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O vazio cultural dos brasileiros


Não se constrói um país, nem sequer um projeto de país, sem bagagem cultural, identidades coletivas e um estoque de signos, narrativas e linguagens compartilhadas entre a massa crítica e os eleitos.

4ª 26 de março de 2008; Vila Setembrina dos Farrapos; Continente de São Sepé

A edição de domingo do jornal O Globo, trouxe nas páginas 16 e 17 de sua Revista os dados de uma pesquisa a respeito dos hábitos de consumo cultural do brasileiro. A matéria é do repórter Fellipe Awi e a pesquisa foi encomendada pelo Sistema Fecomércio-RJ. Os números são estarrecedores e por si só já merecem manchetes sem fim. Neste artigo, apresento um resumo dos dados e na seqüência uma análise crítica dos motivos que levaram a 11ª economia do mundo a ter os mais aterradores índices de deficiência cognitiva do Continente que teríamos de liderar.

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O primeiro enunciado afirma um hábito transversal a todas as classes. No ano de 2007, 55% dos brasileiros passaram longe de qualquer programação cultural. Destes 69% disseram que não leram nenhum livro ao longo de 365 dias! De cada dois cidadãos do Brasil, um não leu um livro, nem foi ao cinema, ao teatro, a uma exposição de arte ou a um espetáculo de dança ou música! A falta de hábito foi à primeira motivação para as classes D e E (58%) e da A e B (57%). Em segundo lugar como motivação veio “não gosto”, em terceiro “não tenho acesso” e apenas em quarto “não posso pagar”.

Dentre as formas narrativas a sétima arte foi a que mais sofreu a ausência. Além de sermos invadidos pelos blockbusters (versão pós-moderna dos enlatados), 87% dos brasileiros sequer foi ao cinema no ano passado! Para piorar, o custo das entradas e dos produtos culturais é percebido como caro e abusivo. Segundo os entrevistados, um ingresso de cinema deveria custar R$ 8,00; de teatro R$ 14,00 e o preço médio de um livro novo sairia por R$ 19,00.

Somos um dos países com maior número absoluto de internautas, mas sequer processamos o consumo massivo dos bens estéticos da modernidade. Para complicar ainda mais a situação, boa parte dos municípios do país não tem equipamentos culturais adequados. Apenas 8,7% têm uma sala de cinema; 21,2% têm teatros ou salas de espetáculos e livrarias existem em somente 30% deles. Para uma conta rápida e aproximada, de cada 100 municípios, cinema existe em 8, teatros em 20 e livrarias em 30.

Fora toda a concentração midiática, do monopólio dos fluxos de informação, das chacinas de identidade cometidas quando se acabam com sotaques e estéticas, o Brasil ainda tem carência de equipamentos. Muitos podem se perguntar, porque um analista político dedica um artigo a respeito da carência cultural nacional? Simplesmente porque um não vive sem o outro. Quanto menos leitura tiver o eleitor, pior terá de ser o discurso para lhe fazer chegar uma proposta; quanto mais pobre for o imaginário e referência de cada um, mais medíocres terão de serem as figuras de linguagem para falar ao povo. Daí o porquê das gírias e exemplos futeboleiros seguidas vezes aplicados por políticos profissionais para convencerem as maiorias a fazer algo que nos prejudica diretamente.

Um país é construído por suas manifestações e realizações. No primeiro quesito, a informação, a comunicação e a cultura andam juntas. Este grande campo do saber e da atividade humana formam as representações ideológicas, os vínculos com nossa própria história; a trajetória coletiva é individualizada através da linguagem. Não existiria religião monoteísta sem livro sagrado, assim como não há civilização sem escrita. Portanto, temos duas constatações. Não há democracia que resista a ignorância estrutural e a falta de domínio da norma culta da língua. E, o Brasil precisa urgentemente de uma política pública (ou seja, universal e não seletiva) para que ao menos os municípios tenham os equipamentos culturais necessários para seu desenvolvimento. Caso contrário, teremos de nos contentar com o lixo cultural vendido nos DVDs piratas e com a isenção fiscal através de leis de incentivos e projetinhos.

O aspecto interessante da pesquisa da Fecomércio-RJ é a queda de um mito. Expõe que o mau exemplo vem de cima, demonstrando a falta de hábitos e gosto para consumo de bens culturais das classes A e B. Nenhuma elite nacional pode ter planos ousados se não enxerga a si mesmo. A capilaridade da memória e da identidade é um projeto de nação em si. É inimaginável a coesão dos costumes dos Estados Unidos sem a presença em todo o país do Instituto Smithsoniano, da educação pública e do cinema como forma de exportação de usos e costumes.

Não precisamos ir tão longe para compararmos a nós mesmos. Em países vizinhos e mais pobres, como o Uruguai e na Argentina, a proporção de livrarias e de leitores é muito maior do que aqui. Sem a produção, circulação, difusão e consumo de nossos próprios bens culturais nem seremos um projeto de nação inacabada porque sequer teremos este projeto. Identidade, cultura e capacidade cognitiva é coisa séria e ultrapassa o interesse direto na relação político-eleitor; governo-cidadania; consumo-consumidor; Estado-nação e elite-povo.

Por falar em mau exemplo, no orçamento dos ministérios e gastos de governo está refletida a ignorância que vem de cima. Enquanto o Ministério da Cultura tem para 2008 o orçamento previsto de R$ 1,1 bilhão estão previstos R$ 248 bilhões para o pagamento de juros e amortizações da dívida federal. São números que falam por si.

Este artigo foi originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat






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