- Introdução
Entre os dias 14 e 17 de dezembro de 2009, em Brasília, delegados estaduais representando movimentos populares, o Estado em seus distintos níveis de governo e parcelas dos agentes econômicos do setor, discutiram a comunicação social brasileira em uma instância não vinculante. Trata-se de um fato inédito, porém, como teve uma cobertura editorializada e parcial (quando esta ocorreu), o tema passou despercebido pela maior parte dos cidadãos do país. A correlação entre a falta de publicização e a pouca agregação da sociedade no debate sobre os rumos da comunicação social no Brasil, percebidos no processo de realização da 1ª Conferencia Nacional de Comunicação Social (CONFECOM), colaboram com a trajetória de disseminação e firmamento dos conglomerados de empresas de comunicação, os quais estão intrinsecamente entrelaçados com o movimento do capital. Como agentes de transmissão ideológica do poder político-econômico e social estruturante no país, as empresas de comunicação prosseguem constrangendo governos, neste século XXI, a adotarem políticas de corte neoliberal.
Nesse cenário aponta-se como necessária a demarcação de espaços que pau tem e debatam assuntos de interesse público, como a comunicação. A luta popular nos processos de tratativas legais sobre o setor da comunicação no país foi manifestada em alguns momentos, sendo um dos mais recentes o debate sobre o Sistema Brasileiro de TV digital (SBTVD) e, atualmente, a realização da CONFECOM.
É importante para o desenvolvimento desse texto acadêmico sobre a democratização da comunicação e a Conferência Nacional abranger a reprodução do modo de financiamento baseado na publicidade das empresas de comunicação e suas conseqüências na configuração do setor comunicacional no Brasil. Esta questão é chave para estabelecer algum tipo de paridade no contexto comunicacional brasileiro, envolvendo o debate sobre o sistema privado, público-estatal e público não-estatal, sua relação conceitual e aplicativa na estrutura social.
O artigo utiliza como aporte teórico-metodológico a Economia Política de Comunicação (EPC), pois a partir dessa perspectiva é possível analisar e compreender as lógicas do mercado, bem como a regulação promovida por parte do Estado, a partir da movimentação entre os diversos setores da sociedade. Entender as articulações dos atores individuais e agentes sociais coletivos não empresariais nesse contexto é um objetivo que não somente permite a realização dos estudos a partir de paradigmas fundantes desta inter-disciplina, como também fornece subsídios mais estruturados para uma melhor compreensão das reais capacidades da sociedade em se organizar e fazer valer suas necessidades e vontades, firmando a comunicação como direito humano, em prol do interesse público.
Como material empírico para a análise da 1ª Conferência Nacional de Comunicação serão desmembradas reflexivamente algumas propostas das entidades da sociedade civil organizadas levadas ao encontro, com o objetivo de instituir uma comunicação mais democrática. Com a especificação e desmembramento dessas diretrizes, na ótica da Economia Política da Comunicação, será possível averiguar o quanto a convocação da Conferência estabeleceu tônicas democratizantes para o setor da comunicação.
- Pactos e dissensos
Para os rumos deste trabalho, é imperioso estabelecer argumentos sobre a inter-relação entre as ações nos movimentos populares pela democratização da comunicação e, por consequência, das ações contrárias, próprias do setor da comunicação como parte constitutiva do desenvolvimento e fortalecimento no neoliberalismo. As categorias apresentadas trabalham para construir uma perspectiva sólida sobre o campo comunicacional na contemporaneidade, sua relação hegemônica com o sistema capitalista e as modificações sociais decorrentes da presença midiática, configurando uma lógica socio-técnica das relações sociais e sua maneira de reproduzir o sistema vigente. Neste contexto nota-se que o posicionamento midiático incide em significado na visão elaborada pelos cidadãos sobre as problemáticas da sociedade em que vivem, inclusive as da comunicação.
Na América Latina, um fenômeno de transmissão ideológica aumenta na segunda metade da década de 1980 e triplica a sua força nos anos 90. Trata-se da profusão, em larga escala, das premissas do pensamento único neoliberal, transmitido através das linguagens e estéticas dos conglomerados econômicos, cujos produtos são os bens simbólicos do próprio capitalismo (BRITTOS, 2000).
A partir do emprego das empresas de comunicação e de seus interesses na expansão do mercado capitalista, através do regramento das sociedades latino-americanas pela política de restauração neoliberal, foi imposta uma agenda a ser cumprida em cada país do continente na busca pela efetiva aplicação do receituário que ocasionava: aprofundar a integração econômica da região; menor intervenção do Estado nas áreas sensíveis e estratégicas para a soberania popular; financeirizar a base de cálculo das políticas econômicas a partir da flexibilização; e impor regime de caixa para toda a atividade com finalidade de serviço público realizada pelo aparelho estatal em seus três níveis de governo. Para isso, o câmbio de mentalidades teve como portador de conceitos termos genéricos como ‘globalização’ (econômica) – sem qualquer relação com a interação cultural dos povos –, ‘mundo sem fronteiras’, ‘flexibilização’, ‘modernização’, ‘desburocratização’ e outras manobras legais que tenham por finalidade retirada de direitos, aumento da carga horária não-remunerada e multifuncionalidade da mão-de-obra sem a devida remuneração salarial.
Nesse cenário as tecnologias da comunicação permitiram e efetivaram, isto é, materializaram em linguagens e estéticas, a expansão dessa ideologia entre os povos, consolidando o capitalismo global. Druetta argumenta que o bloqueio do socialismo e a estruturação do sistema mundial, fortalecido a partir da hegemonia norte-americana, criam uma nova ordem no panorama mundial (DRUETTA, 2004). Nessa direção, a década de 1980 desencadeia a implantação das políticas neoliberais e, por conseguinte, das reformas do Estado. Já no decênio de 90, o Consenso de Washington projeta a integração dos mercados em blocos regionais, um dos alicerces da globalização.
Isso é abordado por Druetta, para quem as instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), transformam-se em fontes de informação e agendamento, colocando na agenda de governos globalizados os temas que devem ser pensados e sofrer atuação do Estado e do conjunto social (IDEM, p. 22). Entende-se, assim, que o simbólico teve um papel importante na aceitação das políticas neoliberais, articulando entre si a política econômica e a publicidade:
“(...) as ações de ordem simbólica do FMI e Banco Mundial se unificam no que conhecemos como hipóteses da agenda setting que sustentam os meios não nos dizem o que pensar e sim aquilo sobre o qual devemos pensar: neste quadro se trata de instituições financeiras internacionais que se transformam em fontes informativas, colocando na agenda dos governos globalizados e na mídia dos países os temas acerca dos quais se deve pensar e atuar. Por sua parte os meios referem-se e produzem estes conteúdos e ações ao incorporar em sua própria agenda informações sobre as reuniões internacionais e as atividades governamentais.” (IDEM, p. 23)
Neste quadro de concentração de mercado, caracterizando uma busca desenfreada pelo lucro e redução do emprego formal, o campo da comunicação social é deformado pela atuação dos grandes agentes econômicos. Isto resulta, cada vez mais, na crítica desta atuação e na consequente luta por implantar um controle social e de um aparato legal que seja estruturado para tal fim e em debate com a sociedade organizada.
Com esta pauta e nesta conjuntura, apresenta-se na segunda década do século XXI um desafio, a partir do debate do novo marco regulatório da comunicação social, que, no final de 2009, puseram frente a frente a representantes das empresas privadas (mas não os principais radiodifusores), do setor público-estatal e de um mosaico de movimentos populares, na 1ª Conferência Nacional de Comunicação. Se havia algum consenso entre os delegados das entidades do movimento pela democracia na comunicação, era a constatação de que este campo da sociedade precisa ser democrático e inclusivo. Portanto, não é possível regê-lo sob a lógica do oligopólio, a classe de mercado típica do capitalismo a partir do último quarto do hoje longínquo século XIX.
Além deste consenso, que atravessa os diversos matizes da esquerda, existem outros. Desde a mais branda e conciliadora corrente até aquela que ainda crê e tenta acumular forças para um processo de ruptura, nenhum coletivo que discuta e debata a democracia na comunicação social vê a mídia privada como agente legítimo para intermediar, balancear e antepor as mil versões do cotidiano das sociedades complexas. Em termos clássicos da política, os conglomerados de comunicação já não podem exercer de forma incontestada um de seus papéis no pacto liberal-conservador, que cria a moderna república ocidental.
Pela divisão de poderes das repúblicas ou monarquias constitucionais após a Revolução Gloriosa (Inglaterra-Escócia-Gales, processo que se inicia em 1640, tem seu ápice entre 1685-1689 e o sistema fundante nasce em 1694) e a Revolução Popular na França (1789-1799), haveria no mínimo três poderes, sendo que dois de alguma forma eleitos. A saber, o Poder Executivo (na maioria das vezes eleito de forma direta ou indireta), o Poder Legislativo (o Parlamento eleito em seu primórdio através de voto censitário) e o Poder Judiciário (onde os magistrados teriam algum critério meritocrático para o exercício da função).
Nesta constelação de balanços, checagens e ‘equilíbrios’, caberiam à imprensa livre o exercício do 4º Poder. Este, não eleito, seria exercitado pelo maior número de cidadãos alfabetizados e alimentaria uma esfera pública de debates e polêmicas.
Em tese esta seria a função da mídia em geral, e do jornalismo em particular, para o arranjo dos poderes de tipo liberal-burguês. Mesmo se em algum momento da história este tipo-ideal habermasiano de sociedade chegou a se materializar, isto já não se verifica mais. Com o advento da sociedade de massas, os exercícios de atributos das indústrias culturais tornam-se outros, sendo portadores e transmissores de cultura de massa (mesmo quando segmentada) na forma de estética e representação, transitando e fazendo circular bens simbólicos que reforçam os alicerces do sistema capitalista. Ao lado disso, contribuem para a diferenciação do produto, através da publicidade (explícita ou não), exercendo papeis macro e microeconômicos.
O modelo evolui e a inexorável marcha das fusões de conglomerados de capitais torna a censura corporativa, resultante do controle privado, uma regra explícita, embora não dita. Sendo o senso comum a condensação das ideias dominantes, as classes dominantes dispõem de um mecanismo de rápida difusão de suas visões de mundo, vendendo modelos de comportamento através da mídia, não aceitos diretamente, mas que resultam nos consensos possíveis, primordialmente em sintonia com os propósitos do sistema. A fusão entre circulação de mercadorias, significação de valores e fabricação de consensos dá a base dos afazeres dos grupos midiático-culturais no Ocidente.
No continente latino-americano, o mito da imprensa como bastião da liberdade resiste um pouco mais. Os embates entre os regimes ditatoriais militares e as atividades jornalísticas e artísticas reforçam o papel da censura de Estado através da exceção. Passadas as ditaduras, a mídia recobra sua importância para a garantia da governabilidade e passa a ser o bastião da luta de tipo ‘restauração conservadora’ pelo desmonte dos serviços públicos fornecidos pelo aparato do Estado Nacional Desenvolvimentista ou do que dele restara.
Com o advento da reação neoliberal na Inglaterra e nos EUA (com a vitória respectiva de Thatcher e Reagan) e a derrota do Bloco Soviético e do capitalismo de Estado (à exceção da China, que se alia aos EUA já nos anos 70), o inimigo visível dos conglomerados de comunicação de massa passa a ser os direitos históricos das maiorias latino-americanas, com atenção especial na possibilidade de destruição dos diretos adquiridos pela classe trabalhadora, após mais de 40 anos de confronto (da última década do século XIX aos primeiros trinta anos do XX).
O modus operandi do capitalismo periférico no continente atravessa o modus vivendi e a capacidade de percepção de maiorias analfabetas, semianalfabetas e, no caso brasileiro, com déficits históricos de cognição. Diante deste terreno fértil, apesar da resistência popular que sempre ocorre, o arsenal da mídia corporativa cria eufemismos nefastos, como ‘flexibilização’, ‘modernização das relações de trabalho’, ‘custo Brasil’, ‘agilidade nos licenciamentos ambientais’ e outras expressões. Convidam o povo para dançar na democracia liberal e depois expulsam simbolicamente do baile os elementos indesejáveis.
Esse modus vivendi sofre diretamente dos reflexos da racionalização ideológica do mundo do capital. Mészaros fala da tendência formal à “universalidade” imposta pela prática, corroborando diretamente no plano da consciência dos indivíduos em termos societários, como uma das principais características definidoras do modo de produção, sendo essas:
“A transformação abstrata/redutora das relações humanas diretas em conexões materiais e formais reificadas, mediadas e ao mesmo tempo ofuscadas pelas mediações de segunda ordem formalmente hierarquizadas e legalmente protegidas do sistema produtivo e distributivo capitalista. As rupturas práticas e as separações formais da produção generalizada de mercadorias, com sua inexorável tendência às ‘universalidade’ – equivalente em última análise, ao fato de ser um modo historicamente único de dominação, do qual nenhuma sociedade desse planeta pode escapar – podem ser identificadas.” (MÉSZÁROS, 2009)
Não por acaso, os conglomerados de mídia organizados em estruturas como a Sociedade Interamericana de Prensa (SIP) e o Grupo Diários América (GDA), dentre outras alianças, são hoje, no capitalismo reconfigurado, o adversário mais visível dos agentes sociais em luta.
Hoje, independente da vontade dos executivos de grupos de mídia ou transnacionais de telefonia, sua legitimidade como 4º poder está mais que abalada.
No longo prazo, vencer esta luta é afirmar outro modelo de democracia. Esta modificação estrutural na legitimidade no setor comunicacional no Brasil depende, entre outras questões paralelas, de uma nova estrutura distributiva do mercado de comunicação, de uma legislação atenta aos interesses públicos e de uma sociedade civil articulada e crítica do cenário atual da comunicação.
- Determinantes sociais e CONFECOM
Ante isso, não obstante a importância da Conferência Nacional de Comunicação como momento histórico, outras oportunidades anteriores foram perdidas, como a luta popular pelo Sistema Brasileiro de TV Digital, que se deu entre 2005 e 2006, vencida pelo governo e seu ministro Hélio Costa, homem de confiança do grupo empresarial líder do oligopólio. Não por acaso a perda foi para um projeto que atende à Globo e sua sócia, a NEC japonesa. Agora, a luta da comunidade científica e dos comunicadores de rádios comunitárias é em defesa do Sistema Brasileiro de Rádio Digital (SBRD).
Diante desses fatos, os processos devem ser vistos como são e não como aparentam ser. Na etapa que a luta popular se encontra, marcada pela confusão e com a presença marcante de um governo aliado de setores adversários históricos dos setores populares organizados, é importante marcar uma pauta e debates públicos. Mas, por outro lado, vive-se uma era onde muito se discute entre especialistas e termina-se por aceitar as condições estabelecidas.
O problema é que não há outra forma de efetivar conquistas ou mesmo garantir os direitos adquiridos do que praticar a organização social de base e acumular força em projetos de poder com o povo como protagonista.
Ou seja, deve-se compreender que a política é um jogo de arenas múltiplas, simultâneas e com tempos distintos; se os setores do movimento de comunicação não abandonarem suas pautas históricas em função de algum oportunismo tático (e limitado, por conseqüência) então a Conferência tem sua relevância.
Algumas propostas levadas à CONFECOM são oportunas diante do cenário apresentado nesse trabalho, como por exemplo: fortalecer a rede pública de comunicação; estabelecer um novo marco regulatório para o setor; fortalecer as rádios e TVs comunitárias e combater a repressão do Estado a essas mídias; ampliar e massificar a inclusão digital, com banda larga para todos; fixar novos critérios para a publicidade oficial; elaborar novas formas de concessão pública; exercer controle social; criar uma disciplina regular no sistema educacional público e privado que trabalhe com o ensino fundamental e médio a leitura crítica dos meios de comunicação, com uma educação voltada para as mídias.
Em paralelo à disputa entre a sociedade civil organizada e os agentes econômicos, é indispensável a acumulação de forças também no setor mais à esquerda. Para tanto, o movimento sindical e seus recursos deveriam ser aplicados a partir de agora na construção da rede pública não-estatal e no fortalecimento da mídia popular, ao mesmo tempo em que se interrompem os gastos em publicidade sindical na mídia privada. Enquanto esta ação não se der, se a fração de classe representada pelos dirigentes sindicais não passar a ver a comunicação social como elemento estratégico para a construção de uma alternativa contra-hegemônica, permanecerá o duplo discurso. Perante o governo de turno, os dirigentes de sindicatos de mandam pautas legítimas. Diante da decisão de executar os recursos obtidos com a contribuição sindical e o imposto taxado do trabalhador, terminam por atender interesses imediatos e de pouca ou nenhuma visão de longo prazo.
Nesse cenário também existe a possibilidade de, ao contrário da mídia de massa, realizar a experimentação de novos modelos de mídia alternativa, possibilitando a construção de formatos contra-hegemônicos de comunicação. Isto, de modo independente, barato e popular. Em época de segmentação de público, tal caráter pode conquistar parcelas da população que interessam às organizações de esquerda, tornando-se assim, muito mais interessantes para a publicidade da mobilização social:
“O marco tecnológico contemporâneo constitui um enorme potencial, que não pode ser desprezado pelos setores populares. Este embate midiático virtual não anula as distâncias, embora as reduza em larga escala, o que remete à necessidade do empreendimento de ações em direção à utilização e recriação da mídia, ao lado de proposições e confrontos nas diversas arenas sociais.” (BOLAÑO, 2003)
Um padrão técnico estético alternativo, além de dever ser trabalhado quanto ao formato, estéticas e distribuição de maneira diferenciada da hegemônica, também pode ser apresentado e utilizado pela mídia não somente por uma diferenciação estética, mas sim diferenciar-se na elaboração do conteúdo, onde podem ser trabalhados olhares mais plurais e democráticos sobre a sociedade em geral.
Tratando de mídia independente e popular, percebeu-se que os representantes da produção independente brasileira representaram-se com fragilidade da primeira Conferência. Segundo Berenice Mendes, integrante da Coordenação-Geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC),
“entidades históricas como o Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), a Associação Brasileira de Documentaristas (ABD), Associação Paulista de Cineastas (APACI), a Associação Brasileira de Cineastas (ABRACI), os sindicatos de técnicos e os de artistas, poderiam ter dado uma contribuição muito mais efetiva ao processo, tendo se credenciado nas delegações estaduais e municipais – o que não ocorreu, salvo raras exceções” (SALDO da conferência poderá abrandar o perverso sistema de comunicação. FNDC, 2010). Certamente, tratou-se de um fórum importante para levantar as bandeiras de setores do audiovisual que possuem precárias condições de trabalho, devido a barreiras à produção, difusão e exibição do audiovisual, significativas para qualquer tipo de movimentação diferenciada deste setor. Independentemente disso, segundo avaliadores:
“(...) as questões fundamentais como a da regionalização da programação de rádio e TV, do estímulo e difusão da produção independente na TV aberta, as cotas de produção e exibição na TV por assinatura, o necessário fortalecimento do Sistema Público de TV, dentre outras, foram debatidas e encaminhadas com eficácia, tendo potencial para recolocar no rumo certo a produção audiovisual brasileira.” (IDEM, 2010)
As reivindicações das entidades da sociedade civil foram pontuais quanto a diretrizes impreteríveis para o fortalecimento de uma rede pública no Brasil. Foi definido que é necessário um sistema público de maior amplitude, que tenha condições de concorrer com a hegemonia do setor privado. Avalia-se com nitidez que o fortalecimento da rede pública não se limita ao papel estruturante da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Outras medidas são urgentes para reforçar as emissoras educativas e comunitárias, compondo um sistema público de maior envergadura, que dispute a hegemonia com os capitais.
Em termos de controle social, deve-se, a partir das propostas aprovadas na CONFECOM, estabelecer conselhos de comunicação social em municípios e estados, além de reformular a representação no Conselho Nacional de Comunicação Social (CCS), hoje inoperante. O CCS tem potencialidade para configurar-se em uma ferramenta de suporte a debates envolvendo os meios de comunicação, abordando principalmente a pauta atual, com foco na democratização da comunicação. Mesmo sem poderes de deliberação quanto à criação e expressão do pensamento e da diversidade sócio-cultural, este instrumento poderia representar um ambiente fomentador do debate sobre aparatos legais que sirvam à regulamentação do cenário midiático e a seguridade quanto aos preceitos básicos da comunicação inseridas no Capítulo V da Constituição Federal.
Nesse item, a Lei Federal 9612/98 que regula, de forma incompleta, as emissoras comunitárias tem muito a aportar. A exigência de se constituir conselhos comunitários e a eleição de diretorias eleitas mediante assembleias, sendo que nestas associações qualquer cidadão pode entrar como sócio (em tese, pois ainda há muito controle de tipo privado), marca um caminho de participação popular através de setores minimamente organizados.
Nesse âmbito, a CONFECOM lançou propostas para as empresas públicas de comunicação no eixo-temático “Cidadania, direitos e deveres”, com tema sobre órgãos reguladores, como, por exemplo, a proposta de código 178:
“Implementação de Conselhos de Curadores nas empresas públicas de comunicação (de âmbito federal, estadual ou municipal), com ampla participação da sociedade civil organizada, buscando aperfeiçoar essas experiências, no sentido de dotar tais Conselhos de mecanismos de maior controle público e autonomia, não apenas com o foco no conteúdo da programação, mas também na gestão administrativa dessas empresas.” (1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE COMUNICAÇÃO, 2010)
A CONFECOM também poderia ter traçado os moldes de um novo marco regulatório, passando pela forma de financiamento, que se confunde com o modelo de negócio, ancorado na relação Empresa-Estado. A assimetria torna-se nítida quando os três níveis de governo investem a maior parte dos seus recursos de publicidade na mídia privada. Isto impede a instauração dos três sistemas, a sustentação das emissoras de tipo público não-estatal, público-estatal e institucionais (de governo e poderes, no caso), justo por brigarem pela mesma fatia do bolo. Como se sabe, este é um debate recusado pelos radiodifusores e silenciado pelos mesmos.
4. Financiamento e três sistemas
Entende-se este movimento a partir da análise estratégica em sentido estrito. O calcanhar de Aquiles da mídia brasileira é a reprodução do modo de financiamento baseado na publicidade. Como nos demais ramos da economia, a viabilidade do empreendimento vai além da expertise no setor de atuação, mas se baseia na relação com o Estado e os poderes de fato. Isto constitui as relações assimétricas, materializada quando os grandes grupos de mídia operando no Brasil têm nos anunciantes estatais uma fonte fundamental para fechar a folha de pagamento e cobrir os custos das empresas. Estas, afiliadas na Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) e no seu racha, a Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), evitam ao máximo pautar o tema do modelo publicitário oficial. A tensão nota-se na hora de pôr em pauta o debate, considerando que a Abert retirou-se da CONFECOM e o Governo Lula, através do ministro da pasta, Hélio Costa (ele próprio um radiodifusor), fez o possível para esvaziar a instância e não permitir que ela se tornasse referência para o setor.
No âmbito da publicidade, é imperativo ainda debater seus limites, em especial os seus apelos. Por exemplo, as crianças e jovens estão muito expostos a apelos publicitários de tipo abusivo. Isso não se revolve com a auto-regulação do capital, através de conselhos de propaganda. Nesse sentido, é fundamental modificar o padrão de concessão de outorgas (via Casa Civil e indicação da cota parlamentar), para retomar o combate à sobre-representação – definindo de maneira conclusiva a proibição de que parlamentares sejam donos ou sócios de emissoras de rádios e TVs – e modificar o mecanismo de renovação de outorgas. É um absurdo o país ter como rito a exigência de votação nominal de dois quintos para não-renovação, quando a maior parte das votações do Congresso se dá por acórdão de colégio de líderes ou no rito secreto (como para a cassação de um colega).
O que foi debatido na Conferência Nacional de Comunicação não necessariamente virará lei, mas pode servir de base para mudanças estruturais no curto e médio prazo, não obstante. Das várias abordagens possíveis para o tema, já projetando uma segunda CONFECOM, é essencial o debate dos três sistemas de comunicação.
A Constituição assinada em 1988 prevê no Capítulo V da Comunicação Social, artigos 220 a 224, definições que não se verificam na sociedade. O texto da Carta Magna compreende que no Brasil devam existir três sistemas complementares e não rivais. Tratam-se dos sistemas privado, público estatal e público não-estatal. O primeiro diz respeito aos operadores empresariais, que vêem a indústria da informação, comunicação e cultura como uma forma de obter dividendos econômicos, um negócio. O sistema estatal é alvo de disputa, entre fazer uma mídia dos poderes ou defender o modelo da BBC inglesa, quando o Conselho da Entidade é soberano e gestor de orçamento próprio. Já o terceiro sistema, o público não-estatal, tem sua base montada a partir da Lei 9612/98, quando se regulamenta o serviço de radiodifusão comunitária, e compreende as mídias associativas sem fins lucrativos e onde todos os cidadãos de um determinado território devem ter acesso.
Os pontos mais relevantes são aqueles que atingem a formação e definição regulamentar dos três sistemas de comunicação previstos na Constituição de 1988, privado, público-estatal e público não-estatal. Deve-se definir conceitos e formas de funcionamento. Por exemplo, definir o conceito de público-estatal e, por consequência, defender o funcionamento das TVs detidas pelos governos estaduais e federal como no modelo da BBC, onde o Conselho da entidade (da Fundação mantenedora, por exemplo), seja soberano em relação ao governo de turno. O mesmo deveria se dar no funcionamento do sistema público não-estatal, cujo embrião de funcionamento está sendo construído nas rádios comunitárias, ainda que marcadas pela forte presença de grupos religiosos, político-partidários ou com objetivos privados de lucro e projeção.
O problema é bastante complexo. Não obstante, a reflexão coletiva estabelecida no âmbito do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS), do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), sinaliza que há um déficit de formação e motivação. O fortalecimento da rede pública de comunicação passa por reconhecer o modelo hegemônico, a linguagem do poder que reproduz relações injustas, e buscar fazer o oposto. Passa pela definição de conceito de público-estatal (sob controle dos conselhos); de estatal, que conformaria a mídia dos poderes (canais institucionais como a TV Justiça ou a NBR, que serve ao Poder Executivo); e, diferente de ambas, do sistema público-não estatal. É preciso definir em termos de conceitos para saber do que está sendo falado e pelo que uma parte dos brasileiros e brasileiras está dedicando suas vidas para ajudar a construir.
Nesse sentido, fortalecer a rede pública requer financiamento, formação e controle. Financiamento viria de fundos soberanos destinados ao fomento desses sistemas e não obrigatoriamente pela publicidade de governo com recurso de Estado. As redes públicas não devem atender ao proselitismo de governantes. É forçoso arrancar recursos permanentes e, ao mesmo tempo, esvaziar significativamente o caixa das mídias privadas, com a destinação de verbas estatais para a mídia pública estatal e pública não-estatal.
Por fim, a rede pública deve buscar seus próprios caminhos, portanto não fortalecendo e nem reproduzindo o padrão tecno-estético hegemônico, cujo modelo mais conhecido é o da Rede Globo, agora seguido de perto pela Rede Record. Além de atestado de falta de criatividade, tal reprodução (que em grande parte das vezes é uma meta, embora não atingida) nas chamadas mídias alternativas prejudica a apresentação dos conteúdos em toda a sua potencialidade (inclusive dialógica, para o público) e provoca a aproximação de um modelo ideológico dominante. Em termos de rede pública, entra a vocação do jornalismo para os interesses coletivos e o propósito de fortalecer o poder decisório em sociedade, e não o intento de reforçar as estruturas de poder já existentes, como o faz a mídia comercial.
Além da regulação dos sistemas, é prioritário compreender o atual momento de transição tecnológica. A convergência digital implica transformar todos os conteúdos em códigos binários, passíveis de carregamento e envio de forma não física. Num cenário de avanço democrático, isto acarreta que todos os cidadãos, se minimamente alfabetizados na produção midiática, podem tornar-se possíveis produtores de conteúdo, havendo tal disposição.
Desse modo, é fundamental rever o conceito de comunicação e de telecomunicações, de modo a compreender o papel nefasto que as transnacionais têm na oferta de serviços de comunicação mediante concessão do Estado e, por isso mesmo, fazer o possível para atenuar sua influência na sociedade brasileira e evitar que estas corporações (como a OI de capital brasileiro; o Grupo Slim/Claro; e a Telefónica de Espanha/Vivo, sem falar em companhias menores, todas sob o risco da fusão ou aquisição) produzam e distribuam conteúdo por cabo, satélite, MMDS (Multichannel Multipoint Distribution Service ou Serviço de Distribuição Multiponto Multicanal) e radiofrequência (rádio e TV).
A materialização do documento final da CONFECOM em políticas públicas é incerta, sendo que qualquer passo mais expressivo, especialmente envolvendo as mídias tradicionais, caso venha a ser dado, não será antes de 2011, por ser 2010 um ano eleitoral. Mas deve-se destacar a deliberação geral de que a oferta da banda larga deve se dar em regime público, cumprindo metas de universalização do acesso, de qualidade e garantia de continuidade. Projetando-se a universalização da banda larga, é urgente a aplicação dos recursos contingenciados do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) e do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (FUNTTEL) na implantação de sistemas de infovias públicas de alta performance. O modelo preferencial seria através da tecnologia Wimax (Worldwide Interoperability for Microwave Access ou Interoperabilidade Mundial para Acesso de Micro-ondas), sem passar pela concessão para as transnacionais de telecomunicações.
5. Considerações conclusivas
Um novo marco regulatório deve envolver o controle das verbas de publicidade do Estado brasileiro em seus três níveis de governo e também a garantia de decisões ágeis para o direito de resposta dos setores afetados pelas coberturas e produções de sentido das mídias corporativas (grupos econômicos que também operam como ‘partido’ político).
Considerando o papel do campo acadêmico na luta pela democratização da comunicação, está-se diante de um paradoxo. De um lado, a enormidade do campo de estudos da comunicação social no Brasil mostra que o país tem uma academia pujante nesta área e com uma capacidade razoável de influência no movimento. De outro lado, as universidades pecam em três aspectos.
Primeiro, tendem geralmente a reproduzir a miragem do mercado de trabalho, muito escasso e sem vagas para a maior parte dos egressos das habilitações de comunicação social. Essa falta de postos de trabalho e a censura em que impera nos meios privados deveriam orientar os cursos para formar para os três sistemas. Segundo, porque a formação é cada vez mais voltada para supostas técnicas, quando, na verdade, os estudantes deveriam, antes de tudo, ter um mergulho de conteúdo nas ciências humanas em geral, de modo que possam compreender a sociedade a qual irão intermediar, narrar e interpretar. Terceiro, porque os meios de comunicação das universidades via de regra buscam reproduzir formatos, hierarquias e funcionalidades de uma empresa de tipo capitalista. Isto gera um efeito, que, junto da autocensura, fortalece a concepção da comunicação social essencialmente como um negócio.
Se fosse aproximada a formulação da academia (quando crítica) com a produção midiática dos meios de comunicação das universidades, haveria o laboratório e a semente dos modelos para as redes públicas tanto perseguidas.
Um dos vieses críticos aos resultados da primeira Conferência Nacional de Comunicação Social é a demasia quantidade de proposta aprovadas, cerca de 600, somado os 15 Grupos de Trabalho. As propostas em gestão são legítimas e apresentam diretrizes imprescindíveis para qualquer modificação estrutural no setor da comunicação do Brasil. No entanto, esta talvez não seja a maneira mais adequada de realizar um trajeto de mudanças no marco legal da comunicação, visto que as propostas apresentadas só podem surtir algum efeito na regulamentação se forem praticamente, em sua maioria, votadas e aprovadas
no Congresso Nacional.
A votação e aprovação das proposições da CONFECOM são difíceis de serem atingidas, diante de três fatores. Um é a sobre-representação de radiodifusores no parlamento. Outro é a presença de operadores de confiança dos agentes econômicos em postos-chave dos governos na pasta de comunicação e correlatas, como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A terceira, é a própria visão intrumentalizada da comunicação social, vista como plataforma de sedimentação da imagem do gestor-candidato acumulando capital político a cada quatro anos. Diante disso, uma análise de rigor tem de levar em conta a tradição dos governos brasileiros em não criar um marco legal generalista e que acompanhe o avanço das plataformas e veículos da comunicação social.
É nítida a vontade e idealização, na visão dos autores deste trabalho, de que a próxima CONFECOM (que se espera ocorra já em 2011, já que num ano de eleição presidencial tal evento é inviável) tenha um olhar mais macro-estrutural das propostas, com uma agregação maior dos eixos temáticos, para que não ocorra uma ampla ramificação de assuntos, fato que acaba por enfraquecer o movimento da sociedade civil organizada, tanto na correlação de forças com os inimigos estratégicos, como na luta tática pela mudança da legislação brasileira de comunicação.
Referências bibliográficas
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Originalmente publicado na Revista Cebela.