Apesar de o relatório da PF trazer em sua capa “segredo de justiça”, a edição nº 672 da revista Época, de 02 de abril de 2011, anunciava em primeira mão “A anatomia do Valerioduto”, título da reportagem que supunha apresentar, com base no documento oficial, todas as provas da polícia sobre o esquema de corrupção: “ÉPOCA obteve o relatório final da Polícia Federal sobre o caso do mensalão. Ele revela que o dinheiro usado por Marcos Valério veio dos cofres públicos e traz novas provas e acusações contra dezenas de políticos” (ESCOTEGUY et al., 2011).
Mesmo com a matéria de capa, o assunto quase não recebeu atenção da mídia, salvo por exceções como a revista Carta Capital e a agência de notícias Rede Brasil Atual, que destacaram, respectivamente, que o relatório nada dizia sobre o “mensalão” e a nota oficial divulgada pelo Banco Opportunity em resposta às denúncias de que um dos seus sócios, o banqueiro Daniel Dantas, teria financiado a complexa rede de corrupção.
De acusadora, a publicação das Organizações Globo viu todo o conglomerado se tornar alvo de acusações, caso se comprovassem as denúncias. O relatório da PF apresenta a TV Globo como um dos principais destinos de verbas publicitárias da DNA Publicidade LTDA, agência do empresário mineiro Marcos Valério Fernandes de Souza, principal agente intermediário entre os grupos políticos e econômicos que se envolveram no esquema de desvio de dinheiro público e formação de “caixa dois”.
Este artigo pretende, à luz do eixo teórico-metodológico da Economia Política da Comunicação, tratar de como se deu o caso do “Valerioduto” sob o prisma das relações estabelecidas entre grupos midiáticos e grupos político-econômicos.
Assim, pretende-se apontar com esse estudo tanto a forma como foi midiatizado o relatório da Polícia Federal, através das revistas Época e Carta Capital e da agência de notícias Rede Brasil Atual – em específico a nota do Opportunity –, quanto a importância da informação para as demais indústrias, agora sob um prisma diferente. Através da intangibilidade da publicidade, a informação não só corresponde a um elemento diferenciador de um produto para acelerar a circulação das mercadorias, como também serve para mascarar mecanismos de desvios de recursos.
A presença da publicidade no esquema do “Valerioduto”
As denúncias que Roberto Jefferson apresentou em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo em junho de 2005, desenvolvidas posteriormente em outros fatos e na descoberta de como funcionava o esquema de corrupção da base aliada por parte de membros do alto escalão do Governo Lula, mostravam que o PT não era tão “diferente dos outros”.
O inquérito da Procuradoria Geral da República aponta o aprimoramento do esquema chefiado pelo publicitário Marcos Valério, em gestões de Executivo tanto do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no governo mineiro de Eduardo Azeredo, quanto do PT, com suposta colaboração do ex-ministro chefe da Casa Civil do Governo Lula, José Dirceu.
Segundo Fortes (2011), em matéria para a revista Carta Capital, o delegado da PF aponta que o financiamento ilegal de campanha e lobbies privados teria começado em 1999, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, e só terminou em 2005, na administração Lula, após ser denunciado pelo deputado Roberto Jefferson.
A Ação Penal nº 470 é citada logo no início do relatório da PF para justificar os alvos de investigação:
Em razão de expedientes adotados pelos próprios investigados, que se utilizaram de uma elaborada engenharia financeira, facilitada pelos bancos envolvidos, notadamente o Banco Rural, onde o dinheiro público mistura-se com o privado, perpassa por inúmeras contas para fins de pulverização até seu destino final, incluindo muitos saques em favor do próprio emitente e outras intricadas operações com off shores e empresas titulares de contas no exterior, tendo como destino final paraísos fiscais (AÇÃO PENAL nº 470 apud ZAMPRONHA, 2011, p. 1).
Ao contrário do que a matéria da revista Época faz questão de alardear, o relatório de Zampronha (2011, p. 3) “não perscrutou os temas já abordados na referida ação penal, relacionados especificamente à finalidade dos diversos repasses realizados em benefício de agentes públicos e políticos”. Como ele demonstra em outros pontos do texto, o alvo foi o mapeamento dos recursos distribuídos, a intermediação de interesses privados junto ao poder público – onde Marcos Valério ganharia a sua parte no esquema, ao atuar como lobista de empresas – e a identificação de novos beneficiados pelos recursos.
A série de atividades criminosas apontadas no documento da PF tem origem não só no comportamento político de gestores públicos, mas também em práticas comuns do modus operandi econômico. Dificilmente os veículos de comunicação alcançam nas suas matérias sobre economia uma crítica incisiva às falhas do sistema financeiro, limitando-se assim à omissão ou normalização de desvios como a “menos ruim das alternativas” que ajudou a legitimar.
O caso do PT foi mais emblemático por se tratar do aparelho político do então maior partido de esquerda da América Latina, que servia de escora para as megaoperações financeiras junto a Marcos Valério, através das suas empresas de publicidade DNA Propaganda LTDA e SMP&B, triangulando com dois bancos privados e recursos de fundos de estatais. Todo este quebra-cabeça para ainda ter de pagar o custo das alianças com o segundo escalão das oligarquias brasileiras. Um esquema tão escancarado promovido por neófitos de Brasília tinha de fazer água. E fez.
O ex-ministro da Casa Civil José Dirceu pediu demissão do cargo e ainda, enquanto deputado federal, perdeu os direitos políticos por oito anos; mesma punição ao algoz Roberto Jefferson, responsável por fazer com que o esquema comandado por Marcos Valério não se espalhasse até hoje nas entranhas do poder público.
Voltando às medidas clássicas de investigação criminal, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Mensalão promovia grande acareação, estrelando o tesoureiro expurgado do PT, Delúbio Soares; o ex-operador financeiro do PSDB mineiro recrutado pelo PT, Marcos Valério; o ex-deputado Waldemar Costa Neto; e o tesoureiro "informal" do Partido Liberal (PL), atual Partido da República (PR), Jacinto Lamas. Ao final do processo, todos saíram sem grandes percalços.
O relatório da Divisão de Repressão a Crimes Financeiros da PF trouxe o assunto à tona novamente e a leitura de suas páginas, disponibilizadas no site da revista Carta Capital, apresenta de forma bem argumentada como se dava a participação do dinheiro público em tudo isso. O exame financeiro, por exemplo:
esclareceu o funcionamento do FUNDO DE INCENTIVO VISANET, com a identificação das origens e dos destinos dos valores movimentados em nome do BANCO DO BRASIL e a descrição das relações como a forma de contratação de prestação dos serviços de publicidade e propaganda da referida instituição financeira com a empresa DNA PROPAGANDA LTDA, bem como a forma de contratação dos serviços de publicidade e propaganda (ZAMPRONHA, 2011, p. 5).
Zampronha ainda faz questão de citar, mesmo não sendo alvo da investigação, a relação de Marcos Valério na negociação da venda da Telemig Celular para a Vivo, que possuía como um dos acionistas a Portugal Telecom. O publicitário teria se reunido com o presidente da empresa portuguesa acompanhado do “tesoureiro informal” do PTB, em “negócio [que] renderia recursos que seriam utilizados no repasse a partidos políticos” (ZAMPRONHA, op. cit., p. 08).
A forma como se dava o esquema de repasses desses recursos já havia sido abordada pela imprensa na época da CPI, no caso do indício de recursos públicos, como o utilizado através do Banco do Brasil (BB), um dos bancos que formam o fundo de investimento que controla o Visanet . Em matéria para o jornal Valor Econômico (Folha/Globo) em dezembro de 2005, a repórter Maria Lúcia Delgado (2005) explicou como houve a identificação:
A Visanet repassou, por ordem do BB, R$ 35 milhões à DNA em março de 2004. Três dias depois, a DNA aplicou R$ 34.867.000,00 no próprio BB, em fundo DI [Depósito Interbancário]. Um mês depois, a DNA faz uma transferência de aproximadamente R$ 10 milhões [via TED (Transação Eletrônica de Documento)] para o BMG [Banco de Minas Gerais] e aplica esses recursos em CDB [Certificado de Depósito Bancário]. Dois dias depois, o BMG concede empréstimo no mesmo valor à empresa do sócio de Marcos Valério (Rogério Tolentino e Associados Ltda.), cuja garantia de aval é a aplicação financeira feita em CDB. Ou seja, Marcos Valério teria usado o dinheiro do BB (para o qual não há prestação de serviço como contrapartida) e repassado ao PT em forma de empréstimo, feito no BMG.
Haviam encontrado parte do caminho do dinheiro, dos empréstimos sem fim, onde o BMG, Rural e as pessoas jurídicas de Marcos Valério lavavam e taxavam uma parte do desvio de verba pública. A inovação estava no fato desta verba sair diretamente dos cofres da maior instituição bancária brasileira.
As empresas de publicidade de Marcos Valério recebiam antecipadamente uma quantia de dinheiro para campanhas publicitárias e através do processo bancário tumultuavam o caminho para descobrir suas origens e seu destino. Segundo a Época, as empresas até faziam algumas ações publicitárias, mas a maior parte do dinheiro era para abastecer o esquema com os partidos políticos: “Pela falta absoluta de controles internos no banco, esse fundo [Visanet] permitia desvios com mais facilidade. Para completar, o banco costumava adiantar os recursos antes que quaisquer serviços fossem prestados” (ESCOTEGUY et al., op. cit.).
Segundo o relatório do delegado Zampronha (2011), o desvio da verba entregue para material propagandístico era facilitado pela inexistência de contrato formal para sua execução, em que muitas vezes as empresas recebiam antes de produzir. Não havia formalização que disciplinasse as destinações dadas aos adiantamentos oferecidos. Algo que só é permitido pela deficiência em mecanismos de valoração da publicidade.
Segundo o relatório do delegado Zampronha, Marcos Valério tinha noção que agências de publicidade e propaganda representavam um mecanismo eficaz para desviar dinheiro público por conta do caráter subjetivo dos serviços demandados. Neste esquema:
O BB repassava mais de 30% do volume distribuído pelo fundo, cerca de 147,6 milhões de reais, valor correspondente à participação da instituição no capital da Visanet. Desse total, apenas a DNA Propaganda recebeu 60,5% do dinheiro, cerca de 90 milhões de reais, entre 2001 e 2005, divididos por dois anos no governo FHC, e por dois anos e meio, no governo Lula. Daí a constatação de que, de fato, por meio da Visanet, o valerioduto foi irrigado com dinheiro público (FORTES, 2011).
Fortes (op. cit.) aponta também que o alvo principal das ações da Divisão de Repressão a Crimes Financeiros da Polícia Federal, encomendadas pela PGR, eram as empresas ligadas ao Banco Opportunity, de Daniel Dantas, casos da Brasil Telecom, Telemig Celular e Amazônia Celular: “A conclusão foi de que a dupla Dantas-Valério foi incapaz de comprovar os serviços contratados”.
Nas grandes operações de compra, fusões e aquisições do patrimônio público ou ataques às empresas médias visando à concentração econômica, entra o Estado que “empresta” dinheiro a fundo perdido. Na maior parte das vezes, como na fusão da Brasil Telecom com a Oi, na verdade a compra pelo consórcio Telemar dos espólios da empresa, a origem das verbas vem quase sempre do caixa federal.
A gestão fraudulenta pode ser através de “empréstimos” do BB; do BNDES ou da composição nos consórcios dos fundos de previdência de servidores. Estes fundos operam em torno de 350 bilhões de dólares por ano e são usados de forma discricionária, através de “gestores” de confiança dos consórcios interessados e com enlaces nos governos de turno.
A Época aponta que uma das principais descobertas da PF fora que Dantas, que participava naquele momento de uma disputa com fundos de pensão liderados por petistas, “para resolver seus problemas, precisava desesperadamente de aliados no Palácio do Planalto –, tentou mesmo garantir o apoio do governo petista por intermédio de dinheiro enviado às empresas de Marcos Valério” (ESCOTEGUY et al., op. cit.). A resposta do Opportunity veio através de nota que acaba por incluir as Organizações Globo na rota do “Valerioduto”.
A apuração desses fatos ficaria mais fácil...
Logo no início do Governo Lula, Dantas esteve envolvido na disputa pelo comando da Brasil Telecom, um gigante do mercado de telefonia, com os fundos de pensão, em especial os que gerenciam recursos de funcionários de órgãos estatais, como BB e Caixa. Num depoimento à PF, o próprio Dantas afirmou que teria sido chamado para uma reunião sobre o assunto pelo ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu.
Neste encontro, o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, teria dito que o partido teria ficado com débito de R$ 50 milhões após as eleições, cujo subtexto a revista Época (ESCOTEGUY et al., op. cit.) aponta como “evidente: se Dantas pagasse, teria ajuda do governo para se manter à frente de seus negócios”. O banqueiro teria consultado o estadunidense Citygroup antes de negar a “sugestão” – algo que confirma na nota em resposta à revista:
Dois anos depois, não se sabe por que, a Brasil Telecom, empresa ainda controlada por uma subordinada de Dantas, celebrou dois contratos com a agência DNA, de Marcos Valério, cada um deles no valor de R$ 25 milhões. Os depoimentos dos funcionários da Brasil Telecom à PF revelam que os contratos foram fechados em poucos dias, sem que ninguém da área de marketing soubesse dos motivos da pressa, nem sequer que serviços seriam prestados. Semanas depois, sobreveio o escândalo do mensalão. Apenas R$ 3,6 milhões foram efetivamente repassados às contas de Marcos Valério. Ao rastrear o dinheiro, a PF verificou que os recursos chegaram a doleiros paulistas – e ainda não descobriu a identidade dos beneficiários finais. Para os investigadores, os destinatários foram indicados pela turma do PT e do publicitário Marcos Valério (ESCOTEGUY et al., op. cit.).
Na nota de esclarecimento do Opportunity, além de ratificar o depoimento de Dantas à CPI sobre a reunião com Delúbio Soares, o banco diz que seria impossível ajudar um Governo que o queria longe das ações por conta da concorrência com os fundos de pensão. O aparecimento da matéria teria sido causada pela proximidade de decisões judiciais que iriam “desmascarar a atuação da Polícia Federal contra o Opportunity” (BANCO OPPORTUNITY, 2011).
Apesar de um trecho da nota dizer que o banco nunca contratara a DNA e que fora retirado do Fundo Estrangeiro da Brasil Telecom após as operações da Polícia Federal, há uma justificativa para a contratação das empresas de Marcos Valério pela BrT, Telemig e Amazônia Celulares: “A DNA e a SMPB eram as agências de publicidade e propaganda mais famosas de Minas Gerais. Elas atendiam as companhias Telemig e Amazônia Celular. A Telemig se tornou cliente da DNA em 1998 e a Amazônia Celular em 2001” (BANCO OPPORTUNITY, op. cit.).
Segundo o relatório da PF, entre 1999 e 2005 o banqueiro teria irrigado o esquema de corrupção montado por Marcos Valério com a vultuosa quantia de 164 milhões de reais. A pista para chegar a tal valor fora o repasse dos R$ 50 milhões, às vésperas da criação da CPI dos Correios, momento que o Opportunity mais esteve ameaçado na BrT:
Os contratos da DNA e da SMP&B com a Brasil Telecom, segundo Zampronha, obedecem a uma sofisticada técnica de lavagem de dinheiro, usada em todo o esquema de Marcos Valério, conhecida como commingling (mescla, em inglês). Consiste em misturar operações ilícitas com atividades comerciais legais, de modo a permitir que outras empresas privadas possam se valer dos mesmos mecanismos de simulação e superfaturamento de contratos de publicidade para encobrir dinheiro sujo. (FORTES, op. cit.).
Após dizer que, por obrigação, os repasses para a publicização nos meios de comunicação terem que ser feitos pelas agências, o final da nota do Opportuniy provoca: “Na Telemig, segundo informações prestadas à CPI do Mensalão, a maioria dos recursos eram repassados as Organizações Globo. Por isso, a apuração desses fatos fica fácil de ser feita pela Época” (BANCO OPPORTUNITY, op. cit.).
Com as agências de publicidade, Marcos Valério lidava com a compra de espaços nos intervalos comerciais de diversos veículos de comunicação que, como observou o delegado Zampronha (op. cit., p. 15), estreitava o vínculo do empresário e poderia facilitar o direcionamento de coberturas jornalísticas.
Sobre este tipo de relação, Ianni (2000, p. 75) diz que
Em alguma medida, esses grupos, classes ou blocos de poder [dominantes] dispõem de influência mais ou menos decisiva nos meios de comunicação, informação e propaganda, isto é, na mídia eletrônica e impressa, sempre funcionando, também, como indústria cultural.
O texto de Fortes, na Carta Capital (2011), afirma que “as Organizações Globo, proprietária da Revista Época, sonegou a seus leitores, por exemplo, ter sido a maior beneficiada de uma das principais empresas do Valerioduto”. A TV Globo aparece em dois momentos no relatório, referentes à planilha de gastos da DNA através do Visanet, em 2003 e 2004-2005.
Para a contratação da TV Globo em 2003 foi pago à empresa valor de R$ 3.600.00,00, com desconto da agência no valor de R$ 720.000,00 e valor final de R$ 2.880.000,00. O relatório destaca a natureza fiscal de adiantamento, publicidade futura, “isto é, a nota por si só não traz qualquer prestação de serviço, como também não há elementos que vincule os valores adiantados ao Fundo de Incentivo Visanet” (ZAMPRONHA, op. cit., p. 68).
Os documentos enviados pela Globo Comunicações e Participações S/A trazem a informação, segundo Zampronha (Ibid., p. 68-69), de que os recursos teriam sido gastos para publicidade do Banco do Brasil. Porém, “os documentos de suporte da operação não fazem qualquer menção a ações de divulgação do CARTÃO VISA, sendo que também não foi apresentado qualquer documento que comprove a efetiva veiculação de publicidade”.
Bolaño (2000, p. 32) assinala algo que muito bem pode ser aplicado a este caso:
Mas (mais que a mentira) a não verdade (relacionada, acima de tudo à manipulação da informação por quem a emite e tem o poder, seja de não informar, seja de derramar uma enxurrada de informações irrelevantes que impedem uma tomada de decisão autônoma por aquele que recebe a informação) é sempre possível e está ligada, de um lado, às próprias características do dinheiro e à atração que este exerce sobre os indivíduos e, de outro, ao fato de a mercadoria possuir valor de uso que corresponde a necessidades materiais objetivas, sejam elas relacionadas ao estômago ou ao espírito.
No caso desse período, outro grupo midiático importante a fazer parte dos quadros de pagamento da empresa de Marcos Valério foi a Editora Três Editorial Ltda, que publica, dentre outros impressos, a revista IstoÉ. Pelo que se pode entender do que diz o relatório, o problema aqui teria sido o pagamento de uma bonificação sem qualquer justificativa:
Em relação ao pagamento efetuado em 02/08/2004, no valor de R$ 705.000,00, foi constatada bonificação de volume no valor de R$ 200,000,00, com emissão de nota fiscal para esse bônus e DARF de imposto de renda retido na fonte de R$ 94,500,00. Entretanto, em pesquisa na contabilidade reprocessada da DNA PROPAGANDA LTDA, verificou-se que foi creditada uma conta de passivo, 6387 - ’Três Editorial Ltda’, pelo valor do bônus de R$ 200.000,00, sem que houvesse a exigibilidade correspondente, configurando criação de passivo fictício (ZAMPRONHA, op. cit., p. 117).
Para curiosidade dos autores deste artigo, já que não aparecia sequer na matéria da Carta Capital, ao se analisar o relatório da PF e o Quadro 1. aqui apresentado, vemos que houve publicidade direcionada para o canal de televisão com conteúdo católico Rede Vida, num valor de R$ 633.999,99. Aqui mal caberia o argumento de participação na audiência ou, imagina-se, de segmentação de público para justificar a publicidade no canal.
Segundo o relatório da Divisão da PF (op. cit., p. 83-84), a Televisão Independente de São José do Rio Preto LTDA (Rede Vida) também justificou os valores recebidos como oriundos de veiculação de publicidade do Banco do Brasil, mas também neste caso “os documentos de suporte da transação não fazem qualquer menção a ações de divulgação do CARTÃO VISA”.
Já no biênio 2004-2005, o relatório não aponta muita coisa dentre os R$ 1.250.396,21 destinados pela DNA Propaganda LTDA à TV Globo:
Tendo em vista que esta empresa de Comunicação recebeu diversos pagamentos da DNA PROPAGANDA LTDA ao longo dos anos 2004 e 2005, não foram realizadas diligências para verificar a veracidade do registro lançado na planilha de controle do FUNDO DE INCENTIVO VISANET (ZAMPRONHA, op. cit., 118).
Mais uma vez, após pedido de documentação, a análise do que foi encaminhado não permitiu verificar se os serviços contratados estariam relacionados a ações de marketing do cartão de crédito da bandeira VISA. Gutevich (apud Ianni, 2000, p. 185) diz que:
As relações da imprensa, rádio e televisão com o sistema político são governadas, em cada país, pela natureza do sistema político e das normas que caracterizam a sua cultura política. A estrutura sociopolítica e econômica das diferentes sociedades também determina a estrutura interna de seu sistema de mídia, os métodos de financiamento deste e, consequentemente, das relações intersistêmicas das diferentes organizações.
O “Valerioduto” e demais processos de corrupção sistêmica apresentados na política brasileira, independentemente de origem partidária, só reafirma tal assertiva, com participação direta dos grupos midiáticos perante às trocas realizadas para sua manutenção.
Conclusões
Como pode ser visto, as teias de poder as quais está ligado Marcos Valério é bem maior que se imaginava, circunscrita inicialmente ao plano meramente publicitário e expandido para partidos políticos das mais diversas siglas e linhas ideológicas, e para os mais variados grupos midiáticos e empresas de publicidade e propaganda, que recebiam pelo trabalho de forma terceirizada.
Tais fatos aqui analisados em relação ao “Valerioduto” amplificam inclusive o entendimento sobre a seguinte definição dada por Brittos (2008, p. 196), em que:
A comunicação deve ser encarada considerando-se a larga articulação entre comunicação midiática e capitalismo avançado, sabendo-se que contemporaneamente as indústrias culturais relacionam-se com o próprio funcionamento dos mercados e é a partir delas que se estabelecem movimentos diferenciadores e disputas por posições entre as organizações, e escolhas de consumo, por parte dos públicos.
A informação, entendida como de fundamental importância para a manutenção da sociedade capitalista, especialmente a partir do século XX, começa a ter, a partir do caso retratado neste artigo, uma nova função. Além da produção de programas e audiências a serem “vendidos” para as empresas através da valoração de bens simbólicos para o mercado em geral, passa a ser utilizada como subterfúgio para lavagem de dinheiro desviado de fontes públicas, num esquema de complexidade proporcional ao avanço tecnológico comunicacional.
Curiosamente, o único veículo dos grandes grupos comunicacionais brasileiros que tentou romper essa lógica de interesses e seguiu o “dever” de informar – por mais erros que contivessem a matéria, como abordamos em alguns pontos –, foi alvo direto de resposta, colocando todo o grupo de comunicação num esquema que acabara de denunciar como fraudulento.
Numa rápida análise do relatório da Polícia Federal sobre o assunto escrito pela revista Época, cuja matéria foi comentada pela revista Carta Capital, ainda pudemos encontrar outras empresas de comunicação que também tiveram que prestar esclarecimentos por conta de material publicitário, esse bem cultural que devido à dificuldade material de se definir um valor acabou sendo utilizado para mascarar um grande esquema de corrupção no país.
Referências
BANCO OPPORTUNITY. Nota do Opportunity a respeito da reportagem "A anatomia do valerioduto". Época. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI223141-15223,00.html>. Acesso em: 14 de abril de 2011.
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FORTES, L. A verdade sobre o relatório da PF. Carta Capital. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/politica/a-verdade-sobre-o-relatorio-da-pf>. Acesso em: 14 de abril de 2011.
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