Não tenho o costume nesta página em oferecer revisão bibliográfica e nem comentários de livros ou outras narrativas. Reconheço isso como falha. Tal prática talvez enriquecesse o debate, partindo de um ponto de vista comum. Seria algo como um seminário de faculdade.
Neste sentido, queria inaugurar as Notas de livros comentados partindo de um clássico esquecido. Faz exatos 4 dias tive a oportunidade de encontrar em um sebo de rua, um livro que desejava ler há mais de 15 anos. Chama-se “Se me deixam falar...” .Trata-se de um relato com roteiro, pronunciado por Domitila Barrios de Chungara. Esta mulher, boliviana, esposa de mineiro sindicalizado, teve sua vida e convicção publicada em nosso país no longínquo ano de 1978. A editora, creio que não existe mais, e se chama Símbolo. A escritora que fez a apuração do relato é natural de Caxias do Sul, especializada em antropologia social e se chama Moema Viezzer. O tradutor, Edimilson Antonio Bizelli, formou em Cs. Sociais pela USP e estudou política na Flacso de Santiago do Chile. Pela época e os cursos, ambos pegaram exílio.
Tivessem lido as palavras de Domitila, e muitos “especialistas” poderiam ao menos tentar transladar-se para a mente de outrem e não ficar deitando falatório a respeito de irresponsabilidade de Morales e o tal de anacronismo. O que hoje significa e representa a YPFB, antes fora a COMIBOL, estatal de mineração de estanho e cobre. Empresa quebrada, alvo dos interesses diretos de algumas poderosas transnacionais. A espinha dorsal do movimento popular boliviano, durante décadas, foi a categoria mineira. A idéia de pertencimento e a relação umbilical com as entranhas da terra de seus ancestrais são mais que palavras belas da pena de um Galeano ou García Márquez.
Passado o furor de pensamento único na década de ’90, a fúria das privatizações, o ataque direto ao botim do patrimônio público gerido pelo Estado, a criminalização da economia capitalista pós-moderna, tudo isso deu uma falsa idéia de submissão total e completa das maiorias do Continente. Nada podia ser mais falso, ainda mais se somado a um desejo de revolta e vingança.
Mesmo que a Bolívia fosse nossa adversária, coisa que não o é, deveríamos conhecê-la por dentro e não com olhares de crudos ou escuálidos. Como dizia um clássico de Guerreiro Ramos, ele mesmo mudando de lado e de mentalidade, o intelectual da colônia vive a esquizofrenia de pensar em outro idioma que não o de sua infância. Trás o jargão profissional de outras escolas de pensamento distintos de sua origem e o recita como uma palavra santa.
Sem nenhuma palhaçada reducionista, até porque o momento é sério, já é hora de parar de chiar quando sai um editorial antibrasileiro na The Economist. Para compreender aquilo que passa o país, seria bom reler as sábias palavras de Domitila, mesmo que esta senhora venha a pedir, como tantos outros, que esqueçamos o que ela escreveu.