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ISSN 0033-1983
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Contos de ringues e punhos
ensaios de um jornalista abstêmio e um treinador de luta e contato

Um lutador (conto)

pintando e colorindo

lutando e sobrevivendo

Bruno Lima Rocha (Bruno Rocha)

As luzes se apagam, acabou tudo. A arena que estava iluminada, platéia pulando, urrando entusiasmada - "mata, mata o cara, mata o Touro!" -, foi todo mundo prá casa. Era como num filme, sem historinha ianque de final feliz, e tem pouca gente rindo (o produtor, o dono do cinema, a distribuidora, alguns atores estrelinhas idiotas). E era tudo pura besteira. O olho tá roxo, supercílio aberto, luxação na coxa, o antebraço tem um ovo igual que de avestruz, hematoma na barriga e no peitoral. O outro, ahh, o outro tá bem pior, afinal, ele também perdeu, mas perdeu mais. Tava bem pior também porque era mais bruto, valente e burro; a galera chama de Touro, bicho forte, grosso, estúpido e viril. Puro idiota perdeu apanhando na técnica, no vigor ele ganhava, mas ele - o que “venceu”, era mais inteligente.

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O oponente era mais bruto porque tinha sido brutalizado desde moleque. Apanhava do pai, a mãe era só trabalho e faxina, até que um professor de educação física na escola de 1o grau da favela levou o cara prá treinar. Bolsista na academia de playboy, ganhou o apelido de Feijão. Aí escovou o marrom que puxava o treino, apagou o cara num estrangulamento de frente, e foi promovido. Passou a ser chamado de Touro. Se achava sobrevivente, saiu da multidão na porrada. Grande erro mané, igual que tu tem mais uma renca lá fora, passando de mil só no Rio, imagina lá prá cima?! Volta e meia um desanda, sai do tatame, larga o ringue, cai no mundo e vai em cana.

"Porra, e os caras vão grampeado de vacilo né?! Bando de otário, a gente se mata aqui na arena e depois os caras metem um cano na boca de um infeliz e rodam na outra esquina. Os verme ainda tomam o que ele ganhou no dedo e o mané, perde tudo. Até quando?" Isso, o cara que ganhou, o Zé Furacão, pensava enquanto levanta o cheque de 500 reais, prêmio por ter quebrado 3 costelas com a canela e nocauteado o Touro com uma cotovelada diagonal, no quengo diziam, no encaixe do maxilar disse o doutor. "Os caras vão em cana e pelo motivo errado. Se ainda fosse por um lance de consciência, mas não, é sempre com parada errada." Isso o Zé aprendeu depois que seu professor o levou ao cinema no Shopping prá assistir um filme, de um tal de Hurricane, o Furacão Rubin Carter, boxeador negro dos EUA que comeu mais de vinte anos de cana. Voltou prá favela com apelido. "Professor, quero que me chamem de Furacão, em homenagem aquele cara do filme, finalmente vi um troço que gostei e muito."

"O Rubin sim dá prá chamar de irmão. Vê se ele foi dar curso de segurança e defesa pessoal pros vermes? Vê se ele deu aula prá Civil? Porra nenhuma, negro nasceu, e negro ficou!" Apagou mais um holofote, o tapete fedia, as cordas ainda tavam molhadas, o Zé pensou na sua área e quis ir embora dali. "Eu quero é ir prá casa", aí num relance descobriu que sua casa era um ringue, tablado de corda com tatame e gritaria. "Ahh, eu podia subir em vários ringues, mas não sou gladiador. Gosto de gente como eu, simples e raçuda, então faço o que eu sei, faço o que faço. Sei que tem uma galera me apoiando, torcendo, então essa porra é importante; essa porra só pode ser importante."

Passa um monte de caras cumprimentando. Chamam a atenção prá si mesmos elogiando a luta do Zé. Mais da metade não vale nada, bando de riquinho brincando de mau e tirando onda com cabelo raspado e orelha torta, raça de merda. "Beleza Zé, cê acabou com ele!" "Aí hem Zé, vai acabar no Pride cara!" Porra nenhuma. "Esses playboys tinham é que ficar sarados com uma enxada na mão, plantando alface e cebola de sol a sol." O Zé dá aquele sorriso amarelo, toma um pouco de guaraná, suspira, "calma mano, lembra dos menor da área, você é um exemplo, pelo menos eles não caem no crime, ao menos eles não perdem o rumo". E dá-lhe elogio, tome babação. "Esses caras são é tudo 171, se eu chego na academia onde eles treinam não passo nem na catraca. Vão dizer na recepção que lá já tem faxineiro e vigia. Bando de falso."

"Aí Zé, arrasou, arrancou o coro do Touro, o cara virou é boi manso." "Vocês é que querem acabar comigo, tirar o meu couro, pedir mais segurança no teu bairro, mal posso ir à praia. A gente tá sem grana, queimando a sola do chinelo velho indo pro terminal e passam vocês num carro novo, grana do pai e umas patricinhas fingindo ser felizes. A alegria de vocês é a nossa desgraça, mas isso vai acabar, ahh vai. A minha parte eu vou fazer, cês vão ver."

A mente voa porque ainda que a cabeça teja doendo, doendo não, latejando dos dois diretos que entraram, a alma do Zé é livre e vai longe. Seu raciocínio é como um rep do GOG, não pára nem zoa, ele não é mais um moleque na viela olhando pros lados e bolado com tudo. "Esses putos querem é ver a escória se matando, sobramos e agora temos o direito de trocar porrada com playboy regado a danoninho e proteína. A gente só pode se vingar da vida batendo em mauricinho bombado. Mas essa joba tem de virar, ahh tem."

No vestiário, a hora da verdade. Deu de cara com sua cara amassada, a acareação mais braba do que a da malandragem. Tem um hematoma na bochecha, um dente tá quase indo, o supercílio já jorrou uma cachoeira de sangue e tem um corte na testa. Mas e daí? Não se chama Beleza, seu apelido é Furacão, né? "Tô levando na cara as marcas de um destino, melhor que chibata no lombo, mas esse castigo chegou quando meu pai veio de Sergipe e começou a trampar de servente de pedreiro. É melhor trocar porrada do que construir a cidade prá eles!"

A outra verdade, além do cheque de 500 reais. Dá prá ajudar em casa, 100 é prá academia de seu professor, pagando prestação prá ser dona da casa na rua principal (lá embaixo, quase no asfalto!), o mestre vai ser dono do imóvel, com registro na Associação porque lá inda não chegou a titica do Favela-Bairro. Os 400 são pro tijolo e saco de cimento que o pai, ele e os manos vão subir uma outra laje, essa vai ser o segundo piso do fundo da casa, a irmã mais velha vai casar com um cara da padaria, irmão da Igreja da vó, o moleque é gente boa, "mas se faz merda com a minha irmã afundo o pulmão dele!" não, não era isso a outra verdade. Era um treco de lata com medalhinha e brilho dourado vagabundo. Tinha dois homens se enroscando, um por cima na montada sentado o braço, "esse sou eu e o Touro". E era mesmo.

O banho foi uma beleza, até que o vestiário era maneiro, água quente e à vontade, as pancadas doíam, mas não muito. "Vambora Zé, vai sair a Van prá área, a Fátima (mulher do mestre) já me ligou, tem faixa e tudo te esperando, tua mãe tá com duas panelas de feijoada, é o pagode pro nosso herói que é você. Apressa Zé, vai querer perder tua festa?"

"Tô indo mestre, tô indo mestre." Tô indo prá onde, pensou? De volta prá casa, sua casa, sua área, seu chão. "É cara, ano que vem tudo vai ser diferente, vou pegar a preta e ajudar o mestre nas aulas. Dar aula pros moleques, palestra no Ciep da comunidade, e já vou ter completado o supletivo de 2o grau." 21 anos cumpádi, tu é o homem agora, sua mina te espera, e vai tirar uma semana de folga. "Zé, pega a Teresa e se manda prá casa de tua avó lá em Itaperuna. Vai tomar banho de rio e andar de bicicleta. Só não pode correr e treinar, viu? Nada de pelada também. A passagem de vocês a gente já fez uma vaca no comércio lá e os caras te arranjaram, ida e volta, a tua e a da menina". "Pode deixar professor."

Saindo do vestiário, o herói fala com o mestre. "Professor, vou só chamar um amigo, valeu?" "Vai logo então que a gente já tá atrasado." Caminha acanhado, esses caras bolsistas são meio submissos, não sabe como vai ser recebido. "Aí amigo, como é que você tá?" "Tua mão é pesada em Zé, tô meio baleado, mas dá prá sobreviver." "Ô Touro, tá com a tua namorada aí?" "Tá sim por quê?" "Vocês querem ir com a gente num pagode, tem Van prá ir, se quiser pode cair por lá mesmo?" "É sério Zé? Mas cara, tua área é de outro partido, os caras do Comando vão ficar bolado em me ver por lá." "Porra nenhuma, cê tá comigo e somos parceiros, apesar de ter de se matar lá em cima. E aí, vamo?" "Vamo sim, deixa só eu chamar a mina lá fora."

Dia de Sábado, ainda mais à noite, os playboys tão muito doidos no volante, mas o trânsito tá bom. A van da cooperativa vai que é só alegria, apesar do Touro lá dentro. O Zé dá atenção pro cara que quase arrancou sua cabeça há bem pouco tempo. "Esse não é o verdadeiro alemão, a guerra é outra. Também num é de Comando com Comando, talvez seja contra os vermes, mas essa guerra é muito mais embaixo, inda não sei o que é, mas vou descobrir."

"Furacão, herói da Comunidade!" Faixa, feijão e pagode, é mermão, quem disse que não tem mais quilombo no Rio? A cabeça do Zé tá a mil, tem de comemorar o fato de estar vivo, dar atenção ao Touro, falar com a parentada, amigos, parceiros e vizinhos, mas quer é voar mais longe. "Vou entrar num Pré-vestibular, desses comunitários, que só funcionam dia de Sábado, vou estudar alguma coisa, pode até ser educação física, mas não vou passar minha vida toda dando força pros moleques quebrarem o pau feito eu e o Touro." É Zé, tua cabeça tá a mil.

Beijo na mãe, nas irmãs e na namorada, fiel, legal a menina, e ele é dos que vale a pena, não dá bola prá idéia errada, é um cara legal, se bobear dá até em casório. Mas, hoje não dá mais prá pensar em nada. Ronca a cuíca, chora o cavaco, alegria Zé, ano que vem tudo vai ser diferente, o mestre termina de pagar a casa da academia, a laje da tua irmã já tá de pé, quem sabe cê levanta sua casinha, talvez vai lutar lá fora, Curitiba, quem sabe até no Japão? Alegria Furacão, quando você for dar aula prás crianças vai orientar tudo direitinho, todo mundo sabe que vai.

"É, amanhã não tem treino, acordo tarde e viajo com a Teresa lá pelas 4. Calma cara, deixa a cabeça descansar também, hoje foi só um dia, essa luta não acaba, e é muito mais difícil do que trocar pancada com outro lá em cima. Tudo vai dar certo, calma, é só botar a cabeça no lugar que a tua parte cê vai fazer!"

O cheiro do feijão e o tãm-tãm marcando, fazem sua mente voar. Olha lá prá baixo e revê a faixa: "Furacão, herói da Comunidade!". "Herói de que porra? Herói de que se a verdadeira luta ainda nem começou?" Herói feito seu pai e tua mãe Zé, herói de ser mais um humilde de braço forte e cabeça erguida sem pisar em ninguém. "Sou um cara esforçado, mas sei que a luta de verdade ainda nem começou. Quando for rolar, aí sim, vamo ser heróis ou covardes, vamo ser herói humilde galera, igual que o Furacão, igual que Zumbi."

"Agora vou calar a boca dos pensamentos e cair na feijoada da mãe, amanhã eu descanso e semana que vem começa tudo de novo, e de novo, e de novo, até a luta de verdade começar....."


Rio de Janeiro, 1a versão, Março de 1992, 2a versão (esta aí), Outubro de 2001
Bruno Rocha (Bruno Lima Rocha), técnico de boxe olímpico pela FRGP, professor (low-shi) de arte marcial tradicional de origem chinesa (estilo Ma), faixa marrom de Sanda (boxe chinês), roxa de Luta Livre Esportiva e coordenador-técnico do Centro de Lutas Desportivas-Viamão (projeto social para forjar lutadores de alto rendimento).
Email: bruno.maxyq@gmail.com /bruno.estrategiaeanalise@gmail.com
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