Por um lado a PF está trabalhando bem, dando uma idéia de que as instituições políticas e estatais brasileiras estão sendo saneadas. De outro ponto de vista, o volume de investigação é tamanho, que para cortar na própria carne, teria de ser feita uma sangria profunda. Somente neste governo (Luiz Inácio I e II), estouraram os escândalos dos sanguessugas, mensaleiros, vampiros, da CPI do Banestado, e concomitantemente às profanas evocações de Sidarta Gautama (que me perdoem os budistas), a CPI do Apagão Aéreo.
No governo de FHC (I e II) também, tivemos situações exemplares como o Proer, a CPI do Sistema Financeiro, o Grampo do BNDES, o afundamento da plataforma P-36 e a “manobra política” da reeleição. Somente nesta última “jogada”, já haveria munição o bastante para derrubar metade da elite política e seus investidores associados no país. Parafraseando o ex-deputado Roberto Jefferson:
“Se eu falasse tudo, derrubava a república!”
Na verdade não derrubava nada, até porque sistemas não caem de podre, são derrubados ou reformados. O problema na democracia brasileira, é que o conjunto das leis e controles favorece o grande infrator. Imaginem o que passa na cabeça de uma mãe e esposa de um preso comum, que veio de visita dominical a seu parente preso, e assiste ao Fantástico de domingo passado? E a sensação de injustiça e impunidade por quem padece na madrugada seguinte na fila do INSS ou do SUS?
Sou adepto de uma teoria de análise política onde não se aplica a metáfora da infra-estrutura econômica determinante e a superestrutura política e ideológica. Ao contrário, defendo e analiso as conjunturas a partir daquilo chamado de interdependência estrutural das esferas econômica, política (jurídica e militar) e ideológica/cultural. Em se tratando desse paradigma, então, a coisa está feia.
Algumas medidas de saneamento institucional poderiam ser feitas e de forma rápida, imediata. Uma delas passa pelo financiamento público de campanhas políticas eleitorais. Os consórcios que patrocinam candidaturas buscam justamente nas peças extra-orçamentárias seus dividendos. Afinal, o político profissional é uma “commodity de risco”, cujo produto é a candidatura, o resultado se dá em dois tempos (na eleição e na aprovação de emendas) e cuja moeda de troca é o voto. Assim, não há democracia que resista.
Outra medida necessária é a descentralização de recursos impositivos. Nossa “federação” de fachada concentra 61% dos impostos no governo Central. Ousando um pouco mais na análise, podemos afirmar que existem três domínios de enclaves no país. O primeiro, correndo na frente e concentrando 40% do PIB é São Paulo. Como centro nervoso político, Brasília. Ainda como uma abatida matriz cultural (leia-se, reprodução midiática), o centro é o Rio de Janeiro. Dividíssemos o bolo tributário, levando adiante projetos de desenvolvimento sustentável regionalizados. Tomando por unidade básica as microrregiões dos estados, e secava a fonte das emendas extra-orçamentárias.
Uma terceira medida imediata é o fim do Foro especial para autoridades. Isto se acusadas de crimes comuns. Nenhuma idéia de igualdade perante a lei resiste a lógica brasileira de injustiça. Sim, porque para os que pouco ou nada possuem todo o rigor da lei. Para os ilustrados, os benefícios do direito. Antes fosse proselitismo o que recém afirmei. Não, é puro e simples relato descritivo.
Voltando à figura de linguagem empregada, na obra do gênio e torcedor do Jabaquara, Plínio Marcos relata, de forma direta e crua, o mundo de prostitutas, travestis e cafetões. A navalha na carne então cortava para baixo da pirâmide social. Como a literatura e o jornalismo brasileiro costumam fazer, o cotidiano dos marginais é narrado de forma grotesca. Imagino um programa policial, desses em que o locutor engrossa a voz e pousa de valente, sendo feito com imagens de operações da Polícia Federal. Imaginem a repercussão e o escândalo que seria.
Mais escandaloso ainda é não termos sequer ferramentas analíticas onde a norma se transforma na exceção e vice-versa. Nesta semana, o domingo foi cortado pela Operação Navalha. No verão, pelo buraco da Linha 4 do Metrô de São Paulo, obra do Consórcio Via Amarela, congregando as cinco maiores empreiteiras do país. Alguém sabe o que se sucedeu? E as mais de 1.300 pessoas físicas e jurídicas da CPI do Sistema Financeiro, aquela que o Cacciola pagou o pato sozinho, alguém lembra?
Não lembramos porque como o resultado é nulo, não há interesse em fazer lembrar. Para consertar isso será preciso cortar na própria carne, de modo amplo, geral e irrestrito. Uma navalhada não bastará.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat