Ordem a partir do Caos, enquanto fenômeno ideológico, parte da premissa de um caos primordial – visto tanto nas teologias do mundo antigo, deuses que incorporam o próprio Caos como reagente elementar, como também na ciência moderna e suas teorias quânticas de formação do universo e da matéria – de modo que é dessa sopa caótica que a Ordem surgirá, o que nos parece um tanto quanto paradoxal. Não é à toa que a mente supersticiosa exercitará seu senso comum: “como todo o universo surgiu de uma explosão?” (Uns dizem expansão, outros explosão). Tal inferência por olhar deve ser evitada, mesmo por que a própria ideia de nomear uma realidade exterior de caótica ou ordenada já pressupõe a padronização do olhar-cultura sobre algo, a conformação do objeto a um tipo de olhar-mentalidade. Teria alguém dito que o Universo se modificou quando Copérnico, ou Galileu, descobriram a falsidade das ideias astronômicas do Geocentrismo? (...)
Propomos, todavia, um passo adiante para resolver nosso quebra-cabeça e, por conseguinte, evitar as especulações abstratas e antinomias da razão, as quais não chegam a resultados tangíveis. Em uma rápida operação, inverte-se a frase:
-Logo então temos o Caos a partir da Ordem.
Partindo dessa premissa, a perspectiva de análise sobre a realidade se transforma. O conceito deixa de ser útil para os gurus new age do mercado, mas, por incrível que possa parecer, se torna útil para entender o mercado em si, a sociedade contemporânea e outros fenômenos dessa esfera.
Brasil, Crise a partir da Ordem
O que aconteceu com o país do berço esplêndido, festividades e tolerância multicultural, quando vemos um ciclista qualquer ser agredido por vestir uma camisa vermelha? Caberia perguntar se algum dia o país positivado no hino nacional e popularizado na ideologia da brasilidade existiu de fato... Mas é preciso ir além e questionar o que inquestionável: no sentido conjuntural da palavra crise, há mesmo uma crise no Brasil? Crise para quem?
Antes de responder tais questionamentos, observemos, por exemplo, os fatos históricos perpetrados na crise dos mísseis cubanos em paralelo com o filme de Stanley Kubrick, Dr. Strangelove – analogia a ser traçada para início de nossa reflexão a respeito de como a crise brasileira não surgiu do caos místico originário ou que brotou como cogumelo no tronco velho e mofado de um Pau-Brasil.
Continuando: o fato histórico da crise dos misseis soviéticos em Cuba, 1962, em paralelo com o filme de Kubrick, no qual a humanidade entra de fato em guerra nuclear, vemos em jogo o conflito entre as duas superpotências organizadas, cujas quais desembocam, na ficção, em destruição total. Se caso o fim trágico da estória de Kubrick houvesse ocorrido na realidade de 1962, teríamos então levado o mundo em direção à dimensão caótica sublime - o Caos, com C maiúsculo, do nosso ditado invertido – de modo que tal dimensão caótica sublime se procedeu justamente por meio do estabelecimento de uma ordenação sistêmica – cadência dos aparatos militares estatais de duas correlações de forças opostas, mas com objetivos semelhantes - domínio geopolítico, social e econômico sobre porções de terras estratégicas para ambos - definidos e organizados internacionalmente por regras não escritas, tendo o Conselho de Segurança (CS) da ONU como instância última de mediação entre as duas forças, havendo, inclusive, a bipolaridade de interesses dentro do próprio CS.
Ora, que Caos primário há nisso senão a própria Ordem orquestrada como ponto de partida? Qual teria sido a origem da destruição do mundo na crise dos mísseis de Cuba senão o encadeamento organizado previamente, dentro de um tipo de Sistema Internacional, e que adquire equivocadamente status de “qualquer coisa pode acontecer”, como se o mundo e os fatos sociais fossem uma grande experiência quântica-especulativa do Gato de Schrödinger?
Teria o senhor Robert S. McNamara afirmado, antes da Guerra do Vietnam, que conflitos bélicos contemporâneos são imprevisíveis, que qualquer coisas pode acontecer? E quando o imprevisível acontece, a dita intrusão do Real, o ataque terrorista inimaginável... Ninguém poderia imaginar que os Estados Unidos seriam atingidos justo em solo Americano, que tantos teóricos geopolíticos afirmavam ser a defesa natural da América – estar longe das principais zonas de conflito. É nesse preciso momento que devemos analisar o establishment ordenatório que originou a dimensão caótica sublime – as próprias intervenções ocidentais, diretas ou influencias discretas, em certas regiões do globo, é o propulsor de alta combustão de conflitos locais e surgimento de grupos teológico-políticosradicais, a exemplo da Al-Qaeda, Taliban, Estado Islâmico... Nenhum “terrorista” deseja realmente atacar o ocidente por odiar sua cultura e modo de vida. É o puro e comum sentimento de vingança, afinal, abelhas não defendem sua colmeia senão atiçadas... O discípulo de Roberto Mangabeira Unger, ex-ministro Ciro Gomes, captou bem a essência das intervenções ocidentais em afirmação recente de que onde no mundo há muito petróleo, há instabilidade política – com o adendo: “onde no mundo” não se traduz no assim chamado mundo desenvolvido central.
Há de se convir, desse modo, que estados caóticos só podem ser estabelecidos dentro de um tipo de ordenamento sistêmico social e político prévio, onde são construídos os significados e sentidos, onde há retroatividade e interatividade social-histórica. Assim como o som não se propaga no vácuo, portanto, precisa de um meio material para se propagar, o Caos só poderá partir de um estado pré-estabelecido, mesmo que não ordenado – visto que o não ordenado não necessariamente seja o Caos. A desorganização também configura um padrão-mestre. Já a palavra Ordem, com “O” maiúsculo, em nosso caso, está ligada, além do sentido organizacional da palavra, à noção de Establishment, ou seja, toda a virtualidade-material da vida em comunidade e seus subprodutos múltiplos. Esta é a Ordem. A dialética estrutural entre o software (cultura) e o hardware (carne) ao longo das eras históricas humanas.
Seguindo por tanto tal lógica e sustentando os estudos culturais contemporâneos, não há dúvidas de que fora do campo social, linguístico e político, fora da Ordem, não pode haver nem Caos, nem ordenamento algum - eis o Deserto do Real. O Caos não existe no Universo. De moléculas a Planetas gasosos, eles não estão onde estão e não se apresentam da forma que se apresentam por haver algum tipo de obrigação consciente inerente a matéria, e do contrário, a discordância - o Caos. Tais observações, as de que o Universo é matematicamente ordenado ou caótico é um derivativo de nossa mentalidade. Não há em si normas regentes do universo – as quais já pressupõe em si sua desobediência, o que é completamente impossível na realidade. Um planeta não deixa de realizar sua trajetória em torno de outro astro – não porque não quer, mas porque não existe esse tipo de relação no Real do Universo. São forças interativas impessoais, quânticas. A norma, a Ordem/ordem, e seu inverso, a dimensão do Caos, é constituinte da esfera do ser, do sentido, da cultura.
Segue em mais duas partes, aí sim entrando na conjuntura da crise brasileira atual.