No texto que segue, tentamos expor, de forma breve e sintética, uma série de constrangimentos estruturais que reduzem à patamares mínimos as margens de manobra do governo central. Isto, independente da alteração do partido e coligação que ocupem o Executivo do Estado brasileiro. Nossa questão central é simples e direta:
Como pode um governo democraticamente eleito tomar decisões de caráter estratégico no plano macroeconômico se o Estado a partir do qual governa não é soberano de seus próprios recursos?
A partir da questão central derivam outras duas, consequência direta da citada acima. A primeira diz respeito aos marcos de regulação internacional e as ingerências diretas do organismo de regulação macroeconômica chamado Fundo Monetário Internacional (FMI). É esta:
O (constrangimento estrutural( do endividamento brasileiro (dívida interna e externa) e os planos de metas pré-acordados com o FMI impedem a realização de políticas de longo prazo?
A segunda questão derivada, aborda o conjunto de compromissos e limitações para o exercício político do poder de governar um Estado que é ou deveria ser, ao menos em tese, soberano. Diz respeito dos níveis de comprometimento da política econômica e os respectivos compromissos internacionais, submetendo de fato a política ao nível econômico da tomada de decisões no plano nacional. É esta:
Quais são portanto, as margens de manobra possíveis, sem realizar alguma forma de rompimento (ou afastamento), não só com o modelo vigente (ex. superávit primário, plano de metas, ajuste fiscal, etc.) mas também com as determinações das instituições internacionais e os Estados centrais que as hegemonizam?
Como se pode observar, a abordagem central do artigo não apresenta nenhuma novidade. Muito ou até mesmo tudo o que se propõe a abordar é visto e revisto todos os dias pela mídia corporativa, a mídia especializada e pela academia brasileira. Se há algum elemento novo no texto, é justamente o momento que o produzimos. Completado o primeiro quadrimestre do governo Luís Inácio Lula da Silva (Lula), não há mudança sensível nenhuma no nível macroeconômico de governo. Considerando o caráter de oposição que o chefe de Estado e seu partido (Partido dos Trabalhadores, PT)1 sempre tiveram, temos portanto a evidência de permanência, ao menos a curto prazo, dos padrões de exercício da política econômica dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC, de 1( de janeiro de 1995 a 31 de dezembro de 2002). É óbvio que não há termos de comparação entre pouco mais de 4 meses de exercício de poder presidencial com 96 meses deste mesmo exercício durante o governo anterior. Mas também é igualmente óbvio e evidente notarmos que as políticas concretas hoje sendo exercidas, a continuidade com o governo anterior e o quanto de (constrangimento estrutural( está implicado nesta própria continuidade. Enfim, este é o intento do artigo, o qual esperamos conseguir expor e evidenciar.
Fatores e agentes de constrangimento do exercício do poder político
Para desenvolver este tema, nos atemos aquilo que a literatura e o jornalismo político e econômico convencionou em denominar o 2( Consenso de Washington. No 1( Consenso de Washington, reunião ocorrida em novembro de 1989, onde estavam presentes funcionários do governo dos EUA e dos organismos de regulação financeira internacional (ver Auditoria Cidadã da Dívida, p.22) o conjunto de orientações consistia a grosso modo em um pacote de reformas e ajustes macroeconômicos. Tais como, cortes de gastos e reformas do Estado, incluindo a previdenciária; e, ajustes microeconômicos que desoneravam o capital privado de seus encargos e obrigações com a mão de obra. Por fim, incluíam o desmonte progressivo no modelo de crescimento industrial pós-2a. Guerra Mundial (através do Estado Desenvolvimentista). Este pacote de ajustes a ser implementado prioritariamente na periferia do sistema capitalista, tinha como discurso alegado o saneamento e a estabilização de economias inflacionadas e estagnadas (Fiori, 2001, p.85). Já o 2( Consenso tinha como motivação alegada, uma proposta de crescimento dependente destas economias periféricas (Bresser, 2002, p.87).
Ou seja, aquilo reconhecido e denominado como o 2( Consenso é um receituário de crescimento econômico dependente, vindo dos mesmos centros que propuseram o programa de ajustes que alegavam sanear a estagnação dos anos 1980 (conhecida como a (década perdida(). De acordo com Bresser Pereira (2002, pp.86-87) a premissa do crescimento através de endividamento externo é falsa. Isto porque, a alegação dos países centrais que a periferia do sistema não tem mais recursos para financiar seu próprio crescimento não é verdade. Ao menos, não é uma verdade absoluta. Indo além, este crescimento tem (pernas curtas( e nenhum alcance estratégico. Há um problema de fundo, questionamos portanto as premissas em si desta forma de pensamento econômico-político. Ou seja, o hiperestruturalismo neoliberal, quando aplicado ao nível macro-econômico, faz desaparecer - e/ou tornar inócua - a própria política e a necessidade de visão de longo prazo. Voltando ao tema, o crescimento financiado é simplesmente endividamento externo aprofundado. Ao invés de se reforçar a poupança interna, os países com maiores condições de desenvolvimento na periferia do sistema, vão buscar divisas no exterior, aumentando ainda mais seu grau de dependência.
Bresser também expõe a falência da premissa, quando afirma que países como Brasil e México, tem os recursos nacionais para seu desenvolvimento (p.87). Segundo este economista e cientista político do próprio PSDB, os dois países realizaram sua acumulação primitiva e contam com um Estado e elites econômicas capazes de canalizar a poupança interna para o investimento nacional. Compreende-se que a premissa do 2( Consenso de Washington é falsa para Bresser por fatores eminentemente políticos. E é esta mesma falta de preponderância do nível político - ou o nível político controlado pelo fundamentalismo macroeconômico - que não gera capacidade decisória alguma capaz de se contrapor aos desígnios também políticos que vem do centro do capitalismo2.
Indo de encontro da afirmação de Bresser, concordando com a falsidade da premissa de que é impossível o crescimento sem ajuda externa, Fiori (p.90) afirma que o 2( Consenso defende justo um fortalecimento do poder do Estado. E isto, para assegurar o ingresso dos investimentos externos para que supostamente estes venham a financiar o crescimento de países como o Brasil. O que o 2( Consenso não afirma mas leva a ser executado através de suas políticas no concreto, é que estes investimentos são um reforço de fragilização interna dos governos nacionais. Esta realidade se dá pelo simples fato destes governos não terem quase nenhuma autonomia sobre a decisão da vinda ou fuga destes capitais para os países onde governam.
Existe sim uma capacidade de influência indireta. São as condicionantes qye gerariam “credibilidade” no capital volátil (especulativo) e a própria gerência tanto do Fundo como dos credores privados no país emergente. Condicionantes clássicas seriam:
- Se por acaso os planos de metas e acordos forem de encontro ao indicado pelo FMI ou pelas agências de análise de risco;
- Se por acaso o país continuar a se endividar, emitindo títulos de sua dívida pública para remunerar o capital especulativo que entra e sai do país sem ser taxado
- Se por acaso o governo da União puser em postos-chaves do controle da economia executivos de (confiança( dos credores.
Caso tudo isto aconteça, aí sim o nível político estará (influenciando positivamente( a entrada dos capitais que ajudarão o crescimento interno. Ao nosso ver, estas afirmações são a negação da capacidade de decisão política e de autonomia do Executivo perante o Estado, e os sistemas político e econômico sobre o qual governa.
A busca do cumprimento deste plano de metas, somente durante uma parte do segundo governo Fernando Henrique, nos dão números que confirmam estas afirmações. Para garantir a entrada destes capitais que (viriam financiar o crescimento do Brasil(, o governo FHC levou o crescimento da dívida interna (em títulos públicos)3 para 35% ao ano em 1999, 20% em 2000 e 21% até novembro de 2001. Os valores totais são, respectivamente aos anos referidos (em bilhões de reais): R$ 464,7 bi; R$ 555,9 bi e R$ 675 bi. Fazendo o percurso deste capital financiado pelo governo, através do qual o país se endividou, chegamos à outra ponta dos (compromissos brasileiros(. Apenas em juros e amortizações da dívida externa4, o país pagou aos credores - ou seja, sacou do caixa do governo, descapitalizou a nação e deixou de investir em planos e metas a longo prazo- respectivamente nos anos de 1999 e 2000 (em valores de bilhões de dólares) os seguintes valores. Os juros foram US$ 15,24 e US$ 13,97. As amortizações foram de US$ 49,12 e US$ 31,69.
Temos de considerar uma argumentação lógica. Os planos de metas acordados com o FMI incluem um superávit primário da parte da União em torno de 3,5%. Para atingir esta meta, 34% do Produto Interno Bruto (PIB) é canalizado para impostos (Auditoria da Dívida, p.18) e que esta sobrecarga tributária tem como metas a própria amortização da dívida já contraída. O receituário do 2( Consenso implica em mais dependência pois os capitais que entram não vem apenas para financiar crescimento somente. Mas, também para prosseguirem na rolagem da própria dívida a qual estes capitais são credores. Na dependência da entrada destes capitais voláteis, o governo da União (sinaliza( com fatores (positivos(, demonstrando (boa vontade( e (solidez( para honrar seus compromissos. Realmente, por esta lógica, não há outra alternativa além de manter e fazer crescer o próprio endividamento.
Retomamos o debate a partir da a afirmação de que a premissa do crescimento nacional não ser possível com poupança interna é falsa (segundo Bresser, na qual concordamos). Vamos verificar que este autor coloca a existência de uma elite econômica, junto de uma camada dirigente do Estado, capaz de canalizar do sistema financeiro para a poupança interna o volume de capital circulante como fator fundamental para este crescimento negado pelo 2( Consenso de Washington. O que se verifica na afirmação de Fiori, é que esta premissa é verdadeira, justamente pela inexistência de elites latino-americanas (no caso do (ajuste( dos países da região) com tamanha autonomia de decisão. Na verdade, não há elite latino-americana alguma com vontade e decisão independente. Ocorre justo ao contrário, as elites políticas e econômicas latino-americanas aderem integralmente às teses preconizadas em ambos os consensos (p.199). Este alinhamento ao governo e orientações da potência central, representa em números, a própria negação dos países da região. A média de crescimento da América Latina, durante o total do período desenvolvimentista (1937-1990, Fiori p.191) é de 5,5% ao ano. No Brasil, entre 1945-1980, ficou entre 7% e 8% ao ano. Na década de 1990, a década do ajuste e do (saneamento( econômico, a taxa ficou abaixo de 3% ao ano, menor no que na chamada década perdida (a de 1980).
Ainda na premissa falsa que Bresser afirmou, nós dizemos que ela é falsa, pela capacidade de recursos naturais, acumulação primitiva e avanço tecnológico. Mas, que a premissa de impossibilidade de crescimento com poupança interna é verdadeira, justamente pela função estratégica que teria de ser exercida pelas elites que se alinham automaticamente com as teses dos EUA. Respaldamos assim a afirmação de Fiori (p.193) colocando que nunca houve no Brasil uma real coordenação estratégica entre as burocracias e elites dirigentes do Estado com as classes dominantes no plano econômico. Na ausência destes atores coordenados, há ausência de longo prazo. As burocracias do Estado, na ausência de uma estratégia própria, terminam por cederem às pressões de curto prazo das classes dominantes e conservadoras. Sendo que, no plano estratégico, se alinham de forma subalterna à estratégia hegemônica a qual o país se submete.
O fator de permanência, é que o alinhamento automático da época da bipolaridade e das fronteiras ideológicas, permaneceu na década de 1990 e no início da década de 2000. A diferença é que na nova etapa de supremacia capitalista e ocidental, o alinhamento vem de elites latino-americanas (como é o exemplo da brasileira) na busca de agentes políticos que sejam parceiros nos países centrais. Bresser (2002, p.91) reafirma o alinhamento direto, dizendo que as elites brasileiras perdem a incapacidade de pensar por conta própria, reproduzindo de forma integral as teses do 2( Consenso. Quando estas mesmas elites se concentram no plano de estabilidade do Real (1994), a âncora da nova moeda é o padrão dólar. Todo um país torna-se portanto refém dos desígnios do Federal Reserve (Fed, Banco Central dos EUA). Partindo do princípio da necessidade de (sinalização( para o país central das intenções de governo, é lógica a necessidade de ocupação de postos-chaves por elementos intermediários entre o Brasil, os organismos econômicos internacionais (como o licenciado do FMI Pedro Malan) e os grandes agentes econômicos e financeiros internacionais (como é o caso do ex-funcionário do Fundo Soros, Armínio Fraga). Veremos na outra parte do artigo como este padrão de permanência se repete no governo Lula e na sua equipe econômica.
Retomando a argumentação do próprio Bresser, compreendemos que não é a ausência de poupança interna (ao menos potencial) que impede um desenvolvimento mais autônomo e nacional do Brasil dos anos 1990. O que sim impede é o fator coordenação estratégica (como afirma Fiori). É a ausência de elites dirigentes (políticas e tecno-burocráticas) que associadas a elites econômicas brasileiras (classe dominante nacional) se associariam a partir dos programas de governo e projetariam o crescimento a longo prazo. É irresistível o comentário de que não é dos tempos recentes que se busca uma (burguesia nacional desenvolvimentista( e ela não aparece de jeito algum. Várias forças políticas estão esperando seu surgimento há décadas e não há jeito dessa conformação se dar.5
Sem a coordenação estratégica dos atores centrais de uma economia e sistema capitalista, não há possibilidade de realização estratégica. Disto, para um discurso e prática política totalmente alinhados e afirmando que (não há alternativas(, é a consequência lógica. Vale a citação literal de Sallum Jr. (1999, p.31).Este autor da USP afirma que (uma classe dominante não se transforma em dirigente a menos que consiga universalizar seus interesses na sociedade; e isso não ocorre a menos que lideranças políticas encontrem uma (fórmula política( que permita a adesão da maioria das forças políticas em presença(. Quando esta análise estrutural chega aos níveis reais, percebe-se a falência estratégica. Toda a economia do Brasil dependia (e depende) da (boa vontade( do sistema financeiro internacional e das grandes empresas transnacionais que aqui operam (Sallum Jr., p.31). Esta (boa vontade( se manifesta a medida que o governo do Brasil, na lei eleito de forma soberana e democrática, faz de sua vontade política a vontade política do agente hegemônico externo. O Plano Real foi alegadamente criado para estabilizar a moeda e depois, talvez, gerar algum crescimento. Este se encontrava ancorado no câmbio irreal e nas reservas em dólar. Ou seja, a fonte de financiamento da dívida é a própria emissão de títulos públicos com remuneração aos especuladores em níveis altíssimos. Apesar de (todos este sinais(, ainda quando há a possibilidade de rever algumas das metas do FMI o país se fragiliza, isso é a ausência de coordenação estratégica nacional. Em tese quem decide é o chefe de Estado eleito na lei e no voto. Mas o peso hegemônico é de quem coage, que no caso brasileiro, pelo viés econômico, é o FMI e os grandes credores. Apenas como exemplo, é público e sabido que o maior credor privado do Brasil é o 1st Bank of Boston, o Banco de Boston. Não por acaso esta instituição privada, em conformidade com o FMI, indica Henrique Meirelles para presidente do Banco Central (o significado desta “sinalização veremos na outra parte).
O raciocínio lógico nos faz então compreender e concordar com Fiori quando este compara o alinhamento automático argentino com as pretensões de continuidade de relações entre o governo de FHC e o PSDB brasileiro e o governo do Partido Democrata de Clinton. Proporcionalmente, as (relações carnais( com os EUA e a realização da (lição de casa( pelo governo De la Rúa (Fiori, p.233), resultaram primeiro num golpe branco (quando Caballo reassume como super-ministro) e depois na derrocada de governo eleito. Na queda de De la Rua, foi destroçada a Alianza, a base da UCR e quase foi junto todo o sistema político.
Quando o ex-ministro da economia de Menem, Domingo Caballo, candidato derrotado a presidência (perdeu para De la Rúa e teve Duhalde em segundo lugar) assume o super-ministério da economia, Fiori chama a isso de (golpe branco( (afirmação com a qual concordamos). As decisões estratégicas para o país, que no ano de 2001 passavam (e ainda passam) necessariamente pelas decisões macroeconômicas, ficam concentradas nas mãos do (homem de confiança( das transnacionais, dos credores e do FMI. E ainda assim, estes agentes internacionais retiram seu apoio, geram iliquidez no país e quebram toda a poupança interna que restava. Veio desta medida o confisco da poupança e do dinheiro depositado, chamado de corralito. Ao fazer esta lição de casa e abrir mão dos pontos básicos de seu programa de governo, De la Rúa primeiro cede ao golpe branco dos agentes internacionais e depois é derrubado pela rebelião popular. O sentimento tecido na aliança entre os setores desempregados piqueteros, a classe trabalhadora e a baixa classe média culmina na rebelião do cacerolazo.
O mesmo Fiori usa de exemplo comparativo ao alinhamento do PSDB e os Democratas de Clinton (p.221). FHC apostou suas fichas e projeções junto do multilateralismo com os EUA à frente. Fez todas as lições de casa e posicionou o Brasil com algum destaque nessa ordem subalterna onde o país se enquadra. Muda o senhor, o vassalo perde a sua base de sustentação. Foi justo o que ocorreu. Aí está um exemplo bem simples e direto da ausência de condições para tomada de decisões estratégicas. Os destinos das decisões fundamentais do governo do Estado brasileiro estavam centradas numa aliança cujo destino não dependia em nada do próprio país. Ao relegar suas expectativas internacionais - de inserção numa ordem global regulamentada - se delega o auxílio e a ajuda externa aos atores políticos centrais dos EUA. Agora com o governo republicano de George W. Bush, cessaram os apoios financeiros para crises nacionais como os EUA deram para a Argentina em 1990, México 1994 e Brasil 1998 (Fiori, p.223). Nesta ordem unilateral que se configura para o curto prazo, com que peso o Brasil entra na barganha e no jogo de forças? Como pode afirmar sua posição no cenário internacional se suas decisões e rumos econômicos internos pertencem aos planos de metas estipulados pelos agentes que coagem o país? Simplesmente não pode e fica o país a mercê de decisões externas, passando o papel do governo a ser o agente que exerce a coação vinda dos mecanismos internacionais para dentro dos sistemas políticos e econômicos. Some-se a isto, o papel clássico de fazer a contenção das forças sociais como fator essencial para (acalmar os investidores(.
Na ausência de projetos de longo prazo, ou seja, na ausência de projeto estratégico), se reproduzem as (lições de casa(, acompanhadas de (comentários de especialistas( e uma dezena de eufemismos como reforço psicológico e pressão midiática para serem cumpridos os planos de metas. Assim, o cumprimento das metas estipuladas por agente externo coage e retira recurso do país. A solução a curto prazo é mais renegociação e poupança externa, aumentando ainda mais a própria dívida. Isto dá num círculo vicioso que pela própria lógica não terminará se não houver rompimento com esta mesma lógica.
Apenas para exemplificar, o total do orçamento da União (previsão para 2001),era de R$ 418,5 bilhões de reais. Já o montante dos serviços da dívida foi de R$ 142,2 bilhões. Juros e encargos somavam R$ 71,6 bi; e as amortizações R$ 70,6 bi. O total do orçamento fora reduzido em um terço (1/3) apenas com os encargos da dívida externa. Em média, no ano de 2001, 1 em cada 3 reais arrecadados era para rolar a dívida externa brasileira. Isto é simplesmente a ausência de soberania sobre os próprios recursos. Ou seja, o governo eleito não decide sobre a riqueza produzida e circulante, arrecadada de forma impositiva e enviada para os credores externos na proporção descrita acima. Esta marca bate nos 34% do PIB que são aplicados em carga tributária no ano de 2000. Realmente, nesse modelo, não há nenhuma condição de desenvolvimento nacional, muito menos com base em uma poupança interna inexistente. É óbvia a conclusão:
- “ Como se pode ter aquilo que não se pode acumular?!”
A permanência do constrangimento e da impossibilidade estratégica
A premissa que tomamos por base nesta parte do artigo vem do economista Celso Furtado. Em entrevista concedida ao jornal semanário Brasil de Fato e reproduzida na revista Caros Amigos6, Furtado afirma que se o debate for centrado no viés econômico, o Brasil já se encontra numa posição demasiado subordinada no sistema econômico mundial (p.30). Compreende-se que a posição dos atores políticos executores dos destinos da economia, membro do Executivo do Estado, a partir da mirada econômica, já parte de uma posição de submissão, portanto, não-estratégica. Mesmo se tratando do viés exclusivamente econômico, Furtado afirma que os economistas que aplicam o receituário do FMI, (pensam em termos de microeconomia e aplicam em forma macroeconômica( (p.30), reduzindo assim as saídas a médio e longo prazo. Daí o porque o objetivo dos serviços da dívida é amortizar uma quota para captar mais dívida e rolar esta que vêm e assim por diante. A premissa é que o país tem de definir um projeto nacional (ou ao menos um projeto mínimo das forças que compõem o novo governo), identificar o espaço que existe para esse projeto e buscar uma autonomia de manobra para realizá-lo. Identifica que, por exemplo, o caso do Banco Central (é uma entrega ao grande capital internacional((p.30). Portanto, não há rumo nem itinerário traçado através de uma posição mais autônoma. Por exclusão, se não há autonomia mínima de decisão em alto nível, há impossibilidade estratégica.
O debate derivaria portanto em duas direções. A compreensão que o país tem um sistema econômico (p.32) e em contraparte a negação da administração e projeção a longo prazo deste sistema é a (esterilização do debate econômico( (p.32). A economia redobra em importância desde que não se mantenha nenhum viés desenvolvimentista. O domínio (técnico( da economia é simplesmente uma afirmação das premissas de um sistema econômico mundial onde o país se insere de forma subalterna. Eis a impossibilidade estratégica, uma vez que não há nem recurso teórico de desenvolver o sistema econômico nacional. Existem esta possibilidade, mas não tem condições de ser implementado num universo (técnico( dominado pelo receituário da matriz de pensamento econômico.
Na prática do mundo real, a alta taxa de juros hoje está batendo em 26.5% (padrão da taxa selic desde de março de 2003, ver Benjamin 20037). O governo central busca um superávit que ultrapasse 3,75%. Mesmo assim não está cobrindo nem 1/3 dos juros que o Brasil remunera o capital que aqui entra. Tudo isto significa uma absurda descapitalização da economia (ver Dowbor, 2003). Fica mais uma pergunta básica:
- Como é possível o desenvolvimento econômico se a economia e a liquidez real é sugada pelo sistema financeiro? Falar de poupança interna, portanto sem mudança de modelo de desenvolvimento baseado justamente no endividamento externo, torna-se algo paradóxico e inexequível. Sendo a poupança interna o recurso de divisas que um Estado soberano pode ter sem aumentar ainda mais o endividamento (e portanto a dependência e o impedimento de uso dos próprios recursos), e estando esta mesma poupança interna impedida de uso (pelo modelo aplicado), não há então possibilidade estratégica de desenvolvimento.
Valem sempre as noções comparativas, para termos a noção real desta impossibilidade. As reservas de um país são um dos medidores de sua riqueza. O professor de economia da PUC-SP, Ladislau Dowbor (2003, p.12) nos oferece em artigo os seguintes dados comparativos. A Argentina tinha em janeiro de 2003, em divisas, em torno de US$ 10 bilhões de dólares. O Brasil US$ 30 bilhões. Já uma grande empresa de investimentos e (consultoria(, como a estadunidense Merryl Linch, maneja em torno de US$ 1 trilhão de dólares. Um investidor privado médio,como o também estadunidense Edward Jones, maneja cerca de US$ 255 bilhões. Sendo a Merryl Linch, uma investidora e avalista dos investimentos no país, como pode haver uma relação mínima de equilíbrio entre um Estado soberano e uma transnacional de investimentos e especulação? Simplesmente não pode, ficando este país submetido aos interesses e capacidades de constrangimento da empresa transnacional.
Tratando especificamente das estruturas de continuidade, vemos a premissa de esterilização de debate econômico de Furtado, manifestado no ministro da fazenda Antônio Palocci. Este reafirma que as decisões do Banco Central (Palocci apud Duarte, 2003) são eminentemente (técnicas(, não estando sujeitas a (apreciações políticas(. Esta afirmativa técnica aponta a continuidade do tripé de Malan e Fraga (respectivamente ministro da fazenda nos dois mandatos de FHC e presidente do Banco Central no segundo mandato), com a motivação de conter a alta inflacionária e uma crise cambial. O tripé se baseia nas políticas de câmbio livre, juros altos e aperto fiscal. As políticas até o momento apresentadas por Palocci e o presidente do Banco Central Henrique Meirelles (por sinal deputado federal eleito pelo PSDB-Goiás) são exatamente as mesmas. As alegações também, prevalecendo a necessidade (técnica(.
O conceito de vulnerabilidade externa manifesta-se na dependência do fluxo de capitais de giro rápido, entrando e saindo do páis, (indicando sinais positivos para o mercado mundial(. Isto possibilita (baixar os índices do risco país( (avalizado, entre outras empresas, pela própria Merryl Linch, uma das avalistas do leilão da Vale do Rio Doce, p/ex.) e manter o rolamento de nossa dívida. Se, por algum (acaso( ocorra algo (como uma medida de política econômica) que não agrade nem os credores e/ou os avalistas de risco e/ou o FMI, avalista central, pode se dar (uma fuga de capitais de curto prazo( e (uma alta do risco país(. Poderíamos denominar a isto de ataque (ou achaque especulativo), dependendo do ponto de vista e das premissas, se (políticas( (como a do economista Celso Furado), ou se (técnicas( (como a do médico e ex-prefeito de Ribeirão Preto, Antônio Palocci).
Para diminuir a vulnerabilidade externa (ou seja, para manter uma opinião favorável sobre a política econômica do Brasil), se eleva a taxa de juros. E a remuneração desses juros,sairá de onde? Emissão de moeda, gerando inflação, não é possível. Aumento da carga tributária (que fechou o segundo governo FHC em 34% do PIB), não é indicado embora possa ocorrer. O que na prática acontece (e se sucede) é o corte orçamentário. Ou seja, reduzindo os investimentos do Estado, o repasse de verbas, os programas de inclusão social (como o dado comparativo do Fome Zero e a subida de 1% da taxa selic), além de já haver enquadramento dos administradores públicos dentro da lei de responsabilidade fiscal. Some-se a isto com a ausência de poupança interna, como então apontar um crescimento fora do receituário hegemônico? Estando o Brasil, dentro do receituário hegemônico gerado justamente pelos que detêm a hegemonia do sistema econômico mundial, numa posição subalterna, como então tomar decisões estratégicas? De nossa parte, a conclusão lógica é, senão a total impossibilidade, a baixíssima probabilidade de que isto venha a ocorrer.
Apenas como reforço da evidência de continuidade de ausência estratégica, vejamos a proposta de (autonomia do Banco Central do governo Lula (BC, vide Arbex, maio de 2003)(. Sendo o BC o locus de excelência de decisões executivas - de origens portanto políticas e não apenas (técnicas( - como pode este ser dotado de autonomia justamente do Executivo eleito de forma soberana? Um outro questionamento básico é sobre quais serão as premissas econômicas aplicadas (tecnicamente( num espaço de decisão política da economia nacional. O BC regula e administra sobre o sistema financeiro que opera no país. Estando autônomo, quem o fará? Qual país hegemônico dotou de autonomia administrativa e de implementação das políticas financeiras o organismo que regula a moeda de seu próprio país? Por lógica, se há a compreensão que o BC é um espaço de decisões estratégicas, autonomizar estas decisões é justamente abrir mão de qualquer margem de manobra na política financeira do país. Isto é, portanto, abrir mão não apenas dos recursos (como hoje já ocorre com os serviços da dívida), mas também da administração decisória sobre os recursos financeiros de todo o país. Eis a evidência de continuidade de ausência estratégica na mudança de governo.
Conclusão
Avaliamos, com bastante certeza, que todos os argumentos válidos para responder a questão central já foram expostos nos parágrafos anteriores. Afirmamos portanto que um Estado que não é soberano de seus próprios recursos - incluindo aí os recursos políticos, econômicos, humanos, naturais, energéticos, etc. - é incapaz de tomar decisões estratégicas. Isto porque passa a ter de responder, sempre a curto ou a curtíssimo prazo, às demandas externas, provindas justo dos credores e/ou avalistas dos países centrais.
Também reconhecemos que hoje não há possibilidade imediata de exercício pleno da soberania. Mas, tendo uma intencionalidade política, a classe dirigente pode reverter o predomínio hegemônico externo a médio ou longo prazo. O que afirmamos em sentido estrito é que o sistema econômico nacional é muito mais complexo e completo do que a impossibilidade dada pelo (hiperestruturalismo microeconômico(. A busca por autonomia nas fontes energéticas, por energia renovável (biomassa por ex.), cadeias produtivas dentro do país, garantir as exportações de produtos beneficiados (não brutos, como é o que ocorre com o minério de ferro p/ ex.), retomar o crescimento econômico a partir da poupança interna, ampliação do mercado consumidor brasileiro; fortalecimento da inclusão social através de salário (que é renda e não benefício do Estado) seriam saídas óbvias ao menos no médio prazo.
Mas, em termos estratégicos, a lógica nos faz concluir que a hegemonia não será rompida a não ser com uma intenção contra-hegemônica concretizada em tomadas de decisões concretas. Retomando a premissa de coordenação estratégica necessária (Fiori), entendemos que esta é impossível se tiver de partir de elites econômicas e de classe política e tecno-burocrática conformada como classe dirigente. Estas já de há muito se alinharam com as matrizes e não aparentam se (desalinhar( a curto ou médio prazo. Visto o que ocorreu na Argentina, antes de apostar em um projeto nacional, as elites econômicas migraram os capitais líquidos em uma semana, terminando assim de quebrar o país. Dada esta evidência, afirmamos tanto a impossibilidade estratégica pela ausência de soberania sobre os recursos como também pela ausência de coordenação estratégica entre agentes políticos centrais.
Para concluir, apontamos a segunda evidência de necessária coordenação estratégica oriunda de iniciativa de uma coordenação de classe, representante de fato das maiorias, e centrada no eixo político. Retomamos assim a premissa do economista Celso Furtado, afirmando a necessidade de um projeto político que pense e projete estrategicamente ao sistema econômico do país. O detalhe, segundo o mesmo Furtado, é que sem uma lógica inclusiva e distributiva no nível social, não há projeto político e econômico que funcione no país. Disto concordamos e não há nenhuma dúvida. As evidências nos levam à esta conclusão quase que lógica.
Bibliografia e fontes hemerográficas
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A economia brasileira ás vésperas das eleições presidenciais de 2002. Cadernos Adenauer, Ano III, 2002, No. 03, pp.79-102.
SALLUM JR, Brasílio. O Brasil sob Cardoso, neoliberalismo e desenvolvimentismo. Tempo Social, revista de sociologia da USP, volume 11, No. 02, outubro 1999, São Paulo, pp.23-47.
FIORI, Luís José. 60 lições dos anos 90. Uma década de neoliberalismo. Rio de Janeiro, Record, 2001.
Artigos e entrevistas da revista mensal Caros Amigos (São Paulo, Casa Amarela, 2003), em ordem cronológica:
DOWBOR, Ladislau. Altos Juros e descapitalização da economia. artigo de janeiro de 2003,pp.12-13.
FURTADO, Celso. Ouçam esta Voz. entrevista de fevereiro de 2003, pp.30-35.
PEREIRA, Duarte. por enquanto, Mais do Mesmo. artigo de fevereiro de 2003. pp.26-27.
BENJAMIN, César. Brevemente Saberemos. artigo de março de 2003. p.23.
Dossiê:
CAMPANHA JUBILEU SUL. Auditoria Cidadã da Dívida. Belo Horizonte, dezembro de 2001.
1 O Partido dos Trabalhadores está na oposição ao governo da União desde o ano de 1980, quando foi fundado em plena Abertura política e re-organização partidária ocorrida durante o governo do general de cavalaria João Baptista Figueiredo. Conquista o poder do Executivo vinte e dois (22) anos após sua fundação.
2 É importante ressaltar que não estamos fazendo a apologia nem a panacéia da vontade política (pejorativamente chamada também de (voluntarismo político(, ao menos nesse nível decisório) em relação às forças reais da economia e da sociedade. Muito pelo contrário, afirmamos que são justamente estes elementos reais que podem fazer preponderar o papel eminentemente político por acima de decisões de governo que se auto- proclamam de (técnicas( e quase inquestionáveis.
3 Os valores tem origem na Secretaria do Tesouro Nacional e no Banco Central, citados pela Auditoria Cidadã da Dívida, página 15.
4 Estes valores tem origem nos boletins do Banco Central e na Revista Conjuntura Econômica, citados pela Auditoria Cidadã da Dívida, p.14.
5 Para não estender o comentário, queria fazer uma analogia. Dificilmente um exército reacionário será anti-imperialista e arriscará sua capacidade de intervenção interna numa guerra contra uma potência externa. Para não falarmos no exemplo recente da invasão ao Iraque, vale lembrar a Guerra das Malvinas (1982); quando as melhores tropas argentinas ficaram no continente para conter uma potencial insatisfação popular.
6 FURTADO (2003), revista mensal Caros Amigos, na entrevista contida entre as páginas 30 a 35, fevereiro de 2003. Nesta entrevista, o economista discorre sobre os modelos econômicos, o debate a respeito do desenvolvimento do país e das possibilidades estratégicas da nação.
7 Neste artigo, ao final do texto,César Benjamin (Caros Amigos, março de 2003) faz um comparativo orçamentário. O ministro da fazenda, o atual, Antônio Palocci, alega a subida de 1% da taxa de juros por causa de (inesperadas pressões inflacionárias(. Esta subida de 1% tem equivalência em valores reais de mais de R$ 5 bilhões de reais, na rolagem da dívida interna brasileira. Este montante, equivalente a 1% de juros causados por (pressões inesperadas(, totaliza os fundos destinados a três vezes o Programa Fome Zero (do governo federal, lançado logo no início do mandato). Os números portanto, apontam, senão a prioridade declarada, a pouca possibilidade real de, em se mantendo o modelo, realizar políticas mínimas de inclusão social. Verifica-se portanto válida a premissa de Furtado.