Não apenas tem base sistêmica o abuso de poder de ministros contra Eribertos e Francenildos, como é sistêmico o uso da máquina estatal para fins político-econômico de ordem privada. A sociedade contemporânea tende a organizar-se cada vez sobre redes sobrepostas a estruturas e recursos. Estes, podem ser privados, nacionais, transnacionais, estatais ou “tudo ao mesmo tempo agora”. Para espasmo das teorias estanques, a realidade é complexa e tudo acontece de forma simultânea.
O fato concreto, evidenciado pela realidade, é um só. As redes conformadas a partir do comitê executivo do Partido dos Trabalhadores durante a gestão de José Dirceu e seu sucessor José Genoíno, partiram para a conquista do espólio do Estado sem dó nem piedade. A rede formada pelas relações de confiança direta de Luiz Inácio da Silva, como por exemplo, os agora famosos Paulo Okamoto, o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, o advogado Roberto Teixeira, o filho do presidente, dentre outros, levou a uma disputa política no interior do governo. Assim, as bases de apoio formadas por atores-agentes ligados a José Dirceu e a Lula, quando cooperadas, vieram a complementar-se.
No início da fritura, caem primeiro os “amigos do Zé”, ele próprio incluído na gordura ardente saindo dos holofotes e da CPI. O Planalto e a Banca pensaram que seria tranqüilo seguir operando sem o amigo-rival. Ledo engano. Depois do afastamento de Delúbio e Silvinho, o alvo passa a ser Palocci. Ou seja, as tarrafas da oposição aproximam-se de Lula. Um por um vai sendo atingido, sendo que as bolas da vez são da extrema-confiança do presidente. Isolado do partido, os números do governo do ex-metalúrgico parecem como tábua de salvação. E o são, na campanha política. Mas, antes dos palanques, cuja freqüência esquenta depois da Copa do Mundo, tem as CPIs, os relatórios, indiciamentos e todos os homens do presidente na berlinda.
No momento, aparentemente, a Polícia Federal deu o ar de sua graça. Depois da derrota da categoria na greve de 2004, o órgão portou-se de forma tranquila e fidedigna ao comando do Dr. Bastos. Todo e qualquer projeto ou esperança de alterar as relações internas fez água. O “FBI brasileiro” ficou apenas nos boletins e clippings da muito competente Diretoria de Comunicação Social (DCS). Mas, as redes da inteligência policial vêm se movendo, apesar de seu chefe maior ser de confiança do presidente, cujos aliados e auxiliares diretos são alvos de investigação. Quando o cliente e o comando são amigos dos investigados, como fica a lealdade dos agentes?
Um outro raciocínio lógico indutivo pode ser feito. Com a independência e o sigilo do procurador-geral Antônio Fernando de Souza, estará uma parte significativa do aparelho jurídico-policial trocando de lealdade? Mirando a PF com olhos de lince, encontramos o diretor-geral delegado Paulo Lacerda, homem de confiança do senador Romeu Tuma (PFL-SP), comandando de forma inabalável o departamento ao longo do governo petista. E agora, obedecerá ao Dr. Bastos ou irá abrir uma brecha operacional? Irá destacar alguma equipe de ponta, fornecer documentos, evidências, dossiês e munição, tanto para a campanha como para os tribunais?
A ponta do iceberg apareceu na superfície a partir da baixaria do Caseirogate. Jorge Mattoso deve estar profundamente arrependido, o jornalista Marcelo Netto também e até os momentos de esbórnia do Lago Sul já se tornaram uma amarga lembrança. Infelizmente, longe de ser uma exceção, o uso privado dos recursos do Estado, incluindo aí a capacidade de influir diretamente sobre nossas vidas privadas, é uma constante sistêmica. Hoje esta forma de controle e disputa, que não passa pelas urnas nem é auferida pela satisfação popular, têm o pomposo nome de redes. Mas, uma versão não tão sofisticada já foi chamada de outro jeito.
Estas redes vieram a redefinir algo mais que estudado dentro das corporações estatais e seus vínculos com poderes e vontades privadas. A mais conhecida no Brasil é o chamado facciosismo militar. Muito marcado foi o uso e desmando da caserna, dos episódios da “linha dura” contra os “sorbonistas”. Teses e livros às centenas foram devotados sobre o tema. Pois bem, finda a ditadura militar, porque chegamos à ilusão de que as estruturas fundamentais de controle dos recursos da União haviam mudado?
A mágica da “democratização” institucional através dos mesmos atores e agentes, que funcionaram dentro e a partir do regime de exceção, contaminou a todos. Em comparação com Sylvio Frota, Golbery do Couto e Silva parecia um democrata. E quem se autodenominou herói da Abertura? Sim, ele, o general ferrabrás Hugo Abreu. Tamanha barbaridade encontrou eco e subsídio acadêmico. Co-influenciou operadores políticos como Fernando Henrique, José Serra, Mário Covas e Sérgio Motta, a chamada “transitologia”. A salvação da lavoura democrática estava no pacto de elites para a consolidação de um sistema político concorrencial e aberto.
Pouco a pouco foi-se isolando a caserna, após mais de 10 anos transitando entre a meia democracia e o regime dos quartéis. Findo o regime, a tecnocracia ficou no mesmo lugar, gerando cultura própria e autonomia. Mudaram os chefes, agora vindo a ser eleitos, e a forma de controle mudou. Mas, seu mecanismo injusto, corrupto e anti-popular permaneceu exatamente o mesmo. E porque haveria de mudar se as relações estruturais se mantiveram quase intactas?
Este tipo de pensamento mágico é tão crível como a famosa “governabilidade” ou a “estabilidade democrática”. Não levam em conta as relações sociais ancoradas na supremacia e na injustiça. O mundo real, nos trás de volta ao fato de que a maioria no Congresso se consegue às custas de mensalão. E que, na ausência deste, vale o conceito estadunidense de pork barrel, também conhecido como coxeira de porco. Vorazes, os representantes cujo mandato não é revogável vão de dentes em riste para levar “obras e benfeitorias” para seus redutos. Se o orçamento é votado no prazo ou não, isto é secundário. É o preço a se pagar, seja pingando uma certa quantia todo mês ou então comprando de atacado para aprovar a emenda da reeleição.
Para democratizar a democracia também é preciso tornar público o uso e controle dos recursos do Estado. Sob o manto dos critérios “técnicos”, somos roubados em milhões de reais todos os dias. Aproveitando o segredo governamental, as mais distintas redes operam dentro e nas barbas da inteligência policial. Fazendo barbaridades como a quebra de sigilo bancário e telefônico de gente humilde que, acidentalmente, foi parar na berlinda.
É preciso abstrair da concorrência eleitoral e ver as coisas como são. O que foi feito não se faz, sob regime algum, não importam as justificativas. Ou alguém pensa ser menos injusto o Caseirogate do que a venda-entrega da Vale do Rio Doce ou o escândalo Coroa-Brastel?
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat