Ao contrário dos operadores políticos profissionais, os investidores das campanhas e os grupos econômicos que são seus sustentáculos, se portam discretamente. A elite dirigente nacional, concorrente aos postos do Estado, tem no comprometimento público sua moeda de troca com o eleitorado. A discrição implica assegurar as garantias necessárias para acordos velados serem executados a contento. Depois da experiência de Collor de Mello, os políticos brasileiros sabem o alto preço a ser pago caso rompam estes acordos.
Outro tipo de acordo costuma ocorrer, este de forma pública, mas quase nunca chega a ser executado de forma rápida. Na outra ponta do tecido social, em tese, estariam localizadas as entidades de classe que conformam o conjunto dos movimentos populares. No Brasil pratica-se pouco a independência de classe, conceito operacional que implica o não comprometimento das estruturas orgânicas dos movimentos com uma ou outra candidatura. O conceito contraditório da independência de classe chama-se atrelamento das bases sociais organizadas. Já a história recente de nosso país cunhou outro termo para este fenômeno político-social. É o chamado reboquismo, de marcante passagem pela crise da república entre a Campanha da Legalidade de 1961 e o golpe militar de 1º de abril 1964.
Em outros países da América Latina, por vezes, movimentos diversos servem de força social que impulsiona algum projeto político limitado pelo jogo eleitoral. Buscando a tipificação desse fenômeno, este costuma ter quatro variações. Na direita do reboquismo atuam os setores diretamente vinculados ao aparelho político, sustentáculo da candidatura e do projeto de poder. Ao centro costumam se posicionar os setores de apoio crítico ao candidato e ao processo como um todo. Mais à esquerda, agrupações sociais que não se posicionam a favor nem tampouco fazem campanha contra uma determinada candidatura. Na extrema-esquerda operam setores sociais com plena independência de classe e que não participam de nenhuma etapa da corrida eleitoral. O detalhe a ser lembrado é o fato de que nos exemplos acima, se tratariam de candidaturas com interesse estratégico para a classe organizada.
O exemplo mais gritante de contradição dentro do mesmo tecido social, hoje começa a ocorrer na Bolívia governada por Evo Morales. Tanto o partido do governo como o próprio chefe de Estado, assim como seu primeiro escalão, tem sua origem em bases sociais organizadas. Ainda assim na primeira situação em que se viu emparedado, por um setor dos trabalhadores, Evo não titubeou.
Convocou uma outra parcela de movimento popular, diretamente vinculado às conquistas proporcionadas pela vitória eleitoral, atirando povo contra povo sem nenhum ressentimento. Para a satisfação da oligarquia cruceña, do Departamento de Estado e das transnacionais da mineração, a ferida aberta custará a cicatrizar. Mesmo com a nacionalização dos hidrocarbonetos, a unidade popular está ameaçada pelos choques de lealdades entre governo e independência de classe.
Dúvidas conceituais permanecem a partir do exemplo boliviano. Qual interesse estratégico os movimentos estão defendendo? É possível ter uma definição estratégica sem autonomia da decisão política? Para a primeira questão, a tendência é que o instinto de preservação do mandato termine por suplantar os interesses de autodeterminação indígena e popular, bandeiras ancestrais dos povos da Bolívia. Na segunda questão, a resposta definitivamente é não. Interesse estratégico implica necessariamente em instâncias de decisão política desatreladas da democracia delegativa representada nas candidaturas.
Admitindo que o governo Morales, em termos de interesse nacional e popular, está há galáxias de distância do mandato de Lula, acreditamos que exista alguma correlação. Não nos referimos às realizações de governos, mas sim ao reboquismo dos movimentos populares de ambos os países.
Voltando ao caso brasileiro, reconhecemos a ausência de programas estratégicos que fundamentem, de forma lógica e racional, o apoio dos setores de classe organizados a uma ou outra candidatura. Reiterando a afirmação, os setores mais lúcidos do movimento popular do Brasil admitem haverem mínimas margens de manobras do governo para mudar o constrangimento estrutural do Estado. Ou seja, em bom português, pouco ou nada está em jogo. Assim sendo, quais motivos levam ao reboquismo de movimentos como os afiliados da Via Campesina e seus aliados urbanos, como o MTD e o MNLM?
Admitindo que entre as duas chapas a diferença existente é apenas de matiz, é preciso buscar variáveis explicativas para o reboquismo. Algumas são visíveis, dentre outras, a própria concepção de atrelamento de classe; a guerra de posições no interior da burocracia; a idéia de sociedade civil substituindo ao movimento popular; a noção de complementaridade e não de antagonismo; o posicionamento excessivamente defensivo dos setores populares ainda organizados; e, sem dúvida, o tema da identificação.
A julgar por seu programa, o voto e o apoio a Luiz Inácio só se justifica em função de sua origem de classe e o tipo de identidade política gerada a partir desta. O mapa eleitoral é definidor neste sentido. Lula é maioria nas classes C, D e E. Ou seja, a partir de critérios discutíveis de IDH, representaria os que estão abaixo da linha de pobreza, os pobres e a chamada baixa classe média. A oscilação da mobilidade entre estes setores de classe gera uma profunda insegurança e idéia de futuro imediato. O fato é que estes brasileiros identificam-se com alguém de trajetória parecida com as suas.
Por padrões sócio-econômicos, o dígito 13 na urna eletrônica representaria uma relação de interesse direto com políticas mínimas de distribuição de renda. Isto, apesar da corrupção, tão endêmica quanto nos oito anos anteriores, além de uma condução ortodoxamente neoliberal, na continuidade do mandato dos tucanos Malan-Meirelles. Esta é uma variável explicativa perfeitamente aceitável. De forma direta e objetiva, estes setores, desorganizados, pulverizados, identificam no atual governo uma singular melhora. Para quem está organizado, ao menos no dito campo de esquerda dos movimentos populares, não há nenhuma relação lógica de apoio a um ou outro candidato. Ou seja, este voto é de concepção reboquista, de vínculo e atrelamento de uma proposta de governo, com o aparelho de Estado e a condução de lutas cada vez menos protagonizadas por quem deveria estar à frente delas.
Identidade e lealdade com a trajetória política também está influindo na reta final da campanha. A Rede Globo, por mais beneficiada que tenha sido por polpudos empréstimos do BNDES a fundo perdido, começa a roer a corda. A Banca vacila apesar de seus lucros recordes nos últimos quatro anos. As transnacionais veladamente torcem por Geraldo, apoiando no que for possível, mas com o cuidado de não chegar a se comprometer. O próprio agronegócio, parcialmente satisfeito com a gestão de seu ministro Roberto Rodrigues, não brande a bandeira da aliança do PSD com a UDN pós-moderna, mas ajuda no que pode. Capitaneando o vôo tucano, dando a cara, está o empresariado de São Paulo à frente de 40% do PIB nacional, forçando uma campanha ainda mais “paulistocêntrica”
De forma pública ou velada, a trajetória política vai definindo o voto dos setores organizados da sociedade. Voto este, divorciado do interesse estratégico e com choque de lealdade entre a classe e a governabilidade.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat