A premissa do tema é a da neutralidade jornalística. Se partirmos da idéia-guia que não há estudo, construção, discurso, linguagem ou mesmo palavra "neutra", compreendemos que toda e qualquer empresa da indústria de telejornais gera sua própria narrativa sobre a realidade coletiva.
Na base da lei, a liberdade de imprensa é garantida, mas toda e qualquer empresa de difusão de massa (rádio e televisão) é uma concessão de ordem pública. Entenda-se o Estado como gestor do que seria público e com mandato gerado através de um contrato social, incluído neste o monopólio da violência e a regulamentação da vida em sociedade. As empresas jornalísticas, hoje caracterizadas como uma das partes de grupos de comunicação de massa, seriam concessionárias de um bem público (a informação de massa transmitida pela televisão) cedidas pelo Estado gestor da sociedade e ponderador de conflitos.
O "jogo democrático" implicaria um poder de pressão da chamada opinião pública (as camadas receptoras), sobre as empresas privadas concessionárias de benefício público (os grupos de telecomunicação) que têm a delegação da própria "democracia de direito" para construir linguagens de comunicação social. O telejornal expõe e transmite construções de realidade (através de linguagens midiáticas), partindo de seu próprio ponto de vista.
Também faz parte do "jogo democrático" hipóteses de "teoria da brecha". Partindo de duas premissas, a de que a verdade por si só é transformadora. O olhar do repórter dá sentido e forma a matéria, o ritmo alucinado de geração das notícias permite uma certa "abertura" para a assinatura do profissional de comunicação. Desta forma, profissionais seriam disputados por blocos ideológicos, como fazia o antigo PCB ou o consenso da imprensa democrática-nacional do período da abertura do regime militar. Seu bem mais valioso seria a capacidade, ainda que pequena, de interferir na realidade através do texto e do olhar.
Em tese, uma "democracia representativa e de direito" implica em partidos consolidados com programas definidos. Parcelas da população que seriam formadoras de opinião pública, teriam frações organizadas nestes partidos ou sofrendo influência destes agrupamentos políticos. Nos papéis clássicos das categorias profissionais construtoras de realidades, estes blocos político-ideológicos disputariam a formação cultural, a consciência nacional e o próprio olhar destes trabalhadores intelectuais. Assim, a pirâmide receptora têm na sua ponta os intérpretes da realidade, cuja função é criar "brechas" ou construir sua própria linguagem dentro dos limites da indústria.
A indústria de comunicação teria o jornalista como mão de obra produtora de linguagens. Ao mesmo tempo, os profissionais de comunicação são parte da população formadora de opinião pública. Como produtora de mensagens, esta categoria seria disputada por blocos de opinião, oscilando entre algumas influências. Os interesses econômico-políticos, e a fronteira entre ambos é tão tênue como confusa. Seus próprios pontos de vista, que são também pré-moldados e propositadamente confundidos com os da indústria (vide manuais de redação e a autocensura). Somadas estas as razões de mercado e a função exercida nos grupos para os quais trabalha.
De sua parte, a indústria em si se equilibraria entre as razões de mercado, tabelas de anunciantes, choques e confluências de interesses. Isto sem perder de vista que seu produto é informação e sua marca credibilidade.
A narrativa acima, ao menos em tese, representaria uma espécie de "normalidade democrática". Ênfase bastante grande estaria voltada sobre o jornalista, como fator essencial da geração do produto "notícia televisiva". Várias discussões estão abertas a partir desta "normalidade". Apenas para citá-las, seriam estas de relevância:
-A instantaneidade da indústria impediria uma construção mais profunda da realidade?
-As limitações de intervenção do profissional de comunicação teriam como marcos sua própria formação e posição social, além dos interesses da indústria?
-Não seria a opinião pública outro mito do "jogo democrático-representativo", onde as maiorias receptoras teriam uma capacidade mínima de intervenção limitada, sempre e quando respeitem as próprias regras do jogo?
-Seguindo a suposição dos mitos "democrático-representativos", não caberia às maiorias receptoras construírem seus próprios veículos, com regras autônomas de produção, recepção e intervenção na linguagem transmitida?
-Não é a discussão de fundo o controle da mídia de massas? Seria esta a forma hegemônica de gerar consenso em sociedade, consenso inclusive do tema das polêmicas? Sobreviveriam os mitos e o "jogo" em si não fosse este próprio consenso?
Penso que é necessário aprofundar estes temas em outras oportunidades. Creio haver exposto com um grau mínimo de rigor um olhar particular sobre os mitos e regras básicas da indústria dos telejornais. Compreendo enfim, ser esta uma discussão de fundo, tal como afirmado no início, partindo de premissas básicas, buscando apontar o nível de profundidade (e de crítica) o qual se pretende atingir.
O TELEJORNALISMO POLICIAL E AS CLASSES PERIGOSAS
O tema abordado no texto acima foi o de determinadas premissas de abordagens jornalísticas. São coordenadas de pontos de partida para onde tentei desenvolver um olhar sobre aquilo que entendo serem os parâmetros de consenso possíveis. Os consensos a que me refiro são anteriores a toda e qualquer forma de linguagem e convenção. Não são as regras do jogo mas os "critérios de jurisprudência" para desenvolver as regras da indústria da telecomunicação de massa. São também os níveis de controle social toleráveis por esta mesma indústria. Isto, partindo do princípio que os grupos de comunicação são um dos pilares de uma sociedade de controle.
Neste texto a intenção é de abordar alguns parâmetros do olhar, ou variações de olhares partindo de um ponto de vista semelhante da indústria. Vou abordando o tema da violência urbana como básico, isto porque os textos e o cotidiano permitem este subsídio.
"A associação de imagens entre pobreza e violência é ainda feita nos programas televisivos quando os territórios demarcados e segregados da pobreza - morros, favelas e bairros pobres da periferia - servem como cenário, pano de fundo, das tomadas das matérias do jornalismo policial, quando se mostram policiais em ação" (Elizabeth Rondelli).
Quando a autora afirma que "a violência é ainda feita..." se supõe um mover de vontades para que a feitura dos telejornais mude seu ângulo e ponto de vista. Vive-se a transferência de problemas de violência onde a própria indústria participa. Quando o Estado chega numa zona de exclusão, entra batendo e acompanhado de seu "cronista oficial". Ao tecer a identidade do lugar (pobreza = criminalidade), de antemão existe uma hierarquia do crime no Brasil. Porque a associação da pobreza com o crime em pequena escala (ainda que mais violenta) não gera também a associação da ilustração com o crime de colarinho branco? A imprensa desde que fundada na Idade Moderna é a alma da cidade, da "urbis". Porque ela associa a baixa urbanização ao crime sem ao mesmo associar a cidade sofisticada com corrupção?
"Aqui Agora: o cinema do submundo ou o tele-show da realidade" (Ivanna Bentes).
Pode parecer estranho, mas creio que se responde as perguntas acimas com a afirmação do trabalho sobre o extinto telejornal do SBT, chamado Aqui Agora. Este não foi o primeiro mas rompeu com limites, indo além da transposição da rádio-novela policial (ainda muito popular nas rádios AMs) para a televisão. O trabalho da professora Ivanna é sério e contundente, mas não será que o próprio título já contém sua resposta? Como pode existir um "teleshow da realidade"? Cai no lugar comum afirmar a espetacularização do cotidiano, mas o dito submundo, coberto por uma câmara de TV como se fora de cinema, já é enquadrado conceitualmente nesta própria denominação: submundo. Se os espaço das maiorias é o dito submundo, é porque já se prevê uma realidade excludente, hegemonizada pelos que estão no mundo das leis e dos brancos, do código civil e seus respectivos direitos garantidos pelo regime democrático. Enfim, a maioria são os não-brancos, que vivem em seu próprio submundo regidos por suas leis, o mundo real e não-legal, o código penal e seus executores oficiais ou pára-policiais.
No final do século XIX foi desenvolvida a ciência forense e criminalística. Uma de suas bases teóricas era a Lombrosiana (batizada com o nome de seu criador, Lombroso), uma variável do determinismo biológico (lamarquista) e positivismo da época. O trabalho policial nos centros urbanos brasileiros destes tempos, pós-abolição, era centrado em duas categorias: "a qüestão social é um caso de polícia" e o controle da exclusão das classes perigosas. Originário das novelas folhetinescas, a narrativa policial nos jornais brasileiros acompanhava o trabalho de inspetores e detetives nos "submundos" e as intervenções das tropas de choque em greves e levantes como a Revolta da Vacina, e as Greves de 1913, 1917 e 1918. No início do século XX, a cidade do Rio, no governo do prefeito francófilo Pereira Passos, foi retirada parte da "Pequena África", as zonas da Central, Portuária e da Saúde, para dar vazão aos grandes bulevares. Ou seja, era a reprodução da cópia do modelo parisiense promovido pela reação prussiana após o Levante da Comuna de Paris. Então, a imprensa policial do Rio cobria os combates às maltas de capoeiras que controlavam cortiços e mocambos, resistindo ao despejo forçado. Acompanhava também às perseguições da polícia técnica, a partir da primeira convenção policial latino-americana, cujos objetos de estudo foram o sindicalismo revolucionário e a insurreição urbana.
Dos folhetins de jornais passou-se para as rádio-novelas policialescas. Nos anos 60, do rádio se foi para a televisão. Não que necessariamente toda e qualquer cobertura de polícia numa cidade brasileira seja tendenciosa. A "premissa" é outra, é o ponto de observação de toda e qualquer narrativa que observa a singularidade do grotesco na violência entre os pobres. A folhetinização das notícias e narrativas cotidianas não é um fenômeno exclusivo da TV brasileira. Também não é feito apenas nas editorias de polícia. O controle dos meios, a abundância de fatos e situações, a instantaneidade da indústria e a suposta passividade da audiência são fenômenos mundiais. O que acontece na cobertura da violência urbana é a transposição do modo de produção da indústria somado ao controle social e exclusão das chamadas classes perigosas. Ou como diz o próprio FMI, são populações chamadas de "sobrantes ou periféricas".
"O que não toleramos na violência é vê-la na vida real, apesar da insistência da televisão em mostrá-la. Por isso ela tem que ser afastada, escondida."
"Para que, desse modo factual de se construir a violência, se passe a propor, num discurso velado, como medidas de profilaxia e higiene social, a eliminação dos pobres, como mecanismo de erradicação do crime e da pobreza, tida como a sua principal causa, não há muita distância." (Elizabeth Rondelli).
Se o que "não (nós) toleramos é vê-la na vida real", fica a pergunta de quem é esse "nós coletivo" que não tolera algo que vive em seu próprio cotidiano? Talvez seja óbvia a resposta, essa identidade social não tolerante a violência é aquela que convive na cidade ordenada. Ainda que esta voz seja crítica, pertence e vive na expectativa que a violência urbana é um "problema" e que tem solução. Mas como esta solução é possível se a própria criação do aparato repressor têm suas origens na exclusão? A indústria de telecomunicação não reproduz a sociedade, ainda que como mediadora? Que sociedade justa é esta que a mídia representa e media?
Simplesmente nenhuma pois esta não existe. Para aqueles que incorrem em infração, mas vivem no mundo das leis, a mídia dá direito de resposta, ouve o advogado e pondera em suas afirmações. Na maioria dos que vivem no mundo real, a TV chega junto com a polícia, focalizando a câmara atrás da alça de mira do fuzil. Se o meio faz o homem, então é impensável que um edifício na Barra desabe por erro na construção. Mas, é suportável ver famílias vitimadas por enchentes há quase meia década, continuarem a viver em abrigos. Uma vez que a pobreza e o crime caminham juntos, não será possível aceitar o empobrecimento de famílias de classe média alta, pois estas pertencem a outro lugar.
A última abordagem que gostaria de desenvolver é a visão de "solução do problema da violência". Poderia ser um outro problema qualquer da urbanização brasileira, como enchentes, falta de escolas, saúde e etc. Quando se parte do ponto de vista que há um problema, é porque está compreendido que há uma solução. E, esta é justa porque existe um direito, derivado numa lei para o que é justo. A visão reformadora do caos urbano, "a desordem do mundo e a ordem do jornal", é um dos papéis mediadores da indústria da comunicação de massa.
Se mudamos a premissa, e partimos do princípio que a sociedade que a indústria media é estruturalmente injusta, qual mediação justa fará esta mesma televisão? Quando assumimos o princípio que não há inocência ou displicência profunda em setores de alto nível de responsabilidade e decisão, se assume a premissa do cinismo da indústria. Este cinismo é uma de suas características básicas, é um dos pilares da "fabricação do consenso" (Chomsky). Entramos também na discussão dos controles dos meios de difusão, e o nível de associativismo das camadas receptoras.
Voltando ao tema da violência, partindo da premissa da necessidade do controle social da difusão coletiva (o que implica um outro consenso sobre a função da mídia), cito um repórter especial da toda-poderosa Rede Globo:
"Sonho com um jornalismo popular, jornalismo a favor da população. Numa ação policial, por exemplo, mostrar a polícia entrando numa favela e posicionar a câmera lá no meio da favela, nos barracos, apanhando com o povo" (Caco Barcellos).
O CONSENSO, O SOFISTICADO E O GROTESCO
Há uma discussão muitas vezes deixada em segundo plano por profissionais de comunicação. Esta é a produção de bens simbólicos de corte popular. Com o Plano Real, o consumo de televisores cresceu ainda mais, trazendo outros padrões de consumo de produtos televisivos. O aumento da oferta atinge uma camada cada vez maior das chamadas classe C, D e E (obs: como para mim é impossível propor no texto outra segmentação social, acato o conceitos de classes A, B, C, D e E). A presença da TV aberta na vida das famílias brasileiras, já era grande e depois se torna gigantesca.
A explicação é simples. Com a estabilização monetária, passou a ser possível para as famílias de baixa renda, poupar e comprar no crediário, ainda que pagando juros absurdos. Nos gêneros domésticos de "primeira" necessidade, o consumo de televisores coloridos cresceu vertiginosamente. Desde os tempos do "milagre econômico" da ditadura militar, o Brasil tem mais televisores do que geladeiras. Esta política de consumo é ainda mais incentivada a partir de 1994. O aumento dos aparelhos de TVs nos lares, somado ao advento da televisão a cabo e por assinatura, gera uma mudança na grade da programação das emissoras abertas. É a mudança da grade, com o aumento dos "programas populares", a essência da reflexão que desejo aportar.
Em tese o advento das TVs por assinatura (transmitida por cabo ou direto, via satélite) leva ao crescimento da segmentação do público receptor. Como discutimos em sala de aula, se levanta a polêmica se de fato há uma "segmentação de público" ou o fenômeno é uma "massificação dos mercados segmentados possíveis". Particularmente fico com a segunda hipótese. Ainda que massificada, a pouca segmentação que existe, "empurra" as classes ditas A e B para os programas das TVs por assinatura. Com a migração da audiência "formadora de opinião" (basicamente por ser reprodutora de cadeias hierárquicas na sociedade), a grade das "abertas" tenderia a se dedicar mais e mais a disputar os públicos das classe subalternas (e/ou oprimidas, e/ou espoliadas, e/ou exploradas, e/ou excluídas). Estes dados acima me parecem ser de um realismo (ainda que superficial) irrefutável.
Faço o primeiro qüestionamento neste sentido. Porque apenas quando as classes reprodutoras de opinião começam a migrar sua recepção (audiência) para a TV por assinatura, aí sim a grade de programação torna-se mais "popularizada"? No meu entendimento, há um conjunto de fatores operando (mercadológicos, potencial de consumo direto da massa receptora, política das emissoras), embora um seja determinante. Este é a "garantia de representação" numa sociedade excludente. Ou seja, apenas quando se garante a identificação da elite consigo mesma (no caso agora nas TVs por assinatura), é que se "permite" uma massificação da representação "popular". Isto, mesmo que estas representações sejam alvos de crítica. É impensável uma estrutura de exclusão social onde a elite não tenha a hegemonia da representação. Toda uma gama de "novos" valores de consumo, incorporando a recepção de bens simbólicos como fator de sofisticação (status) é implantada no governo Collor e depois consolidada no Plano Real e nos dois mandatos de FHC. É somente aí que a grade das abertas tende a contrapor o sofisticado com o grotesco, ou seja, o "popular", segundo os media brasileiros.
No Brasil vivemos sob a associação de que todo um caldo de cultura popular, quando assimilável no "consenso", torna-se nacional. Quando este mesmo caldo não se permite assimilar, é classificado como "grotesco" ou ilegal. No caso das grades de programação das emissoras de sinal aberto, creio existirem três níveis básicos de política de recepção. Em tese, se copia a fórmula da televisão estadunidense. Os talk shows seriam voltados para um público mais sofisticado e os reality shows trariam um apelo às classes subalternas. Ambas "assistiriam a si mesmas" na telinha. A princípio são dados irrefutáveis, mas falta a mola mestra da crítica à programação das TVs abertas. Um nível seria mais sofisticado, outro mais popular, mas o "jeitinho brasileiro" de gerar o controle de opinião-recepção está justamente nos programas de maior audiência, e que são policlassistas. Me explico.
Assim como é impensável uma sociedade estruturalmente injusta onde os executores do mecanismo de injustiça (a classe dominante e sua auxiliar) não se vejam representados com privilégios, é igualmente impraticável uma exclusão social sem consenso. No Brasil, um dos fatores básicos deste consenso é a "nacionalização" de bens simbólicos. Ou seja, líderes absolutos de audiência, como o Jornal Nacional e a novela das 8, não funcionam caso sejam excludentes para este ou aquele segmento. É na programação líder de audiência que o "Brasil se vê". É quando domésticas e patroas choram juntas, uma sentada no chão e a outra no sofá, comovidas com o drama da pobre-menina-rica que tem leucemia na novela. A homogeneização dos conceitos, no caso a doença, a idéia de sofrimento, é geradora de identidade e cumplicidade. A contradição social presente na vida real, o tratamento diferencial dos sistemas público e privado de saúde, não está na novela. Transcende a doença, o drama comum a todos os seres humanos. Uma enfermidade incurável entregue a Deus e não aos homens, inalcançável tanto para patroas como para domésticas.
Naquilo que é consensual, o Brasil se enxerga sem muitos dramas. Tomando a novela, herdeira do folhetim e da rádio-novela como exemplo, a caracterização da pobreza é feita de forma "suportável" para as elites e "agradável" para os que vivem na pobreza real. Já os reality shows, uma espécie de "a vida como ela é" das classes excluídas, são grotescos e absurdos. Nos cabe perguntar "porque"? Assim como na programação sofisticada, e com estética de países capitalistas centrais, vários fatores operam, e creio que um destes é determinante. Nos programas de auditório contemporâneos, tomemos o Ratinho como exemplo, entendo que é feita uma "apropriação" do significado do que seria popular. Ou seja, dentro dos códigos atuais e hegemônicos (portanto nada populares), é gerada uma programação que reforça a expectativa dos valores (de alienação) necessários para manter a exclusão social. Isto, agindo no universo dos bens simbólicos e da geração de sentidos.
Reforçar estereótipos pejorativos, somados a figuras salvacionistas, o próprio Ratinho por exemplo, que trazem uma solução ordeira e moral para o drama do povo, é algo tão brasileiro (e antigo) como arroz e feijão. Como seria possível dominar sem alienar de sua própria potência e identidade as maiorias oprimidas?! Não seria, óbvio que não. Tampouco seria viável para o capitalismo popularizar os produtos sofisticados (a segmentação massificada), uma vez que a sofisticação necessita de diferencial de consumo para se manter como tal. Seu mecanismo de domínio é outro, seduz pelo privilégio, diz ser "para poucos, exclusivo, para você!" Ainda que fossem apenas estas duas grandes faixas de bens simbólicos, o sofisticado e o grotesco, a dominação alienante não seria tão eficiente. É necessário o consenso.
Toda e qualquer sociedade necessita de níveis mínimos de consenso para funcionar. Sociedades injustas e excludentes a partir de sua própria estrutura, como a brasileira, necessitam de acordos nacionais conservadores. E, estes tem de ser sólidos e com credibilidade. Aí entra o padrão Globo de qualidade, a grade da TV aberta consolidada desde os tempos da ditadura (a partir do governo Médici) e os espaços midiáticos, tendo o Jornal Nacional e a novela das 8, como exemplos máximos, onde todo "o país se vê". A manipulação do consenso excludente será mais ou menos sutil segundo o nível das contradições que viva esta mesma sociedade e sua luta de classes e popular. A censura jurídica pode ou não ser necessária, mas a manipulação da opinião pública é presente tanto nos EUA contemporâneo, como bem expõe a crítica de Chomsky, assim como no regime nazista, com Goebbels como ministro da informação.
Voltando ao que chamei de três níveis de programação, a de consenso, a sofisticada e a grotesca (chamada de "popular" pelos executores desta política), gostaria de realizar um último diálogo imaginário com alguns autores. Não vejo virtude alguma nas programações de consenso das TVs abertas. Entendo ser esta a parcela estratégica da programação, a mola-mestra e o centro nevrálgico da manipulação da audiência brasileira. Tampouco creio ser possível "imaginar reformas" nesta essência. Além de floreios de linguagem, todo o resto seria fruto de uma leviana idealização "de um intelecto com boa vontade". Ultrapassando o "universo dos desejos" (da boa vontade), o mundo real obriga-nos a vê-lo como é. A partir desta crueza, cada coletividade deve trabalhar ou não para transformá-la. Acredito que isto se aplica para qualquer política central do mecanismo de dominação, tal, como a de controle da opinião-recepção.
Rio de Janeiro, Maio de 2001
Como veículo de comunicação de massas, a televisão é o de maior penetração no cotidiano dos brasileiros. A totalidade do território nacional é coberto pela TV brasileira. Esta abrangência é parte de um esforço econômico e de planejamento de alto escalão, promovido na década de 1960, para tornar o conjunto do território nacional "integrado e governável". Deste esforço fizeram parte o "alto escalão do regime militar, a direita orgânica do Ipes e Ibad, e o grupo Time-Warner associado às organizações Globo" (Dreifuss: "1964: a conquista do Estado"). Sendo a TV o veículo mais importante, seria mais que previsível que seu produto de comunicação jornalística, o telejornal, se tornasse o de maior impacto na sociedade brasileira.
A função de um grande veículo integrador não é um invento dos militares, ao menos não os de 1964. A Rádio Nacional e seu organismo controlador, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), do Estado Novo getulista (1937-1945), ocupou - guardadas às devidas proporções - um papel semelhante ao da TV nos dias que seguem a modernização conservadora dos anos60 e 70. Este mesmo papel teve o cinema na difusão do chamado american way of life, em especial no pós 2a Guerra Mundial. A vinda de Walt Disney para o Rio de Janeiro, quando a cidade ainda era a capital do país, como embaixador da Aliança para o Progresso e a criação do personagem Zé Carioca marca este período. Reconhece-se o cinema como maior patrimônio e arma de propaganda estadunidense, em todos os tempos, desde que este país se afirmou como potência. Sem falsas desproporções, a TV brasileira teria esta mesma função como propaganda e controle interno da população do país.
Nenhuma modernização conservadora se realiza sem um modelo concentrador. Tampouco se estabiliza sem garantir a permanência de práticas já cristalizadas, tanto no imaginário popular, como no nível educacional da população que se quer atingir. Uma vez que somos um país de imensa tradição oral, oralidade esta fruto de comunicação popular somada à carência de educação básica da maioria dos brasileiros, obviamente que esta população vai se comunicar e consagrar a forma oral como veículo principal. Isto já ocorria com o rádio, sendo o modelo concentrador a já citada Rádio Nacional. O mesmo não acontecia com o primeiro grande grupo de empresas de comunicação do país.
Os Diários Associados, organização empresarial comandada por Assis Chateaubriand, tinha aspectos empreendedores, um certo tipo de capital nacional não vinculado ao capital transnacional, aplicando um modelo desconcentrador de suas mídias. No campo da mídia impressa, seguia o modelo de desenvolvimento associado dos jornais do EUA da última metade do século XIX. No caso da televisão, tentou aplicar o mesmo modelo, com alto nível de autonomia dos gerentes regionais. Mas desta vez, sua forma administrativa era incompatível com o processo de integração nacional promovido pela teoria das fronteiras ideológicas e da associação de capitais brasileiros organicamente vinculados (e financiados) pelo capital estadunidense e de outras matrizes. O impacto tecnológico que este momento proporcionou à Rede Globo, gerou uma capacidade de gerenciar a indústria da televisão que até hoje é imbatível e com grande impacto no mercado de mídia internacional. O brasileiro que "não vive sem rádio", passou a ser o país da televisão de alta qualidade.
As tradições dos maiores produtos televisivos também provêm de uma herança dos primórdios da comunicação de massas no Brasil. É possível traçar uma linha contínua de historicidade desde o romance de folhetim, passando pela radio-dramaturgia até chegarmos à atual telenovela. Hoje, a telenovela já tem mais de 30 anos de sucesso absoluto do gênero. Já a rádio-dramaturgia, que somada à teoria lombrosiana de criminalística, marca a polícia de controle social e sua respectiva cobertura jornalística. O peso das verbas públicas apropriadas pelo Estado, hoje se reflete no volume de propaganda oficial e nas concessões de canais de rádio e TV. Respectivamente, um nível de ingerência semelhante ao controle de importação de papel dos anos 1940 e 1950, fator de quebra de vários jornais na época.
Do modelo concentrador ao nível econômico, aplicou-se simultaneamente uma versão oficialesca, "chapa branca", associando a TV líder de audiência, a Globo, ao regime que favoreceu a mesma. Finda a ditadura, a concentração econômica permanece, manifestando-se agora ao nível global, com mega-conglomerados de comunicação atuando em várias mídias simultaneamente. No Brasil, o modelo familiar, como as famílias Marinho, Civita e Saad, que se atualizaram em formas gerenciais, garantiu seus ingressos de capital para atualizar seu parque tecnológico, permanece. Seguimos um formato produtivo de matrizes e repetidoras, com muito pouca produção regionalizada. No que diz respeito aos telejornais, este se verifica nos jornais locais, nas matrizes estaduais, e no primeiro bloco destes jornais, nas emissoras de micro-regiões. Apenas como exemplo, no caso do estado do Rio, respectivamente Globo Rio, Serra-Mar, TV Lagos e Alto Litoral.
Da censura dos tempos militares se passou a "orquestra sem regente", Este é um conceito crítico da TV Cultura sobre as emissoras comerciais do país, onde o modelo de telejornalismo é o "show de imagens". Em tese, a mídia oficiosa foi substituída na disputa por credibilidade. O custo do segundo no intervalo comercial é o mais caro no período de telejornais, em todas as TVs brasileiras, não importa qual a emissora. Razões para o impacto na sociedade brasileira contemporânea já foram acima comentadas além daquelas discutidas em sala de aula. Mas, o porque da imagem do modelo concentrador ter sido alterado para permanecer concentrado, este tema o texto trata a seguir.
Questionado por um estudante de comunicação dos EUAa respeito de uma teoria de complô, Noam Chomsky assim respondeu:
Estudante - "Gostaria de saber como a elite controla a mídia?"
Chomsky - "Como é que ela controla a mídia? A pergunta não tem razão de ser. A elite não precisa do controlar a General Motors uma vez que é sua proprietária."
A partir desta observação é possível compreender que no caso brasileiro não era apenas a TV que apoiava o regime. Mas o maior conglomerado é o regime, é parte fundamental deste, é e continua sendo.
Assim, é impossível "endemoniar" o regime militar como um exemplo "perverso" de tempos de exceção. Já com a abertura do regime vivemos um "período de normalidade regido por regras de credibilidade de mercado". A normalidade de mercado encara o telejornal como um espetáculo televisivo, por vezes passível de alguma discrepância com o chamado pensamento único, noutras não.
Caberia o início de uma discussão da importância de uma TV pública no país, organizada com algum grau de independência em relação aos mandantes de turno. Talvez o mais apropriado fosse uma rede de TVs públicas, tomando a Rede Cultura como exemplo, mas com programação com alto grau de regionalização.
De acordo com Marco Antônio Coelho, diretor de jornalismo da Rede Cultura:
"Para os jornalistas formados nas universidades brasileiras, é difícil contar um caso sem recorrer ao compêndio de clichês do telejornalismo americano."
"Foi percebendo a necessidade de quebra da lógica dessa orquestra sem regente que a proposta do telejornalismo público da TV Cultura passa a ser uma alternativa de informação para a sociedade."
"As histórias públicas são aquelas que superam os interesses privados, mercadológicos e partidários."
"O fetiche do furo cede lugar à cobertura regular, aprofundada, purgada do interesse espasmódico."
É possível apontar uma total incompatibilidade entre as funções públicas e mercadológicas da TV. Ou seja, entre o interesse coletivo das maiorias e o privado das grandes corporações. Mas, sendo necessário "credibilidade" como um valor agregado ao produto informativo das emissoras, é possível algo como "a teoria de brecha". Esta ocorre quando alguns produtos de informação tornam-se relevantes para o interesse popular, seja por sua relevância ou pela capacidade crítica-argumentativa dos trabalhadores de comunicação que o produziram.