O poder do Estado sírio em torno dos alauítas
No contexto social na Síria nas vésperas do início dos protestos, que sob os auspícios da primavera árabe, levaram o país a atual situação de ruína e calamidade; os curdos eram (e ainda são) o grupo étnico/social mais organizado, vivendo de maneira semiautônoma dentro do território sírio; muito em parte pela política exclusiva de Damasco, que proporcionava vantagens a um grupo muito pequeno da população, sendo esse pequeno grupo quase que majoritariamente alauíta. Esta coletividade étnico-religiosa configura um dos sub-ramos do xiismo, que por ter entre os membros a família Assad, possui grande poder político/econômico dentro do mosaico étnico que é a Síria).
Os alauítas são um dos grupos derivados do islamismo xiita, ainda que não possa ser considerado apenas um subgrupo do mesmo, podendo ser denominada uma religião aparte (podemos denominar de xiismo ampliado). Ainda que se utilize dos mesmos textos sagrados comuns as subdivisões do Islã, os alauítas possuem ritos e tradições que em certa medida os aproximam do cristianismo, como a comemoração do Natal e do Dia de Reis. Cabe destacar que os alauítas são mais “liberais” do ponto de vista comportamental que os sunitas e xiitas, o que em parte permitiu que a governança laica da Síria.
A comunidade alauíta – através de seus líderes e chefes tribais - está ligada ao Partido Baath (Partido Nacional-Árabe, defensor do antigo pan-arabismo de base militar e inspiração nasserista) desde sua formação, tendo inclusive um alauíta como membro fundador, Zaki al-Arsuzi. Até a consolidação do Partido Baath no governo da Síria, e com o posterior golpe de Hafez al-Assad (em 1971), boa parte da população alauíta era camponesa (fellah), e viu no partido de ideologia igualitária e arabista a possibilidade de ascensão social. Até hoje os alauítas são membros do Partido Baath em grande quantidade e apoiam o governo quase que incondicionalmente.
A autonomia relativa para o Curdistão sírio, a semi-independência conquistada e a rivalidade intra-curda
Quando o conflito civil se inicia, em meados de 2012, uma das primeiras ações do Governo Assad foi ceder autonomia para as regiões curdas, o que em um primeiro momento pode parecer positivo, afinal, essas regiões poderiam ser gerenciadas de forma independente, mas por outro lado, significou que em caso de ataque dos rebeldes (mais tarde jihadistas), o Estado faria pouco ou nada para ajuda-los. Praticamente podemos afirmar que o governo de Damasco abandona a região à sua própria sorte, facilitando o avanço organizativo através do Partido da União Democrática (PYD, força política do guarda-chuva do PKK na Síria) e deste, constituindo o TEV-Dem, mecanismo de assembleias e autogoverno dos três cantões que formam a região de Rojava.
Para se defender dos ataques dos rebeldes e dos jihadistas do Daesh (ISIS ou Estado Islâmico), os vilarejos e cidades curdas se valem do apoio militar das forças de milícias ligadas ao PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), que também está em confronto com o governo da Turquia desde sua consolidação, em 1978, e com o início da luta armada, em 1984. Os curdos sírios também contam com algum apoio (de ordem tática e em poucas frentes de combate) dos peshmergas – forças semi-profissionais do Curdistão iraquiano - e sua região autônoma, que se localiza no norte do Iraque e está sob governo da direita curda, com sede em Irbil. Vale lembrar que o governo curdo no Iraque, o oficial (KRG) está sob controle do clã Barzani e é rival político do PKK em quase todas as dimensões.
Dentre estes dois agrupamentos (PKK e peshmergas do KRG/KDP, o “partido-facção” política dos Barzani), os peshmergas são vistos com certa legitimidade pela comunidade internacional. Já o PKK ainda tem sobre si a classificação de terrorista por parte do Pentágono. As forças da direita curda são semi-profissionais com efetivo estimado entre 80.000 a 200.000 homens (sendo que a mídia oficial de Irbil chega a anunciar 300.000 soldados), divididos em 36 brigadas, que variam entre si em treinamento e equipamento. Esse equipamento é oriundo de doações internacionais e equipamento capturado do exército iraquiano nos conflitos de 1991 e 2003.
Um fator interessante é o comando não unificado dos peshmergas, sendo que algumas unidades respondem ao Partido Democrático Curdo (KDP, um partido oligárquico ligado a família Barzani) e outras unidades militares se reportam a União Patriótica do Curdistão (KUP, de outra direita oligárquica, da família Talabani, mas que tem um acordo de paz específico com o PKK).
Esses dois grupos estavam em guerra civil até 1998 (KDP x KUP) – guerra esta que foi estendida até o início dos anos 2000 desta vez confrontando os oligarcas curdos com o PKK. O resultado foi a divisão do território do Curdistão iraquiano, proporcionando zonas controladas e um equilíbrio entre estas três forças. Voltando à direita curda, nota-se que, as forças semi-profissionais combinam uma estrutura militar diluída (muito parecida com a do Império Romano) com uma lealdade política abalada por grave crise institucional. Esta é causada pelo desejo do “presidente” Massoud Barzani do KDP em querer estender seu mandato por mais 2 anos, ainda que de forma ilegítima. A soma destes fatores diminui a efetividade da ajuda ao Curdistão sírio e gera desconfiança dos aliados preferenciais deste governo: Israel, EUA e os capitais transnacionais da indústria do petróleo.
O projeto político de Rojava depende de suas operações militares
Assim, cabe ao governo regional do Curdistão Sírio relegar sua sobrevivência militar (e de facto) às milícias populares, o YPG (Unidades de Proteção Popular) e o YPJ (Unidade de Proteção das Mulheres). Ambas unidades se reportam ao Democratic Union Party (PYD), partido de oposição sírio de esquerda – partido de maioria curda e aliado estratégico do PKK -, autogovernam a região.
Tanto o YPG quanto o YPJ se estruturam em forma de milícia, atuando de maneira pouco regimental (no conceito de organização castrense) e dependem muito de armamentos enviados pelo PKK via contrabando, ou capturando o equipamento abandonado pelos os outros grupos militares (SAA e Daesh). Combinados os seus efetivos, chegam a aproximadamente 60.000 homens e mulheres, o que lhe permite a atuar nas cercanias de seu território. Este, composto pelos três cantões de Rojava (Afrin, e o corredor contíguo de Kobane a Jazira, e agora ampliando a malha territorial para Shinjar) compreende aproximadamente – dentro da Síria - as cercanias da parte norte da província de Aleppo, Racqa e a província de Al Hasakah. Na outra margem do Rio Tigre, o cantão de Shinjar – de maioria yázidi e recém liberto – configura tanto a frente de guerra contra o Daesh como a disputa política entre o PKK e o KRG/KDP. A vitória sobre o ISIS em Shinjar antecipa a rivalidade entre a direita e a esquerda curda e aumenta a base do TEV-Dem (modo de governo de Rojava) projetado sobre o antigo território iraquiano.
Sugestão de leituras contínuas
Para se manter atualizado no conflito ou obter mais informações a respeito do assunto, algumas fontes são de extrema importância, como o site Kurdish Question (http://kurdishquestion.com/), o Syria Live Map.( http://syria.liveuamap.com/), o Archicivilians (http://archicivilians.com/) e com algumas ressalvas, o site de notícias Al Madsar (http://www.almasdarnews.com/)
Pedro Guedes é estudante de relações internacionais da Unisinos (pedro_0141@hotmail.com)