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ISSN 0033-1983
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Pensamento Libertário
as bases do pensamento, doutrina e teoria política da democracia radical com a igualdade social

Para uma Teoria Libertária do Poder (II): Bertolo e o poder como função social de regulação

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A idéia de libertação é uma constante no pensamento utópico – no sentido de lugar a ser construído – circulante entre todos os sentidos coletivos existentes.

Felipe Corrêa

“Para uma Teoria Libertária do Poder” é uma série de resenhas elaboradas sobre artigos ou livros de autores do campo libertário que discutem o poder. Seu objetivo é apresentar uma leitura contemporânea de autores que vêm tratando o tema em questão e trazer elementos para a elaboração de uma teoria libertária do poder, que poderá contribuir na elaboração de um método de análise da realidade e de estratégias de bases libertárias, a serem utilizadas por indivíduos e organizações.

Neste segundo artigo da série, utilizarei para discussão o artigo de Amedeu Bertolo Poder, Autoridade, Domínio. Seguem apresentadas esquematicamente as principais contribuições do autor.

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Os problemas das discussões sobre poder, autoridade e dominação

Segundo o autor, “o costume, não somente acadêmico, é começar um discurso de definições semânticas com: 1) um ponto de vista etimológico e/ou 2) um ponto de vista histórico”. No entanto, para ele, ambas as maneiras de abordagem não têm muita relevância para a discussão que pretende realizar. Segundo sustenta, a etimologia dos três termos tem origem distante, em termos de tempo, o que permitiria, no máximo, realizar um exercício de “arqueologia lingüística”. Além disso, para ele os três termos têm um significado original bastante semelhante. Poder, por exemplo, “deriva do latim ‘polis’ (patrão, possuidor)”; “Dominação deriva de ‘dominus’ (dono de casa, chefe de família); Autoridade, diferentemente, vem do latim ‘auctor’, que em sua origem significa aquele que faz crer, que acrescenta”.[1]

Com relação à utilização histórica dos termos, Bertolo identifica que são polivalentes e podem, em muitos casos, serem substituídos um pelo outro. E neste caso, segundo acredita, uma análise histórica também não poderia solucionar o problema colocado. Para ele, “em relação às definições de autoridade e poder, tem de tudo e para todos os gostos”, o que lhe motiva a buscar algumas definições que são a seguir reproduzidas.

Definições de poder


“O poder é ‘a) capacidade ou faculdade natural para atuar [...]; b) faculdade geral ou moral, direito de fazer algo; c) autoridade, especialmente no sentido concreto, corpo constituído que a exerce, governo’. (Lalande, 1971) ‘O poder é a participação nas tomadas de decisão’ e ‘uma decisão é uma linha de conduta que comporta sanções severas’ (Lasswell e Kaplan, 1969). O poder é ‘direito de mandar’ (Ferrero, 1981). ‘Chamamos de poder a capacidade de uma classe social de realizar seus interesses objetivos específicos’ (Poulantzas, 1972). ‘O poder é a capacidade de estabelecer e de executar decisões, ainda que outros se oponham’ (Mills, 1970). O poder ‘é um corpo permanente ao qual estamos acostumados a obedecer, que possui meios materiais para nos obrigar e que, graças à opinião que se tem de sua força, à crença em seu direito de mandar, ou seja, em sua legitimidade e pela esperança em sua beneficência’ (Jouvenel, 1947). Por poder, deve-se entender ‘todos os meios dos quais pode dispor um homem para persuadir a vontade de outros homens’ (Mousnier, 1971). Pode-se definir o poder como a ‘capacidade de realizar desejos’ (Russell, 1967). ‘Por poder deve-se entender [...] a possibilidade para mandatos específicos (ou para qualquer mandato) de se fazer obedecer por parte de um determinado grupo de homens’ (Weber, 1980). ‘O poder é uma comunicação regulada por um código (Luhman, 1979).”

Definições de autoridade

“A autoridade é ‘qualquer poder exercido sobre um homem ou grupo humano por parte de outro homem ou grupo’ (Abbagnano, 1964). ‘A autoridade é um vínculo entre desiguais’ (Sennet, 1981). ‘A autoridade é um modo de definir e interpretar as diferenças de força’ (Sennet, ibid.), ‘A autoridade é uma busca da estabilidade e da segurança da força dos outros’ (Sennet, ibid.). A autoridade é uma ‘dependência aceita’ (Horkheimer, s/d). A autoridade é (psicológica) superioridade ou ascendentes pessoais [...] e (sociológica) direito de decidir e/ou de mandar’ (Lalande, 1971). ‘A essência da autoridade [...] é dar a um ser humano aquela segurança e aquele reconhecimento na decisão que logicamente corresponde a um axioma supra-individual e efetivo ou a uma dedução’ (Simmel, 1978). ‘A autoridade é a posse esperada e legítima do poder’ (Lasswell e Kaplan, 1969).”

Definições de dominação

Distintamente das amplas definições de poder e autoridade, o autor nota que, em relação à dominação, há um pouco mais de acordo conceitual: “a palavra dominação é quase univocamente utilizada no sentido de poder impor ad altri (por direito ou de fato) a própria vontade, com instrumentos de coerção, físicos ou psíquicos”. O termo dominação, e seus adjetivos e verbos correlatos, é menos “polivalente que autoridade e poder. Talvez por razão do valor emotivamente negativo difundido que existe em seu uso corrente”. Ainda assim, Bertolo destaca três casos em que a dominação é utilizada em um sentido “neutro”: Simmel (1978), “para quem a dominação é uma categoria universal da interação social, da qual o poder é uma forma particular”; Dahrendorf (1970), “que propõe uma definição da dominação como ‘posse de autoridade, ou seja, como um direito de promulgar ordens autoritárias”; Lasswell e Kaplan (1969), que consideram que “a dominação é um modelo de poder efetivo (porém, o termo inglês utilizado é ‘rule’ e não ‘domination’, que poderia ser traduzido de maneira distinta)”.[2]

Como bem se pode notar nas definições expostas, a amplitude semântica certamente impõe dificuldades ao debate. Há, como aponta o autor, uma questão fundamental que se coloca entre o que se poderia chamar de problemática forma-conteúdo, em que é impossível aprofundar a discussão tomando somente a forma (o nome dos conceitos como “poder”, “autoridade”, “dominação” etc.), sem entrar nos conteúdos dados historicamente pelos autores nas discussões sobre os temas. Trata-se, neste sentido, de ir além dos termos – ou seja, o nome que se dá para uma determinada “caixa” – e entrar nos conceitos – ou seja, investigar o conteúdo da caixa. Um aspecto que já eliminaria grande parte das polêmicas geradas nas discussões do universo libertário. [3]

Por isso, coloca Bertolo, é “necessário retomar a tentativa de definição a partir de uma identificação dos conceitos e dos conteúdos, ainda que, naturalmente, esta maneira de proceder implique algumas dificuldades de léxico que tentaremos superar”.

Na realidade, os problemas apontados em relação à discussão sobre o poder não existem somente no anarquismo: “pode servir de consolo aos anarquistas saber que nem sequer a ciência oficial trouxe muita clareza neste último século para esse conjunto de ‘coisas’ (relações, comportamentos, estruturas sociais...) que estão classificadas como poder (ou como autoridade ou como domínio)”. Um problema que, se afeta as ciências humanas de maneira geral, não poderia deixar de incidir sobre o anarquismo.

O anarquismo e a teoria do poder

Bertolo identifica a lacuna existente nas discussões teóricas anarquistas sobre o tema do poder. Tratar-se-ia, para ele, não necessariamente de “desatar, mas ao menos de precisar claramente um nó conceitual extremamente complexo – e não simplesmente de colocar-se em acordo em relação às palavras –, um nó central dentro do pensamento anarquista”.

Paradoxalmente, coloca, “o anarquismo – que pode ser considerado como a crítica mais radical da dominação explicitada até o momento, crítica teórica e crítica prática – não produziu uma teoria do poder mais articulada e sutil do que as apologias da dominação”.

O autor acredita que “as geniais intuições sobre o poder que os ‘pais’ do anarquismo tiveram, não foram seguidas por uma reflexão adequada à importância das mesmas”. Intuições que, conforme coloca, ainda hoje seriam fecundas, mas que, se não forem objeto de discussão e aprofundamento, correm o risco de “esclerosar-se em fórmulas estereotipadas, em crenças, em tabus, perdendo grande parte de sua utilidade como hipóteses fundamentais de trabalho para a interpretação e para a transformação da realidade”.

A necessidade de aprofundamento no debate sobre o poder, portanto, seria fundamental no campo libertário, para o estabelecimento de métodos de análise adequados e de estratégias capazes de levar a cabo a transformação social. Para isso, não bastariam as intuições que Bertolo entende estar presentes nos clássicos: “As intuições esclerosam-se e a relativa falta de precisão terminológica e conceitual, inevitável e talvez necessária nos primeiros desenvolvimentos da reflexão, convertem-se em obstáculo para o progresso do pensamento e da ação, fonte de injustificáveis ‘ortodoxias’ e, portanto, de injustificáveis ‘heresias’, de imobilismo tradicional e de besteiras ‘inovadoras’, de discussões semânticas e de impotência social”.

O presente escrito de Bertolo tem por objetivo, como ele mesmo afirma, “modesta e ambiciosamente – propor algumas definições que segundo o autor poderiam tornar o debate entre anarquistas não somente mais enriquecedor, mas também tornar menos árdua a confrontação entre anarquistas e não-anarquistas”. De outra maneira, acredita, corre-se o risco de continuar num “diálogo de surdos”. Para isso, propõe definir, em termos de forma e conteúdo, poder, autoridade e dominação: “está claro que o trabalho de definição está dirigido não tanto aos termos, mas aos conceitos que estão por trás dos termos e aos conteúdos que estão por trás dos conceitos”.

Propostas de definição

Buscando um alinhamento conceitual, Bertolo sugere definições padrão para poder, autoridade e dominação.

Poder

“A produção e a aplicação de normas e sanções definem então a função de regulação social, uma função para a qual proponho o termo poder”. O autor acredita que o poder, definido nesses termos, possui relação com o conceito de força coletiva de Proudhon e também com a definição de Lasswell e Kaplan colocada anteriormente: “O poder é a participação nas tomadas de decisão’ e ‘uma decisão é uma linha de conduta que comporta sanções severas”. Acredita que Clastres também trabalha com uma definição semelhante ao distinguir o “poder não-coercitivo”, que se assemelharia a essa definição de poder, e o “poder coercitivo”, que está próximo da definição do autor para dominação. Para Clastres, “o poder político como coerção (ou como relação de mando-obediência) não é o modelo do verdadeiro poder, mas simplesmente um caso particular”. Também sustenta que “o social não é pensável sem o político, em outras palavras, não há sociedade sem poder”.

Neste sentido, há alguns elementos que devem ser destacados. Para Bertolo, poder define-se em torno da regulação social e pode ou não ser coercitivo (implicar dominação, portanto). Neste sentido, como qualquer sociedade possui sistemas de regulação, não haveria, neste sentido, sociedade sem poder, endossando a afirmação de Clastres.

Identificando que se utiliza na literatura sobre o tema o termo poder para designar distintas categorias conceituais, o autor propõe “conservar este termo só para definir [...] a função social de regulação, o conjunto dos processos com os quais uma sociedade regula-se, produzindo normas, aplicando-as, fazendo-as respeitar”. E neste sentido, define o poder a partir de um nível macro, que funcionaria em termos de gestão societária e estaria ligado aos processos de tomada de decisão.

Autoridade

Para a categoria autoridade, Bertolo defende a seguinte utilização: “proponho, finalmente, chamar autoridade as assimetrias de competência que determinam assimetrias de determinações recíprocas entre os indivíduos e a influência nas assimetrias por razão das características pessoais”. Neste sentido, a autoridade estaria ligada fundamentalmente à capacidade de exercer bem uma determinada atividade e às múltiplas influências que, pessoalmente, se exercem neste sentido. Distinguindo as relações pessoais e funcionais, Bertolo coloca: “no caso das relações pessoais, podemos definir a assimetria como influência; no caso das relações funcionais podemos definir a assimetria como autoridade”.

Dominação

“A dominação define, então, as relações entre desiguais – desiguais em termos de poder, ou seja, de liberdade –, define as situações de ‘supraordenação’ e subordinação; define os sistemas de assimetria permanente entre grupos sociais.” A dominação, neste sentido, implicaria as desigualdades de poder que definiriam relações de mando/obediência permanentes, também em nível macro, não entre indivíduos, mas entre grupos sociais (castas, classes etc.).

A relação de dominação fundamenta-se, portanto, nas relações de mando/obediência, “nas quais o mando possui um conteúdo de regulação do comportamento daquele que obedece”. Essa relação de mando/obediência, segundo Bertolo, não se dá por meio da função de regulação. Ele defende que não se obedece (em um sentido amplo) uma norma; para ele uma norma se respeita. A obediência está ligada a um mando, “ou seja, à forma em que se apresenta a norma dentro de um sistema de dominação”. Assim, a dominação estaria ligada fundamentalmente à “expropriação da função de regulação exercida por uma minoria”, responsável por impor suas regras “ao resto da sociedade” – ou seja, estaria ligada à imposição.

Portanto, se a “função social de regulação” de uma sociedade é “exercida somente por uma parte da sociedade, se o poder é então monopólio de um setor privilegiado (dominante), isso dá lugar a outra categoria, a um conjunto de relações hierárquicas de mando/obediência que proponho chamar de dominação”. A dominação, assim definida, implicaria monopólio do poder e hierarquia.

Poder, autoridade e dominação

Definidos nestes termos, Bertolo afirma que poder e autoridade seriam conceitos “neutros”, ou seja, não são necessariamente nem bons e nem ruins. A autoridade implicaria algo evidente na sociedade: as diferenças de competências entre indivíduos e grupos e a interação e influência mútua que se exerce entre os diversos agentes em qualquer relação social. Ou seja, é uma categoria que abarca e assume como inevitável a diversidade social. Em relação ao poder, coloca o autor: “definimos assim o poder como uma função social ‘neutra’ e inclusive necessária, não somente para a existência da sociedade, da cultura e do homem, mas também para o exercício daquela liberdade vista como escolha entre possibilidades determinadas, que tomamos como ponto de partida de nosso discurso”.

Essa relação entre poder e liberdade permite compreender mais as proposições de Bertolo. Para ele, a liberdade está diretamente ligada às possibilidade de escolha que cada um possui e, assim, é fundamental “para a liberdade como autodeterminação o nível de participação no processo de regulação, porque o indivíduo é mais livre [...] quanto maior é seu acesso ao poder”. Se o poder define-se em torno das funções de regulação de uma sociedade, é natural que, quanto mais essas funções forem compartilhadas, maior seria o nível de liberdade dessa sociedade. “Um acesso ao poder igual para todos os membros de uma sociedade é, então, a primeira e iniludível condição de uma liberdade igual para todos”. O que o autor chama de “poder para todos”, ou seja, uma democratização generalizada do poder, ou pelo menos uma generalização das oportunidades para o acesso ao poder, seriam fundamentais para processos societários de liberdade, de igualdade e, por que não, de democracia.

A diferenciação entre os conceitos de poder e dominação é fundamental para Bertolo. Poder, como se viu, implicaria regulação social. Este poder pode ser mais ou menos compartilhado em uma determinada sociedade e, quando ele é exercido por uma minoria a partir de relações hierárquicas de mando/obediência, isso significa que esse poder implica dominação. Quanto mais coletivo é o poder, maior é a liberdade de uma sociedade – e portanto, é possível notar uma ligação realizada pelo autor entre liberdade e igualdade.

Contribuições filosóficas

O artigo de Bertolo traz ainda algumas reflexões filosóficas que podem auxiliar na compreensão do tema. Abaixo estão os principais eixos de discussão, que serão apresentados brevemente.

Bertolo quer levar em conta as “determinações culturais” do homem e não as “determinações naturais” marcadas pelo instinto e pelo ambiente, que, segundo acredita, “não desempenham um papel análogo nesse estranho animal que é o homem”. Para ele, “o homem não conhece instinto no sentido restrito (ou seja, respostas precisas de comportamento herdadas geneticamente frente a estímulos ambientais dados), mas, no máximo, rastros ou resíduos de instinto, que possuem escasso ou nulo significado social”. Portanto, ele compreende que “para o homem, o ‘ambiente’ é mais cultural que natural”, já que “o ambiente do ser humano está constituído por relações com outros homens e que as relações com o mundo ‘dos objetos’ passam por uma mediação simbólica”. Assim, uma discussão sobre o poder deve fugir da busca dos instintos naturais do homem, que estariam presentes em uma determinada natureza humana.

Como para ele o ambiente humano é muito mais cultural do que natural, o poder, nessa perspectiva de regulação social, não provém de um instinto natural ou de uma determinada natureza humana, mas de uma determinada cultura forjada nas relações sociais. “O homem deve produzir normas, mas pode produzir as normas que quiser.” As normas seriam, então, uma operação central da sociedade e seu conteúdo não estaria determinado a priori, mas seria forjado em meio a uma realidade que é ao mesmo tempo cultural e social.

Essa realidade social é forjada por uma relação dialética entre indivíduo e sociedade, relação em que o indivíduo, ainda que também possa determinar a sociedade, é mais determinado por ela: “o indivíduo singular sempre é mais determinado pela sociedade do que ele pode determiná-la. O homem produz a sociedade coletivamente, mas é modelado por ela individualmente.”

Assim, se poderia dizer que um tipo de poder que implique dominação não deve ser analisado pelos instintos naturais ou pela natureza humana do homem, mas por suas relações, que implicam aspectos sociais e culturais. Bertolo identifica dois tipos fundamentais de justificativas da dominação: “um primeiro tipo de enfoque é o que, partindo da dominação para o poder, justifica a primeira com motivações biopsicológicas (ou seja, mecanismos psicológicos ‘naturais’, inatos): há personalidades predispostas naturalmente à dominação e outras naturalmente predispostas à submissão.” Esse enfoque apóia-se nos “elementos estruturais mais atrativos chegando a dizer que a subdivisão ‘natural’ dos homens em duas categorias (os amos por natureza e os escravos por natureza) produz efeito benéfico para ambos e, no fundo, é um admirável artifício da natureza ou da providência para tornar a sociedade humana possível e as vantagens que disso derivam”. “O segundo tipo de enfoque é cultural”, e aqueles que o defendem consideram insustentáveis as explicações naturais do poder/dominação. A partir desse enfoque, considera-se que o poder/dominação “não é efeito de uma desigualdade preexistente, mas, ao contrário, é a causa da primeira desigualdade fundamental entre os homens”.

Bertolo acredita ainda poder classificar os enfoques sobre a gênese do poder/dominação diferentemente: “aqueles que explícita ou implicitamente o pressupõem, aparecendo ao mesmo que o homem e/ou sua sociedade, e aqueles que postulam o nascimento em um certo momento da história”.

Em seu conceito de dominação, o autor descarta os enfoques biopsicológicos, naturais, pretendendo uma abordagem cultural da dominação. Para ele, estudos como os de Clastres, como por exemplo A Sociedade Contra o Estado, demonstram que há um histórico de culturas que não possuíam dominação, mas apenas poder. Ainda que seja uma hipótese, Bertolo identifica a origem da dominação como uma mudança cultural na sociedade que teria ocorrido num momento determinado, quando o homem já vivia em sociedade.

Anarquismo, poder, autoridade e dominação


A partir das definições propostas por Bertolo, algumas conclusões são possíveis. Dividindo as assimetrias nas relações sociais entre autoridade (funcionais) e influência (pessoais), pode-se afirmar que o autor trabalha com quatro categorias fundamentais:

1. Poder: Função social de regulação, conjunto de processos com os quais uma sociedade se regula produzindo normas, aplicando-as, fazendo-as respeitar.

2. Dominação: Função social de regulação que é exercida somente por uma parte da sociedade, sendo o poder monopólio de um setor privilegiado (dominante) e implicando relações hierárquicas e de mando/obediência.

3. Autoridade: Assimetrias de competência que determinam assimetrias de determinações recíprocas entre os indivíduos.

4. Influência: Assimetrias existentes por razão das características pessoais.

Quando o autor assume o poder e a autoridade (incluindo também a influência) como categorias “neutras”, ele está realizando um julgamento a partir da ética/moral anarquista. Neutros, pois o anarquismo historicamente considerou, nesses termos, dentro do seu campo de relações justificáveis ética e moralmente, as relações de influência, de autoridade e também de poder – entendendo-as, claramente, a partir das categorias definidas por Bertolo.

Historicamente, o anarquismo colocou-se contrário à dominação: para os anarquistas, a regulação social deveria ser coletivizada, e as propostas de autogestão, de federalismo e de democracia direta sempre buscaram este sentido de compartilhar o poder e de exercê-lo em benefício da coletividade.

A sociedade capitalista e estatista foi sempre compreendida como uma sociedade não só de poder, mas de dominação, já que o poder não estaria coletivizado e seria exercido somente por uma minoria – a qual foi chamada por diversos termos (classe dominante, classe capitalista, burguesia etc.) – que exerceria hierarquia e relação de mando/obediência à maioria – (a qual chamou-se de proletariado, classe oprimida, classe trabalhadora etc.).

Neste sentido, a estratégia anarquista estaria voltada para transformar as relações de dominação em relações de poder, que não deveriam possuir hierarquia ou relações de mando/obediência em seu seio. O poder buscado pelo anarquismo deveria ser coletivizado, socializado, sendo a participação no poder, ou pelos menos a oportunidade de participação, aberta para todo o conjunto da população, a qual deveria decidir suas regras e garantir sua aplicação com base em mecanismos de fato democráticos (democracia direta), garantidos pela autogestão e pelo federalismo.

______

* Amedeu Bertolo. Poder, Autoridad, Dominio: una propuesta de definición. Artigo originalmente publicado em 1983 na revista italiana Volontà. Citações traduzidas para o português a partir da versão em espanhol, traduzida por Heloísa Castellanos, disponibilizada na internet [http://www.anarkismo.net/article/15050] e que consta na compilação organizada por Christian Ferrer, El Lenguaje Libertario, publicada pela Libros de Anarres, de Buenos Aires, em 2005.

Notas:


1. Recorri, para essa tradução, ao original em italiano Potere, autorità, dominio: una proposta di definizione. Em italiano, Bertolo coloca: “‘Potere’ deriva dal latino potis (padrone, possessore), così come ‘dominio’ deriva da dominus (padrone di casa, capofamiglia); ‘autorità’ invece viene dal latino auctor che significava originariamente colui che fa crescere, che accresce.” Trecho um tanto diferente da tradução para o castelhano: “Poder deriva del latín ‘polis’ (= patrin, amo) así como Dominación deriva de ‘dominus’ (dueño de casa, jefe de familia); Autoridad, en cambio, proviene del latín ‘auctor’, que en su origen significa el que hace crecer, el que acrecienta.” A versão em italiano pode ser lida em http://asperimenti.noblogs.org/files/2010/10/Potere_autorit%25C3%25A0_dominio.pdf.

2. Bibliografia (por ordem de citação): A. Lalande, Dizionario critico di filosofia, ISEDI, Milán, 1971. / H. D. Lasswell y A. Kaplan, Potere e società, Etas, Milán, 1969. / G. Ferrero, Potere, Sugarco, Milán, 1981. / N. Poulantzas, in Franco Ferrarotti, La sociologia del potere, Laterza, Bari, 1972. / W. Mills, Politica e potere, Bompiani, Milán, 1970. / B. De Jouvenel, Il Potere, Rizzoli, Milán, 1947. / R. Mousnier, Le gerarchie sociali dal 1450 ai nostri giorni, Vita e pensiero, 1971. / B. Russell, Il potere, Feltrinelli, Milán, 1967. / M. Weber, Economía y sociedad, F.C.E., México, 1980. / N. Luhman, Potere e complessità sociale, Il Saggiatore, Milán, 1979. / N. Abbagnano, Dizionario di filosofia, UTET, Turín, 1964. / R. Sennet, La autorità, Bompiani, Milán, 1981. / M. Horkheimer, citado por T. Eschemburg, Dell’autorità, Il Mulino, Bolonia, 1970. / G. Simmel, Il dominio, Bulzoni, Roma, 1978. / R. Dahrendorf, Classi e conflitto de classe nella società industriale, Laterza, Bari, 1970.

3. Pode-se falar que Proudhon era contra a autoridade e conseguir facilmente trechos de seus escritos com essa afirmação. Da mesma maneira, pode-se afirmar que Bakunin era contra o poder e também conseguir respaldo em seus textos teóricos. No entanto, ambas as afirmações tornam-se vazias se não se coloca o que Proudhon entendia por autoridade e o que Bakunin entendia por poder. Aplicando brevemente uma análise de conteúdo em relação às afirmações colocadas, pode-se dizer que Proudhon, ao afirmar-se contrário à autoridade, opunha-se à autoridade como alienação e apropriação por monopólio da força coletiva; Bakunin, ao opor-se ao poder, colocava-se contrário ao Estado. Sem o aprofundamento da discussão nesses termos, o debate sobre o poder esvazia-se completamente.






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