A concepção malatestiana de ciência vincula-se, em certa medida, ao paradigma das ciências naturais; a ciência, afirma Malatesta (2007a, p. 46), possui como fim “estudar a natureza, descobrir o fato e as ‘leis’ que a regem, ou seja, as condições nas quais necessariamente o fato ocorre e se reproduz”. Para ele, “uma ciência está plenamente constituída quando pode prever o que ocorrerá; se a previsão não se verifica, quer dizer que havia um erro e só resta proceder a uma indagação mais ampla e profunda”. Um dos traços essenciais da ciência é, por isso, sua capacidade de predição, com certo nível de precisão e verificação empírica daquilo que foi previsto. “O azar, o arbítrio, o capricho são conceitos estranhos à ciência, a qual investiga aquilo que é fatal, aquilo que não pode ser de outra maneira, aquilo que é necessário.”
Entretanto, na concepção malatestiana, esse paradigma, que serve em alguma medida para a investigação de fenômenos físico-químicos – contrariamente àquilo que sustentavam os mecanicistas de sua época –, não dá conta completamente dos fenômenos sociais. Seria, por isso, necessário estabelecer diferenças entre esse paradigma científico das ciências naturais e o paradigma das ciências sociais.[15]
Há um elemento fundamental que subsidia a diferenciação entre as ciências naturais e as ciências sociais: a ação (ou agência) humana. O fato de homens e mulheres possuírem vontades próprias e certa liberdade em sua conduta – “capacidade de querer”, nos termos de Malatesta (2007a, p. 41) – complexifica a análise dos fenômenos do campo social. Por esse motivo, não se poderiam equiparar fenômenos naturais – como, no exemplo do próprio autor, o surgimento de uma flor – com o desenvolvimento da história humana.
Para Malatesta (2007a, p. 40), o que caracteriza o paradigma das ciências sociais é sua constante provisoriedade. Se nem as ciências naturais são infalíveis, possuem capacidade de explicar tudo, e se os próprios cientistas naturais deveriam saber que as “verdades” descobertas não podem ser tomadas em conta sem o devido questionamento, nas ciências sociais esses aspectos são ainda mais evidentes.
O autor enfatiza que “a dúvida deve ser a posição mental daqueles que aspiram aproximar-se cada vez mais da verdade ou, pelo menos, dessa porção de verdade que é possível alcançar”. Tal abertura para a compreensão da realidade seria fundamental, visto que, em particular nas ciências sociais, as verdades absolutas, de certeza preditiva, praticamente inexistem. Malatesta (2007a, pp. 39-41) sustenta que “na ciência, as teorias [são] sempre hipotéticas e provisórias” e “as provas são algo relativo”; a ciência se contenta “com o acercar-se [da verdade absoluta] fatigosamente, descobrindo verdades parciais, que [são consideradas] sempre provisórias e revisáveis”.
Ao ressaltar essa “porção de verdade que é possível alcançar”, Malatesta reconhece que a complexidade da vida, da realidade social, é muito maior do que a capacidade daqueles que querem compreendê-la.[16] Há, assim, uma diferença fundamental entre natureza e pensamento[17]; ao analisar a realidade, uma pessoa nunca possui condições de apreendê-la em sua totalidade e, por isso, o conhecimento é sempre parcial, fragmentário.
Por isso, assumir a provisoriedade de métodos e teorias, conscientizar-se dos limites da ciência, adotar uma postura crítica de dúvida e abertura permanente seria fundamental para se obter um conhecimento mais adequado da realidade. Trata-se, para Malatesta (2007a, pp. 40-41), de defender essa “vontade de saber”, que “deixa aberto [...] o campo ilimitado da investigação e do descobrimento”. Aqueles que buscam compreender a realidade devem, pois, utilizar “hipóteses de trabalho, ou seja, [a formulação] de suposições que servem de guia e de estímulo para as investigações”; mostrando-se incorretas, essas hipóteses e suposições devem ser reformuladas com o intuito de ampliar o conhecimento.
São, portanto, os métodos de análise e as teorias sociais que devem se adaptar à realidade e não o contrário. Devem ser utilizados na medida em que ajudem a compreender essa realidade e, mostrando-se ineficazes, devem ser aprimorados e/ou substituídos. Deve-se, dessa maneira, buscar uma postura antidogmática diante dos fatos e um ferramental teórico-metodológico que não se confunda com doutrina/ideologia e que possa ser utilizado, aprimorado ou substituído, na medida de sua capacidade explicativa.
É por esse motivo que Malatesta (2007a, p. 41) considera não haver uma ciência anarquista, um conjunto único de métodos de análise e teorias sociais que poderia ser elevado à condição de princípio doutrinário/ideológico, visto que, se esse conjunto demonstrar-se ineficaz, deve ser aprimorado ou substituído, sem que isso implique o abandono dos princípios anarquistas: “protesto contra a qualificação de dogmático porque, ainda que eu esteja firme e decidido sobre aquilo que quero, sempre tenho dúvidas sobre aquilo que sei e penso”. Trata-se de uma certeza em relação aos princípios anarquistas e de uma incerteza, uma dúvida permanente, relativa ao campo teórico-metodológico.
Além disso, a ciência constitui um instrumento de poder; para Malatesta (2007a, p. 42), “a ciência satisfaz certas necessidades intelectuais e é, ao mesmo tempo, um instrumento muito eficaz de poder”. A estruturação dominadora e hierárquica da sociedade conta, na esfera cultural/ ideológica, com esse poderoso instrumento de poder, que pode ser utilizado para a dominação; não conhecer implica que se aceite o conhecimento de outros e, no caso desses outros estarem comprometidos com os interesses dominantes, como frequentemente estão, isso significa aceitar uma leitura de mundo dominante.
A ciência encontra-se, assim, entre os instrumentos que vêm fortalecendo a estruturação dominadora da sociedade; não se pode aspirar, desde uma perspectiva emancipadora, que ela governe o mundo. Malatesta (2007a, pp. 40; 45) enfatiza, nesse sentido, que a ciência não pode ter como missão “regular a conduta dos homens”; o autor se opõe, portanto, às proposições do tipo saint-simonianas, que apontavam a necessidade de a sociedade ser conduzida pelos sábios. Assim como a economia e a política, numa futura sociedade, a ciência também deveria ser socializada. “Em nosso programa está escrito não somente pão para todos, mas também ciência para todos.” A socialização da ciência, parte do programa anarquista, é importante, pois sua produção especializada está ligada, na maioria dos casos, aos interesses dominantes; a própria produção do conhecimento separada da sociedade em geral e dos trabalhadores em particular fortalece as diferenças entre as classes sociais. Segundo a noção malatestiana, os trabalhadores deveriam ter condições, por si mesmos, colocando fim entre a divisão do trabalho manual e intelectual, dedicar-se à produção científica e desenvolvê-la em seu próprio favor.
Essa socialização, entretanto, não decorreria automaticamente da socialização econômica ou política; conforme aponta Malatesta (2007a, p. 45), a ciência tem de ser conquistada. Ou seja, se no campo econômico e político os trabalhadores deveriam tomar os meios de produção, de administração e de controle, no campo científico eles deveriam expropriar a ciência e socializá-la entre todos. A ciência, conforme se discutirá adiante, constitui parte da esfera cultural/ideológica, e, como tal, não somente sofre os efeitos das esferas econômica e política/jurídica/militar, mas possui condições de influenciá-las. O saber científico, dessa forma, constitui um instrumento de poder e possui relevância nos processos econômicos e políticos; por isso deve, também, por meio de um processo de transformação, ser socializado.
Finalmente, ainda que a ciência não seja neutra, ela pode ser utilizada para diferentes propósitos. Malatesta (2007a, pp. 39; 42) afirma que “a ciência é uma arma que pode servir para o bem ou para o mal, mas ela mesma ignora completamente a ideia de bem e de mal” e “serve indiferentemente [...] para a libertação e para a opressão”. Evidencia-se, aqui, novamente, a necessidade de compreender a diferenciação das categorias ciência e doutrina/ideologia; uma produção científica bem elaborada, ainda que, no momento de sua elaboração, possua uma finalidade específica – o que, em geral, qualquer produção científica possui – pode ser utilizada de distintas maneiras e com distintos propósitos.[18] Isso explicaria o fato de escritos como os de George Sorel terem sido apropriados tanto pela extrema esquerda quanto pela extrema direita; foram apropriados elementos teórico-científicos e incorporados dentro de um quadro doutrinário/ideológico distinto. Explicaria, também, como escritos de conservadores como o general Clausewitz foram apropriados pela esquerda para teorizar sobre a estratégia revolucionária.
Entretanto, cumpre apontar que as produções científicas não servem a qualquer fim; a dúvida e a abertura para os métodos e teorias possuem um limite. Uma leitura da realidade (ciência) que considere, por exemplo, não haver classes sociais na sociedade pode colocar em xeque princípios (doutrina/ideologia) socialistas, como o classismo. O mesmo poderia ser dito acerca da utilização, por exemplo, do funcionalismo estruturalista como base científica para análise social. Sendo a sociedade considerada um organismo sem possibilidades significativas de mudanças e transformações, colocar-se-ia em xeque princípios básicos de qualquer corrente da esquerda. Ter-se-ia, nesses casos, uma influência do campo científico no campo doutrinário/ideológico, afetando elementos de seu núcleo fundamental e demonstrando que os métodos de análise e as teorias sociais não são neutros. Pode-se dizer que a dúvida e a abertura em relação ao campo científico, desde uma perspectiva doutrinária/ideológica, possuem como limite os princípios dessa doutrina/ideologia; no caso do anarquismo, o ferramental teórico-metodológico utilizado para a compreensão da realidade possui como limite os princípios anarquistas. Aponta-se, enfim, para a necessidade de uma abertura teórico-científica, na medida em que ela possa ser conciliada com os pressupostos doutrinários/ideológicos.
Ciência em geral e ciências sociais em particular
Sintetiza-se brevemente, a seguir, as concepções de Malatesta acerca da ciência na sociedade.
Afirmar a distinção entre os campos científico e doutrinário/ideológico não significa minimizar o papel ciência, que possui potenciais a serem explorados. A ciência em geral permite compreender a natureza, nela incluída a humanidade, por meio da descoberta de leis que a regem e que permitem explicar a ocorrência e a reprodução de fenômenos diversos. Ela demonstra seu desenvolvimento na medida de sua capacidade preditiva. As ciências sociais em particular diferenciam-se, paradigmaticamente, das ciências naturais; a ação humana presente nas primeiras implica um caráter particular que as distingue das segundas. As ciências sociais envolvem provisoriedades e incertezas; o conhecimento é sempre parcial, fragmentário e as certezas preditivas inexistem. Na investigação desse campo, a postura dos pesquisadores deve ser a de dúvida e abertura permanentes, permitindo que se aproxime da porção de verdade que se pode encontrar. Assim, as ciências sociais não podem ser consideradas dogmas ou mesmo princípios ideológico-doutrinários; os partidários de uma determinada doutrina/ideologia, como os anarquistas, devem ter condições de aprimorar métodos e teorias sem que isso implique o abandono de suas posições políticas. Trata-se da adoção de uma postura de certeza ideológico-doutrinária e dúvida teórico-metodológica. O fato de a ciência não ser neutra e possuir métodos e teorias que se relacionam mais ou menos adequadamente com as diferentes doutrinas/ideologias exige que, mesmo com esse antidogmatismo relativo ao campo científico, se conciliem métodos e teorias com as posições ideológico-doutrinárias. Pelas relações de poder implicadas, os cientistas não devem governar a sociedade; o campo científico, numa sociedade futura, deve ser socializado, por meio de um processo que exige intervenção direta da ação humana, visto que não decorre automaticamente da socialização econômica e/ou política.
Notas da parte 2
15. Ainda assim, nos textos avaliados não fica exatamente claro se Malatesta acredita que essas diferenças são essenciais ao campo avaliado (natural ou social), não havendo, dessa maneira, qualquer possibilidade de as ciências sociais tomarem como modelo as ciências naturais, principalmente pela variável da ação humana; ou se, distintamente, como sustentaram outros pensadores, as ciências sociais teriam essas diferenças por razão de sua imaturidade, e poderiam, por meio de um desenvolvimento, chegar ao nível preditivo das ciências naturais. Fato é que, naquele momento, Malatesta afirma a necessidade de se diferenciar os dois paradigmas.
16. Posição que se aproxima daquela anteriormente sustentada por Bakunin (2000b, p. 61), que afirmou, em 1871, que “a ciência compreende o pensamento da realidade, não a realidade em si mesma; o pensamento da vida, não a vida”.
17. Não se pode, segundo Malatesta (2007, p. 42), “confundir a ciência com a moral, com a força, no sentido mecânico da palavra, que é uma entidade definível e mensurável, com as forças morais, a natureza com o pensamento, a lei natural com a vontade”. (grifos adicionados)
18. Pode-se utilizar como exemplo disso a produção marxiana. Marx, em O Capital (1985), elabora uma explicação bastante convincente acerca da dinâmica do capital nas sociedades de capitalismo desenvolvido; trata-se de uma produção científica que se fundamenta em uma perspectiva teórico-histórica e explica o funcionamento de uma realidade determinada. Certamente a perspectiva doutrinária/ideológica da produção marxiana era a libertação dos trabalhadores por meio de um processo de transformação que instauraria o socialismo; tal era o porquê da elaboração desse seu trabalho, seu objetivo fim, presente em todas as produções científicas que, portanto, não são neutras. Entretanto, essa produção científica, ainda que tenha sido produzida no campo da esquerda socialista e que tenha propósitos determinados, não obrigatoriamente funciona a serviço desses propósitos. O julgamento valorativo acerca do que Marx descreve e explica – por exemplo, a exploração do trabalho por meio da extração de mais-valia –, ou seja, se aquilo que está em O Capital é “bom” ou “ruim”, “certo” ou “errado”, “justo ou injusto”, é um juízo de valor estabelecido pelos leitores com considerável independência das posições valorativas de Marx. Da explicação científica marxiana podem decorrer diferentes posições. Os socialistas, como em geral o fizeram, interpretam como se aquilo que explica Marx demonstrasse que o capitalismo seria algo ruim, errado e injusto para os trabalhadores que, por esse motivo, deveriam investir em um processo de transformação do capitalismo. Ainda assim, leitores conservadores poderiam observar toda a explicação de Marx e concordar que as sociedades de capitalismo industrial realmente são assim, mas acreditar, por uma série de razões – mérito por esforço próprio, diferenças naturais de aptidão ou inteligência, dádiva divina etc. – que isso seria bom, certo e justo para a sociedade. Ou seja, o fato de uma produção teórico-científica explicar adequadamente uma realidade determinada não implica, obrigatoriamente, que de seu estudo decorram, obrigatoriamente, posições doutrinárias/ideológicas similares às de quem a produziu. A doutrina/ideologia não decorre automaticamente da ciência.
Bibliografia ao final da terceira parte.