A posse de Luiz Inácio em 1º de janeiro de 2003 afirma um tipo brasileiro de “sonho americano”, segundo o vice-presidente e industrial do ramo têxtil, José de Alencar. Lula surge na vida pública a partir de um posto de interventor, ruma sua trajetória para a esquerda e depois a nega. Como disse o atual ministro da Justiça Tarso Genro, nega peremptoriamente a identidade com a qual flertou sem nunca chegar a haver sido de corpo e alma.
Poderíamos discutir este fenômeno como o preço da acomodação dos corpos, segundo uma mirada foucaultiana, onde a rebelião ou sujeição dos jetos, torna os sujeitos socialmente moldáveis. Assim, em bom português, vemos ao exemplo do professor de sociologia da USP Fernando Henrique Cardoso bradar “esqueçam o que eu escrevi”. Infelizmente, o problema maior não é se esquecer uma leva de conceitos colonizados, mas sim o efeito de desconstrução das identidades políticas que esta frase gera.
Se assim não fosse, porque a geração fundadora da extinta Ação Popular, encabeçada pelo finado Sérgio Motta e o atual governador de São Paulo, José Serra, tenha encarnado a terceirização do Estado brasileiro?! O mesmo se pode afirmar hoje, quando se encara com senso crítico a forma de vida pública de militantes históricos da esquerda brasileira como José Dirceu, José Genoíno e Dilma Roussef. Percebam que cito a ex-presos políticos, hoje mestres da sobrevivência em ambientes hostis, moldando ao entorno às suas vontades e ambições.
Tudo isto anda em companhia da homilia ao pós-modernismo, em grande parte, versão cultural e identitária do neoliberalismo. Dissolvem-se os grupos de pressão, bases programáticas, vindo tudo a ser mero casuísmo entreverado com interesse obscuro. Sem teoria, não se faz política, apenas polititica e fisiologismo. Sem organicidade, prevalece o indivíduo por sobre o coletivo. As duas afirmações acima, comuns e correntes entre os grupos da direita pós-Abertura, de 4 anos para cá tornaram-se prática hegemônica na “esquerda tupiniquim”.
O paradigma escorregadio está na ausência de orientação estratégica. A política cai na vala comum carecendo de instrumento apropriado. É correta a avaliação que a idéia de partido de tipo burguês, intermediário e negociador de demandas experimentando o auge da crise de sentido. Mas, a noção de minoria ativa, orgânica, origem e fonte do partido de quadros, também se encontra nas trevas. Assim, ao rejeitar a idéia de política parlamentar, joga-se fora a água e a criança junto. Ou seja, esta crise é de modelo e de teoria de partido de esquerda.
Na ausência de uma noção funcional e determinada para cumprir sua meta, prevalecem os indivíduos por cima das correntes. Ao associar a idéia de partido com a de partido de massas ou fisiológicos, a esquerda brasileira abandona a real possibilidade de câmbio profundo. Dado o talento nato para os rachas e divisões sem fim, é notável o ressuscitar de chefes políticos e pequenos caudilhos. Isto tanto nas frentes sociais como na esfera política. A marcha inexorável rumo ao individualismo sem fim, faz com que grupos, coletivos, correntes, tendências e até mesmo organizações políticas finalistas sejam algo em extinção.
Dá sua contribuição para a pasmaceira a “ciência” política conhecida nos corredores acadêmicos como “neo-neo”. Isto é, neoinstitucionalista e neoliberal, promovendo a venda casada de regime político com forma de produção econômica. O pior do cenário tenebroso, é que os expoentes da superficialidade democrática são ex-militantes arrependidos. Subestimando a própria experiência, decoram de trás pra frente a centenas de baboseiras colonialistas travestidas de conceitos analíticos. O coquetel de bobagens inunda ao temário da política brasileira, promovendo discussões vazias como a de uma possível reforma política sem uma base social para promovê-la.
Como nem tudo está perdido vai se reconfigurando a política como espaço orgânico e de discussão coletiva, mas por fora do jogo institucional. Reinventa-se a democracia real e participativa a despeito da ausência de participação na democracia ritual. Mas, para sair do brete, é necessário analisar os fatores que levaram a militância de Pindorama a se portar desta forma.
Cortar na carne será a busca incessante da autocrítica, retomando o debate estratégico. Recordando ao pajador da pampa, Carlos El Gaucho Molina, mais difícil do que mirar ao horizonte é mirar para adentro. Eis a tarefa urgente da esquerda brasileira.
Artigo originalmente publicado no portal 40 Graus