econômica foi também agravada pelo terremoto de 2010. A violação dos direitos humanos é conhecida internacionalmente, sendo sabido, inclusive, que a maior parcela das famílias tem uma renda de, no máximo USD 1,00 por dia.

 

Cabe aqui criticar a mídia, grande responsável pela distorção da imagem do Haiti, visto sempre com um olhar viciado, como um país fadado ao fracasso. Porém, a península é possuidora de rica cultura e de forte tradição literária. A noção de coletividade do cidadão haitiano também é outra. Dany Laferrière, escritor haitiano que exilou-se no Canadá durante a ditadura de Jean-Claude Duvalier, deixa clara essa noção em um trecho de seu brilhante livro País sem chapéu: "Somos sete milhões de haitianos e todos querem ser presidentes deste país. Não de outro país. Os outros países não contam. Só o Haiti conta. Você sabe o que disse, um dia, Duvalier pai? Ele disse que a energia gasta para dirigir o Haiti é tão grande, que com apenas um quarto ele poderia dirigir os Estados Unidos, e isso trabalhando só nos fins de semana."

 

A presença brasileira no Haiti e a vinda dos imigrantes

 

A MINUSTAH é criada por Resolução do Conselho de Segurança da ONU em fevereiro de 2004 - num contexto de insegurança local, violação de direitos humanos e instabilidade política -com a finalidade de restabelecer a segurança e normalidade institucional do país após os sucessivos episódios de turbulência política e violência após o exílio do presidente Aristide. O Brasil é responsável pelo comando das forças de paz no Haiti, com a participação de tropas de outros 15 países. Segundo o Ministério da Defesa de nosso país, ao longo da ocupação, a ilha contou com a presença de cerca de mais de 30 mil capacetes azuis provenientes do exército brasileiro, sendo 4.965 da Marinha, 24.667 do Exército e 237 da Força Aérea. Após o terremoto de 2010, a missão se intensifica, e as Forças Armadas brasileiras passam a trabalhar também na reconstrução do Haiti através de ações humanitárias que visam a recuperação da infra-estrutura do país. Há mais de dez anos de presença das Forças Armadas brasileiras no Haiti, as funções dos capacetes azuis incluem muito mais do que as funções tradicionais das operações de paz, como a pacificação de áreas violentas e policiamento das ruas, confrontos com grupos armados e escolta de comboios humanitários, enquadrando também funções não-militares, como a reconstrução da infra-estrutura (construção de parques, escolas e hospitais), o recolhimento de lixo, distribuição de comida e água, entre outras tarefas.

 

A presença brasileira na MINUSTAH fortalece os laços de cooperação internacional entre os dois países. A vinda dos imigrantes haitianos ao Brasil é de extrema importância para o nosso país, por enriquecer a nossa diversidade e multilateralidade, consagrando a cooperação internacional propagada pela política externa brasileira. A aceitação desses haitianos (bem como  de pessoas de todas as nacionalidades), se somada à políticas públicas eficientes e a boa recepção da população brasileira, representa a consagração da extensa pauta de direitos humanos pregada pelo Brasil. Uma importante parcela dos haitianos procura o Brasil em busca de trabalho. Grande parte chega ao nosso território em busca de melhor qualidade de vida e uma minoria chega com a intenção de estudar. Até 2014, 50 mil haitianos haviam chegado ao Brasil.

 

O olhar crítico é fundamental ao falar de Haiti e ao falar da MINUSTAH. As tropas da missão são frequentemente acusadas de cometer abuso e exploração sexual com a população, geralmente estabelecendo a troca de relações sexuais por comida e celulares. Tal acontecimento é repugnante, especialmente se considerarmos o cenário de caos que assola o país e as inúmeras necessidades que assolam a população. Numa situação de insegurança generalizada, as vítimas da violência têm dificuldade de recorrer à justiça, portanto, cabe à comunidade internacional combater e repudiar qualquer tipo de atividade que vá de encontro aos direitos humanos e à integridade do povo haitiano.

 

A previsão de retirada das tropas das Nações Unidas do território haitiano é para até o fim do ano de 2016. A Minustah - Mission des Nations Unides pour la Stabilisation en Haïti - tem como objetivo impulsionar a democracia e o Estado de Direito, a fim de promover a segurança e o bem estar dos cidadãos. A grande dúvida é o que restará no país após a retirada das tropas. Concluindo, o problema haitiano foi, desde sempre, muito mais estrutural do que um fator de conjuntura. Num país onde ficam evidentes tais problemas, é conveniente fazer, mais uma vez, uso das palavras de Seitenfus “aqui, não há nada a pacificar e tudo a construir”. E como já cantava Caetano, pense pelo Haiti. Reze pelo Haiti.

 

Maíra Kristoschek Garcia é estudante de relações internacionais da Unisinos (may.garcia.r@gmail.com) 






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