A história da humanidade é marcada por saltos e rupturas. Correspondendo ao nível ideológico, datas carregam o peso simbólico de galvanizar anseios de uma sociedade e civilização. Tal como o 1º de Maio, transformado em Dia do Trabalho pela ditadura do Estado Novo, a mesma alteração de significado é sofrida no 8 de março. Rever a historia da formação da classe trabalhadora industrial ajuda a compreender o processo social que culminou na tragédia e futura vitória.
Corria o ano de 1857 e a categoria das tecelãs, hoje conhecidas como operárias têxteis, cumpria mais de 16 horas de jornada de trabalho diárias. Não apenas trabalhavam muito, como recebiam um terço da remuneração masculina. Além do salário de miséria e a ausência de direitos trabalhistas, sofriam humilhações e vexames, como revistas de corpo inteiro e espancamentos promovidos por capatazes e encarregados. O local, uma fábrica de tecidos no estado de Nova York, Costa Leste dos Estados Unidos da América.
Fruto deste cotidiano, as tecelãs inauguraram a modalidade da primeira manifestação exclusivamente promovida por mulheres. Saíram para a rua e receberam uma carga de cavalaria como resposta do Estado. Retornaram correndo para dentro da fábrica tomada e sob seu controle. A resposta da ocupação fabril foi ainda mais dura do que o pisoteamento pelos cavalos e os golpes de sabres. Com a autorização dos proprietários da indústria, ainda movida a vapor, a autoridade policial ateou fogo na área. O resultado foi o assassinato de 129 operárias carbonizadas.
Já no século XX, duas reuniões européias, promovidas pela Conferência Internacional das Mulheres Socialistas marcam a reivindicação pela data. Em 1910, é tomada a decisão de comemorar este dia como sinal de protesto pelas condições de trabalho das mulheres e na luta pelo direito ao sufrágio universal sem distinção de gênero. Em 1911, atos simultâneos promovidos em dezenas de cidades consagram a data. No cenário da política operária, representa uma nítida vitória das sufragistas.
A consagração veio nas marchas da Rússia, durante o governo provisório. O fruto da participação das tropas Czaristas na 1ª Guerra Mundial rendera o saldo de mais de 2 milhões de soldados russos mortos. Uma campanha promovida em 1917, coordenada por mulheres, esposas, irmãs, mães e parentes destes conscritos exigia a consigna de “Pão e Paz”. O resultado tático foi a conquista do direito ao voto universal, meses antes da vitória bolchevique. A coincidência dos dias veio a consagrar a data atual. Em 23 de fevereiro, segundo o calendário Juliano, foi conquistado o sufrágio universal na Rússia. Esse dia corresponde ao 8 de março no calendário Gregoriano.
Já em dezembro de 1977, após uma intensa campanha, onde as mulheres mineiras da Bolívia tiveram um papel preponderante, a Assembléia Geral da ONU proclama este como o Dia Internacional da Mulher. Desde então, como data oficial, a peleia por sua significação acontece em diversos âmbitos.
É interessante observar que a disputa dentro do movimento de mulheres ocorre desde o século XIX. Inicialmente entre sufragistas e classistas. Ou seja, entre àquelas que queriam o acesso ao direito de voto e a participação na democracia liberal, e as que tinham como meta primeira a conquista dos direitos das mulheres trabalhadoras. Muitas vezes, as causas se mesclavam em franca união. Noutras, gerou grandes cisões.
No caso brasileiro, não seria exagero afirmar que a luta contemporânea das mulheres ocorre no universo das lutas operárias das primeiras décadas do século XX. Pautas ainda hoje polêmicas, como as que dizem respeito ao comportamento, foram iniciadas nos idos de 1906. Se sempre existiram rebeldes e transgressoras da ordem patriarcal, a expressão organizada veio do cotidiano de fábricas, vilas e cortiços.
A causa e a questão merecem muito mais do que poucas linhas históricas. Tampouco, nenhuma das informações aqui narradas são algo novo. O que sempre podemos dizer é que a redescoberta, mais do que uma revisão intelectual, é o fruto da correlação de forças. Esta sim é a novidade, retomada com a luta e as ações simbólicas promovidas pelas mulheres da Via Campesina, ao longo dos quatro últimos anos e com ênfase em 2006.
Não quero entrar no mérito da ação em si, mas de seu significado. A mensagem é perceptível, e trás a reclamação de que para a maioria das mulheres, a dupla jornada, tornou-se tripla, uma vez que boa parte delas também tem de ser chefe e arrimo de família. O país que precisa de uma Lei Maria da Penha para coagir suas próprias instituições a funcionarem, está anos luz de distância da igualdade de gênero como causa resolvida.
Esta é a atualidade do dia 8 de março.