Fazendo um mínimo de exercício de memória, recordamos episódios bem semelhantes e ocorridos justamente no início da campanha eleitoral de 2002. Neste ano, a aliança que governara o Brasil para a execução das políticas do homem de confiança da banca, Pedro Malan, viu-se como um vidro estilhaçado por pedrada. Em operação midiática perfeita, a revista Época dá como matéria de capa a apreensão pela PF de vultosa quantia não declarada da empresa Lunus. Esta firma, com sede em São Luís do Maranhão e de propriedade do clã dos Sarney, gerou o fato escandaloso e finalizador das chances de Roseana para presidenciável. Na política, alguma vingança sempre ocorre, mesmo que não intencional. Na chapa de José Serra, a dobradinha foi com a deputada capixaba Rita Camata. Justo no ano onde detonam uma seqüência de denúncias e investigações que levam ao estado mais pobre do sudeste a passar por situação proxima da vivida em Rondônia.
Podemos entender a corrupção capixaba distinta da rondoniense justo pelo excessivo uso da prática da coação violenta. O que há de comum entre ambos os estados, é a formalização de tráfico de influência, indo além da troca de favores. Em outro país latino-americano, já devassadamente cartelizado, o tráfico de influências opera em conjunto com algo que na Colômbia é conhecido como vacuna, ou seja, vacina em português. “Vacinar” significa impor uma taxa extra ou de percentual sobre algum contrato. Ou então, em áreas dominadas pelos paramilitares das AUC, a “vacina” é um imposto extra, algo como a taxa de proteção cobrada pelas máfias controladoras de territórios. Os paracos, como são conhecidos os mercenários a soldo do narcotráfico operando sob o comando dos caciques das Autodefensas Unidas de Colômbia, são bastante “práticos” no exercício da coação. Se a variável de violência sistemática sobre autoridades não-cúmplices diferencia a corrupção capixaba daquela exercida hoje em Rondônia, outros fatores são afins. “Inspirado” no ocorrido, trago aqui a sinopse de um artigo acadêmico escrito por mim em dezembro de 2002. Na época afirmamos:
“Nos meses de junho e julho de 2002 a cobertura política da mídia se mesclava com a editoria de polícia e dava cobertura aos pedidos de intervenção federal no estado mais pobre da região sudeste, o Espírito Santo (ES). Ocorreram assassinatos de advogados, políticos e juízes; delegados de polícia civil incluídos no Programa Federal de Proteção a Testemunhas e dezenas de acusações de infiltração do crime organizado (tecnicamente denominado de organização criminosa) por dentro dos postos-chave do aparelho de Estado desta unidade subnacional. O momento crítico deste processo foi a recusa do então procurador-geral da república Geraldo Brindeiro de levar o pedido de intervenção ao Supremo Tribunal Federal e a decorrente demissão do professor de direito e advogado renomado Miguel Reale Jr do cargo de ministro da Justiça.
Reale Jr. foi o oitavo a ocupar a pasta do Ministério da Justiça no oitavo ano do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). 2002 foi ano eleitoral e o presidente tinha seu indicado à sucessão, José Serra (PSDB/SP) coligado justamente com a deputada federal capixaba Rita Camata (Rita, Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB/ES), mulher do senador e ex-governador do ES Gérson Camata.
A interpretação corrente de então foi que a intervenção não ocorreu porque feria interesses político-eleitorais diretos, podendo ser utilizada para associar o nome de Serra e Rita Camata ao da organização criminosa que controlaria o aparelho de Estado no ES. O próprio governador do ES da época, José Ignácio (no mandato de 1999 a 2002) havia sido “fritado” do PSDB, permanecendo um tempo sem partido até se incorporar na legenda (irrelevante) do Partido Trabalhista Nacional (PTN), onde terminou seu mandato. A questão óbvia da corrida eleitoral é um dos fatores, mas não nos parece suficiente para explicar o porque da não-intervenção federal, e muito menos, para sequer se aproximar do objeto de estudo da organização criminosa. Esta, conhecida como Scuderie Le Cocq, estava organicamente infiltrada no aparelho de Estado e com liderança visível no “banqueiro de jogo do bicho”, ex-deputado estadual e então presidente da Assembléia Legislativa do ES José Gratz (na época ainda no Partido da Frente Liberal, PFL).
De nossa parte, reconhecemos a interpretação do interesse político-eleitoral, mas afirmamos outras motivações para a não-intervenção. Afirmamos que o cenário complexo das forças que compõem o campo do jurídico, político e burocrático-policial ao nível da União e do estado do ES, somadas às entidades da sociedade civil (notadamente a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e os movimentos e Organizações Não-Governamentais de direitos humanos (ONGs de DDHH), a mídia especializada nacional (centrando nas revistas semanais de informação e jornais de circulação nacional) se subordinaram ou foram derrotadas politicamente pela própria estrutura de organização criminosa, neste caso específico, da Scuderie Le Cocq.
Considerando isto como o fato gerador da não-intervenção, fazemos as seguintes reflexões:
Pode o aparelho de Estado de Direito investigar e punir operadores e mandantes do crime organizado quando estes mesmos operadores ocupam postos-chave nos níveis político, jurídico, policial e econômico da sociedade?
No caso do ES, há como exercer plenamente o poder do governo do Estado sem negociar uma permanência pacífica da organização criminosa no interior do próprio aparelho de Estado, contando inclusive com representação informal (e por vezes formal e direta)?
Exercer este poder de Estado não geraria de imediato uma crise de governabilidade de grande dimensão, sendo desproporcionais os dividendos políticos de longo prazo quando comparados aos custos imediatos?
Tomamos o caso da não-intervenção federal do ES como um exemplo concreto deste cenário complexo e seus operadores atuando em um determinado recorte geográfico, numa conjuntura específica de tempo e espaço limitados. Acreditamos que assim podemos extrair uma referência passível de ser universalizada para o cenário nacional. Quando aprofundada, esta referência seria aplicada em casos como no Acre de Hildebrando, Mato Grosso do Comendador, Rondônia e Roraima, dentre outros. A partir desta caracterização, afirmamos ser a impunidade e a ilegalização crescente nos assuntos de Estado, não uma anomalia, mas uma característica do exercício do poder na democracia brasileira atual.”
Ao contrário do que possa parecer, não há como se rejubilar da profecia repetir-se, inclusive com os escândalos e operações da PF batendo nas portas da urna. A falência múltipla do Estado em Rondônia veio a público em 2005 e a intervenção federal era uma coisa dada, só o Planalto não viu. Uma provável hipótese para esta “cegueira”, é o acordo com o baixo clero como forma de “governabilidade”. Agora, mais uma vez, vemos a panacéia se repetir, com os altos mandos dos órgãos de Estado impregnados de corrupção. Se o problema era visto e sabido, porque a investigação demorou tanto?
Se isto não for um problema sistêmico, então o que é?
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat