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ISSN 0033-1983
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Sobre-representação e eufemismos na MP da grilagem
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A senadora pelo DEM do Tocantins e presidente da CNA, Kátia Abreu, simboliza a defesa dos interesses de um setor de classe dominante, passando por cima de qualquer planejamento de longo prazo para o bem geral da nação.
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8 de junho de 2009, do Rio Grande outrora altaneiro, Bruno Lima Rocha
A noite de quarta-feira, dia 3 de junho, o Senado da república deu uma aula de análise política. Não foi uma lição de atitude republicana, tampouco defesa da cidadania e nem do interesse nacional. O que se viu foi a materialização de dois conceitos: o de sobre-representação e o do eufemismo como arma do discurso. O primeiro conceito se encontra na “sinceridade” da senadora Kátia Abreu (DEM-TO) que acumula o mandato pelo novo estado e também é presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). O segundo, o eufemismo, se encontra nas palavras da nobre e ilibada senadora, ao afirmar que uma Medida Provisória de sua autoria, a MP 458, vai “dar segurança jurídica” para a Amazônia Legal. enviar imprimir Para quem tem como lida e labuta a análise do grande jogo do poder no Brasil, ter um conceito materializado é uma chance de demonstrar de modo didático as teias de relações reais e não formais da política brasileira. Ou “conceito com carne” descortina para um público ampliado as tensões do exercício do mando sem as barreiras de uma linguagem rebuscada. Neste quesito, sou obrigado a ser justo. Três bancadas atuam de modo “sincero” com bastante freqüência, e não por acaso, exercem a sobre-representação na defesa de seus interesses diretos. São elas, a da bola (com a cartolagem à frente), a dos concessionários de radiodifusão (sendo que um em cada três congressistas são donos ou sócios de rádio e/ou TV) e a ruralista.
Este termo, “ruralismo”, por si só já é um eufemismo, pois remonta a sigla da extrema direita agrária dos anos ’80. Para quem não se recorda, a luta pelo exercício do direito constitucional do acesso à terra como fator de produção com destinação social, confrontava com a União Democrática Ruralista (UDR). Esta entidade “democrática”, que caíra em perfil baixo nos últimos anos, dá a marca da bancada de mesmo nome. Pois foi uma das líderes da bancada da agricultura em larga escala, aplicando o conceito que transforma o alimento em commodity, que escreveu o texto da nova medida legal.
Na sua origem, esta MP serviria para assentar os pequenos posseiros nas terras utilizadas para subsistência e agricultura para comercializar localmente. Seguindo o modus operandi da política brasileira, o novo texto altera a intenção inicial, aumentando o tamanho da extensão de terras a ser regularizada e a forma de sua titularidade. Na redação da presidente da CNA, as terras griladas com extensão de 400 a 1500 hectares podem ser vendidas após três anos, e também podem ser propriedade de empresas e prepostos dos proprietários. Se não for vetada pelo presidente Luiz Inácio, a nova MP vai liberar tanto a grilagem de terras da União como o uso de laranjas como escudeiros legais dos latifundiários.
A lista de absurdos não pára por aí. Se a regra autoriza o grileiro a vender sua terra após a legalização da mesma no prazo de três anos, o posseiro e o pequeno proprietário que for beneficiado com o título de extensões de 100 a 400 hectares, só poderá vendê-la após 10 anos. É a mesma injustiça distributiva dos impostos aplicados no Brasil. Desonera-se o capital, garante-se a livre circulação de títulos, papéis e carteiras e a carga impositiva despenca em cascata sobre o salário e o consumo. Na chamada “economia real” ocorre algo semelhante. De cada dez empregos diretos formais, sete são gerados pelos micro e pequenos empreendimentos. Ao mesmo tempo, estes são muito onerados pelo Estado que beneficia a fundo perdido as grandes corporações. Trata-se de mais eufemismo com o destino privado dos recursos coletivos. No setor primário já regularizado, quem planta para o consumo interno e direto tem piores condições de produzir do que a escala absurda do chamado agro-negócio. Com a MP 458, o senado da república manteve o padrão de contra sensos brasileiros.
Não há desenvolvimento sem preservação
Como se sabe, a medida é polêmica e provocou um racha na base do governo e na oposição. De sua parte, o presidente já assinala com uma manobra diversionista. Diz que a conta a ser paga pela preservação também é dos países ricos. Embora isso seja correto, se aplica em escala mundial e não na vida cotidiana da Amazônia Legal e da biodiversidade brasileira. Cobrar o cumprimento do Protocolo de Kyoto e agir de forma incisiva contra a pesca da baleia pelos pesqueiros japoneses é legítimo. Já mandar a conta de uma política interna que atravessa as possibilidades de manutenção da soberania nacional na Amazônia, não é. Não há controle sem sustentação, e o Estado brasileiro tem de assegurar a cobertura vegetal e a biodiversidade em mais da metade de seu território.
Ao contrário do senso comum e das idéias difundidas pela grande mídia, não há conflito entre preservação e desenvolvimento. Preservar não é atraso e nem custo, mas sim garantia de retorno de longo prazo. É óbvio que dentro do modelo de devastar para a agro-exportação, isto pareça uma barreira para o desenvolvimento do negócio. Na verdade, o contra senso é apostar em um modelo que não se sustenta e nem assegura os maiores valores futuros. A maior riqueza da humanidade no século que adentra é a diversidade genética e o patrimônio natural. Assim, não há nenhuma possibilidade de desenvolver a Amazônia sem a floresta em pé e o curso de seus rios. E o pior, com a destruição do meio, os povos amazônicos tendem a migrar, inchando as capitais da região e aumentando o desespero social.
O mesmo se dá no Rio Grande do Sul. Não teremos desenvolvimento algum com o extermínio da pampa, a cobertura por eucaliptos vindos da Austrália, a poluição do Rio Uruguai e o assoreamento de rios antes navegáveis, como o Santa Maria e o Ibicuí. A questão-chave aqui é afirmar a preservação do meio ambiente, fixando o homem na terra e gerando novas cadeias de valor a partir das soberanias alimentar e ambiental. Mas, para isso, o país terá de confrontar suas escolhas de desenvolvimento e produção no setor primário. Do contrário, tudo não passará de um paliativo ornado com uma perigosa ilusão de que “se está fazendo alguma coisa”. Fazer algo é assegurar o futuro coletivo e não o imediatismo dos grupos de pressão sobre-representados no Congresso.
Com a MP 458 os senadores forçam o país a caminhar através da mesma trilha que levou a aprovação das sementes transgênicas através do fato consumado. Oficializando a grilagem e permitindo o desmatamento, ficamos a mercê da insanidade do agente econômico devastador e inescrupuloso. O futuro coletivo e a soberania do país exigem o veto desta Medida.
Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas da Unisinos.
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