Existem formas consagradas de exercício de função pública remunerada, ocupando cargos de chefia e assessoria direta e que não passam por concurso. Muitas vezes o indicado não é servidor público, sendo empregada a sigla de CC, ou seja, cargo em comissão ou cargo de confiança. Quando o ocupante do posto é servidor de carreira, a sigla empregada é a de FG ou CD, respectivamente, função gratificada ou cargo de direção. De comum entre ambos é o fato de não haver seleção universal para ocupação do cargo. Tampouco se fortalece a democracia no local de trabalho porque nunca se aplica a eleição entre os servidores para os postos de chefia.
Além de FGs e CCs, outra forma de aplicar recursos públicos sem passar por concurso ou licitação é o uso indiscriminado de consultores e funcionários terceirizados. As pessoas físicas que exercem consultorias costumam ser diretamente contratadas por órgãos públicos – administração direta, autarquias e empresas estatais – ou fundações de apoio. A partir destas pessoas jurídicas, a cadeia de comando e produção utiliza-se de uma técnica gerencial chamada de “sistemista”. Nestes casos, uma função pública é aplicada por um consultor, muitas vezes sob contrato temporário com outra empresa, por sinal sub-contratada pela terceirizada inicial.
No caso específico das administrações municipais, estas têm por hábito empregar “estagiários”. Muitas vezes, os estágios são obtidos de forma idônea, registrando os currículos dos interessados e direcionados para alguns postos de trabalho. Vejo nestes casos três problemas em ordem crescente. O primeiro é o fato destes mesmos postos de trabalho ocupados por estagiários retirar o emprego de um trabalhador em idade madura. O segundo mais grave, porque muitas vezes, os estagiários não passam por cadastro e seleção de empresa alguma. Assim, entram na administração municipal sem concurso público, por indicação direta de alguém com capital político na ponta da caneta. O terceiro problema é diretamente relacionado com o segundo. Quando não há transparência abunda a desconfiança. O mecanismo de estágios sem seleção pública é terrível, reforçando na população a mentalidade do “é dando que se recebe“.
Longe de exagerar, relato aqui algo que vejo na própria rua onde moro. Infelizmente não sou o único. Em termos da ciência política, este comportamento revela uma hegemonia da cultura política paroquiana. Nas ruas de barro e calçamento com sobra de pedreira, esta vivência reforça o duplo discurso. As famílias que vêem seus filhos e filhas destinadas ao subemprego reclamam do mecanismo injusto. Ao mesmo tempo,cresce o capital político do possível empregador.
Ou seja, a indicação de jovens para empregos sob o manto jurídico de “estágio” aumenta a relação de prebenda. O possível vereador, secretário municipal, diretor de autarquia e mesmo o presidente de diretório municipal de um partido da coalizão de governo local é visto como um tipo que pode ajudar. “Uma mão lava a outra” segundo o dito popular. Em termos conceituais, a base eleitoral torna-se clientela.
Aplicando algum rigor conceitual e uma dose forte de ironia eu batizo essa prática infeliz de “clientelismo de baixa intensidade”. Para os leitores deste blog, acostumados a acompanharem as tramas políticas planaltinas, um tema assim pode aparentar ser de pouca monta. Asseguro que não é. Justo por ter “baixa intensidade”, a indicação de jovens para ocupar um emprego sem passar por seleção pública e universal macula o imaginário político e social.
É na ponta que o sistema revela toda a sua capacidade de desorganizar o tecido social. Bastava aplicar o mecanismo de concurso público e a idéia do estágio por indicação cairia por terra. O valor do estudo, cada vez mais em baixa nos municípios periféricos de regiões metropolitanas, iria se reforçar. Isto porque a noção de meritocracia é a mais potente inimiga direta da “esperteza aplicada”.
Sendo otimista, imaginem a propaganda proativa gerada por uma prefeitura com 100% de transparência. Uma palavra de ordem para os cabos eleitorais poderia ser: “aqui, na gestão do fulano, tudo é em pratos limpos e até o estagiário faz concurso!”. Mesmo com toda a dificuldade que este hipotético prefeito encontraria, tenho certeza de que a imagem renderia um capital político acima da mediocridade típica do “é dando que se recebe”. Romper com os desmandos, desvios e fraudes municipais não é algo fácil. Uma boa medida seria começar com o fim do clientelismo de baixa intensidade.
Este artigo foi originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat