Não por coincidência, trata-se do mesmo arco de alianças do 2º turno de 2002 quando Rigotto foi eleito. Proponho uma discussão conceitual para entender o fenômeno do co-governo e o pacto de acumulação do capital associado representado por este.
Iniciemos por um debate tomado das “impressões populares” para o nível político. Temos por costume afirmar algumas convicções quanto à política brasileira. Uma é de que no Brasil não existe fidelidade partidária. Outra, diz respeito a um sistema político por demais confuso. Seguindo neste raciocínio, se imagina que a composição de forças tenha quase sempre uma composição fisiológica e de interesses imediatos por fatias de poder e orçamento. Algumas exceções ao cenário narrado ocorrem nos cenários estaduais brasileiros, dentre eles, o do subsistema político do Rio Grande.
Ao contrário das impressões generalizadas, as legendas presentes no RS, tanto as eleitorais como as políticas em sentido pleno, tem um grau considerável de consolidação. Isto não é necessariamente um elogio, embora tenha uma correlação com a qualidade que se faz política. Assegurando um nível de coerência entre discurso e prática, a margem de negociação diminui, embora possa elevar-se a capacidade discursiva. É justo o que ocorre hoje ao sul do Mampituba.
O padrão dos discursos se eleva, mas as soluções não se propõem com a diversidade necessária. Isto porque, para garantir a governabilidade proposta pela coligação Rio Grande Afirmativo, a professora de economia da UFRGS teria de cortar gastos do alto funcionalismo e renegociar a dívida do estado. Mantendo o princípio da isonomia entre poderes e categorias de servidores públicos, o orçamento se vê apertado entre as metas dos projetos Rumos 2015 e da Agenda Estratégica 2020. Com versatilidade discursiva ou não, as dúvidas são simples e diretas.
- A governadora eleita vai cortar onde?
- Arrocharão ainda mais a já combalida base salarial dos servidores?
Percebam a sutileza do enunciado. Não digo com isso que concorde com estes procedimentos. Muito pelo contrário. Mas, quando afirmo ser a organicidade um valor agregado na política partidária, reconheço o vínculo conseqüente. Ou seja, os laços umbilicais dos representantes da classe política majoritária do estado, com os capitais regionais e as transnacionais associadas. Considerando que não será declarada moratória da dívida do Rio Grande para com o governo central, restam poucas opções.
A política é um exercício de síntese e negociação do poder delegado na sociedade. Não é fácil mudar formas consagradas, sendo que alguma delas, ainda mais difíceis. No caso da política gaúcha posterior a 1985, uma destas exigências é o chamado co-governo ou governo de coalizão. Estando de acordo em termos genéricos com as bases estruturais da sociedade local, negociar secretarias e cargos torna-se algo mais palatável.
Outra prática necessária para assegurar a “governabilidade” é a maioria no Legislativo. A formação da maioria governista será, no mínimo, avassaladora. O bloco do Piratini terá 5 deputados estaduais do PSDB, 3 do PFL, 4 do PPS, 9 do PP, 9 do PMDB e 5 do PTB. Ao que tudo indica deverá ser reforçado por mais 7 do PDT, legenda com a qual a chapa eleita está em aberta conversação.
A bancada de oposição contará com 10 deputados do PT, 2 do PSB e 1 do PCdoB. O detalhe de novidade é o fato de que a Frente Popular tornara-se vidraça também. Não apenas pela rejeição ao governo Olívio Dutra, mas em função de sua presença majoritária no governo central reeleito. Compõem o gabinete e vão coligando para formar maioria no Congresso com correligionários de seus adversários históricos no RS.
A aproximação através de Brasília rendera elogios e acercamentos no âmbito regional também. O senador radialista Sérgio Zambiasi foi um leal apoiador do governo Lula, assim como não abandonara Rigotto à sua própria sorte na eleição majoritária. Já o governador ainda em exercício, se aliara com Luiz Inácio, manteve sua crítica em tom cometido, declarou neutralidade nas eleições nacionais e agora flerta abertamente com o Planalto e o PMDB que derrubaram sua candidatura própria.
Já no cenário do Rio Grande, a aproximação foi manifestada com a votação quase unânime, com o apoio da Frente Popular, do chamado Pacto pelo Rio Grande. Entregue o combate ao acórdão impositivo para os setores corporativos mais fortes, o funcionalismo fica atado pelo fato de sua central majoritária, a CUT, também ser governo em Brasília. O dialogo frutífero entre os campos da política gaúcha sempre foi defendido e praticado pelo grupo de Tarso Genro e Paulo Paim. Estes agora se vêem ainda mais fortalecidos, tanto pela reeleição de Lula como pela ampla composição com o PMDB de Renan e Sarney.
É preciso compreender que muitas vezes, as impressões de inconsistência nos sistemas políticos acompanham uma idéia de indignação. A maioria dos eleitores, pouco participam da vida política e se sentem descontentes com o comportamento da classe de políticos profissionais. Alguns padrões da política gaúcha não costumam mudar de forma tão rápida. Com isto, quero dizer que a aproximação política da esquerda parlamentar com as direitas tradicionais gaúchas, vão ao encontro de um acordo com a base produtiva do estado.
Considerando que em torno de 30% do PIB do Rio Grande está ancorado no setor primário, e este por sinal, baseado na economia exportadora, a margem de autonomia fica muito estreita. É preciso compreender a aliança entre os produtores de soja com as empresas gigantes do setor, como os conglomerados Cargill, Bunge, Monsanto e ADM. O mesmo se dá com sua majestade o eucalipto e as megaempresas de capitais cruzados que aplicam projetos de “reflorestamento”, são elas, a Stora Enso, Votorantim e Aracruz Celulose.
Os acordos político-financeiros são simples. Cabe ao financeiramente combalido estado gaúcho financiar a infra-estrutura necessária para estes projetos, em especial na metade sul. Outra tarefa do Piratini é gerar fundos de investimento para servirem de lastro e garantia aos capitais que queiram investir em Parcerias Público-Privadas (PPPs). Tudo isto implica um alto índice de investimento. Na ausência de recursos próprios, restará aumentar o endividamento público ou ceder a pressões dos mais diversos tipos.
Ainda falando na falta de caixa, dificilmente será mexido no salário dos mandatários dos poderes. Tampouco renegociada ou declarada a moratória de uma divida pública que chega a corroer mais de 18% do orçamento estadual. Dadas estas premissas condicionantes, somadas ao controle midiático fabricando consensos na opinião pública local, não fica difícil concluir quem sofrerá o efeito maior do choque de gestão.
Tão prometido ao longo da campanha eleitoral, este será um verdadeiro choque anafilático nos parcos rendimentos de servidores públicos estaduais.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat