4ª, 16 de janeiro de 2008, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé
O Brasil vive uma etapa inversa da construção do Estado Nacional Desenvolvimentista. Após a crise de 1929, os países da América Latina começaram a industrializar-se na política de substituição de exportações. Hoje, ancoramos a balança comercial brasileira em cima do agronegócio. Neste cenário, o cultivo de grãos (cereais, leguminosas e oleaginosas) está em destaque e a soja é a rainha. Guardadas as devidas proporções, o avanço da sojicultura é um fenômeno regional, atingindo Bolívia, Paraguai, Uruguai, Argentina e as cinco regiões de nosso país. A oleaginosa, cujo maior comprador mundial é a China, redesenha o mapa da agricultura, da economia e da política do Cone Sul. Faço a abordagem a partir de dados empíricos da soja no Brasil em geral e no Rio Grande do Sul. Semana que vem, analiso alguns efeitos desta cultura no Cone Sul.
A estimativa de fechamento da safra brasileira de grãos de 2007 é de 133 milhões de toneladas. Na última safra recorde, a de 2003, o Brasil produziu 123,6 milhões de toneladas. Os números de 2007 são 13,7% superiores aos de 2006, quando o país alcançou a marca de 117 milhões de toneladas. O pedaço do território brasileiro ocupado pela mancha de grãos totaliza a 45,4 milhões de hectares. Quase a metade, 20,6 milhões de hectares, foi soja cultivada. Outros 9,2 milhões foram semeados com milho
Apenas como ilustração comparativa, o Brasil plantou em grãos uma área equivalente a mais do dois estados do Paraná juntos. Apenas o cultivo da soja supera em dimensão o estado natal do poeta Paulo Leminski. A oleaginosa equivale a 42,8% do total do cultivo de grãos, atingindo a marca de 58, 2 milhões a tonelada. O preço médio da tonelada de soja em grão, novembro de 2007, ficou em US$ 342,90, sendo que a exportação da oleaginosa em grão rendeu US$ 290,4 milhões. No acumulado do ano, na modalidade em grãos, a média ultrapassa os US$ 3 bi e 500 milhões.
Produzindo para o mercado externo, cotando o preço da alimentação com os mesmos valores do comércio exterior, o Brasil vive um paradoxo. Batemos recordes de produtividade e o preço do alimento sobe nas gôndolas de supermercado. Um dos exemplos mais sentidos é o do feijão. Trata-se de uma cultura com destino no mercado interno e ainda assim os preços sobem. Para o ministro da Agricultura do Brasil, Reinhold Stephanes (JC/RS, edição de 09/01/2008, pág. 9) é o patamar mundial que empurra os preços para cima. Insisto no tema e no conceito. A tal inexorabilidade da economia nada mais é do que desgoverno. Funcionassem os estoques reguladores e não haveria alta descontrolada. Mas aqui o Estado funciona como socorrista e não como eixo de planejamento estratégico. Quando planeja, atende a interesses privados. Por isso somos sempre “surpreendidos”.
Vale observar que o comando da pasta da Agricultura reflete a extensão da base aliada. Stephanes, economista nascido na divisa de Porto União (SC) com União da Vitória (PR), foi presidente do antigo INPS durante o governo Geisel, ex-ministro da Previdência de Itamar, e acompanhou a marcha rumo ao “centro” da política, passando pela Arena, PDS, PFL e por fim PMDB. Quando assumiu o ministério do setor primário, estava em seu sexto mandato como deputado federal pelo Paraná. Segue o padrão do ministério no período anterior, quando era comandada a pasta pelo professor Roberto Rodrigues, este sim, homem de confiança do agronegócio.
Ainda segundo o ministro responsável pela agricultura, pecuária e abastecimento do país, os alimentos são commodities valorizadas e em alta. Alguns fatores incidem sobre esta perspectiva, tais como: o cultivo de grãos e cana como matéria prima para geração de energia; o crescimento da expectativa de vida e os problemas decorrentes do aquecimento global e desastres climáticos.
Neste contexto, conforme já foi dito, EUA e China inclinam a balança mundial. A ainda maior potência do mundo retirou, nos últimos três anos, a 80 milhões de toneladas de milho para produzir etanol. Ou seja, o milho e derivados deixam a mesa do estadunidense para preencher seus tanques de combustível. Já a futura maior potência mundial tem um problema inflacionário no preço dos alimentos. Aumentou o consumo de carnes, grãos e lácteos, forçando os preços chineses para cima. A contra medida do governo confucionista foi baixar as tarifas de importação, tentando aumentar a oferta e estabilizar os preços internos.
Os efeitos já se fazem sentir com a busca desesperada pelo aumento da produtividade. Um exemplo é o cultivo da soja no Rio Grande do Sul, onde dos 3,8 milhões de hectares plantados, 95% foram semeados com variedades transgênicas. Não por acaso, houve um aumento de 20% do herbicida glifosato e até 50% em fertilizantes. Ainda assim, os custos com insumos por hectare eram de US$ 66,00 e com a soja transgênica é de US$ 22,00. Apenas para como exemplo da gravidade do tema, o glifosato é o mesmo herbicida utilizado na Colômbia para erradicação de coca. Vale lembrar também que no uso de sementes transgênicas, o pacote costuma ser completo. O mesmo complexo industrial que vende a semente comercializa também os fertilizantes.
Quero fazer uma reflexão. Batemos recordes de produtividade e seguimos cada vez mais dependentes dos “humores” de tecnocratas chineses. Há meio século, quando o Brasil começou a se industrializar, éramos um país agrícola que queria entrar na modernidade. Hoje somos um país ainda industrial, entrando na pós-modernidade como exportador de grãos e não de tecnologia. Enquanto a balança comercial estoura com o agronegócio, a commodity chamada feijão pesa cada vez mais no bolso do brasileiro. A responsabilidade de garantir oferta de alimento barato e de qualidade, com domínio nacional da cadeia produtiva, é tarefa de governo e de Estado.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat