Caiu e foi cassado José Dirceu de Oliveira e Silva mas a crise política continua. O novo alvo da oposição é Antônio Palocci, mas ao invés de ser atacado de forma franca, contra ele será aplicada a tática de aproximação indireta. Na gíria mais popular, o ministro que co-governa o país na companhia de Henrique Meirelles, será cozinhado em fogo brando. O presidente agora tentará segurar Palocci, deparando-se com duas frentes de luta. Do lado de fora do governo, estão as denúncias midiáticas ao estilo do venezuelano Cisneros. Na interna do núcleo duro do governo Lula, a luta de posições à moda gramsciana promovida por Dilma Roussef. A economista mineira radicada no Rio Grande, segue a perspectiva de Dirceu, buscando aumentar a margem de manobra sem romper com a política monetarista. Enquanto a pugna não se define, o PIB caiu e a economia está congelada. Tudo marcha conforme o previsto e de acordo com o receituário da Banca.
Voltando ao caso de Dirceu, entendemos ser este um momento ímpar da política brasileira. A espetacularização da política tendo como linguagem de referência a telenovela das CPIs muitas vezes nos leva a miopia do momento vivido. No último dia de novembro de 2005, foi cassado o mais importante dirigente da “esquerda” brasileira desde Luís Carlos Prestes. Contradições e mesquinharias abundaram no ambiente político nacional. O homem com têmpera de aço caiu do alto do púlpito, citando o desafeto Mário Covas, aliando-se com o clã dos Sarney, rodeado por advogados e pedindo desculpas a Ricardo Fiúza. Resta saber qual o sentido de tudo isto?
Os porquês da queda, do ponto de vista factual, estão dados e são visíveis. O castelo de cartas começa a cair com as denúncias e flagrantes do operador de confiança Waldomiro Diniz, ele próprio equivalente a um Ricardo Sérgio de Oliveira petista. A partir daí, o conjunto dos militantes se deram conta da estrutura clássica de secretariado-executivo de partido bolchevique montada por Dirceu com José Genoíno, Silvinho Pereira, Marcelo Sereno e Delúbio Soares à frente. O aparelho político do então maior partido de esquerda da América Latina servia de escora para as mega-operações financeiras com o laranja Marcos Valério triangulando com dois bancos privados e recursos e fundos de estatais. Todo este quebra-cabeça para ainda ter de pagar o custo das alianças com o segundo escalão das oligarquias brasileiras, leia-se Mensalão. Por pouco mais de dois anos, esteve o principal operador político de braços dados com Roberto Jefferson entre outros.
Agora, porque e através de qual processo de recâmbio político um militante do quilate de Dirceu chega a isto é o grande questionamento. Com certeza, o giro à direita foi muito ajudado pelas frustrantes experiências com o foquismo. A opção democrática reformista se fundamenta também pela miopia política dos ’60 e ’70, onde impera a falsa contradição entre luta de massas, organização política e ação direta. Contribui também as parcelas de poder adquiridas através do voto nos anos ’80, e o bom exercício de somar a luta política com o avanço de alguns setores do movimento popular.
Mas, assim como o canto da sereia, a canoa se choca ao rochedo e afunda no final do ano de 1989. A derrota eleitoral para Collor, muito facilitada pela falta de vontade política de Lula e o então poder avassalador da Rede Globo, são um choque de possibilismo na mente de dirigentes petistas. Dois fatores externos contribuem para tanta quebradeira. Um deles é a queda do Muro de Berlim, se bem que da experiência stalinista a geração fundadora do PT reproduz o estilo de trabalho mas não a sociedade concreta aí constituída. Na interna do partido, uma dor igual ou maior foi a derrota sandinista na Nicarágua. A dirigência da FSLN, já corrompida pela própria estrutura por ela construída, entrega na urna fraudada o poder conquistado pelas armas após mais de 20 anos de sangrenta guerra revolucionária.
A partir de 1990, a história recente ainda refresca na memória de muitos. A corrente majoritária original racha e começa a aproximação com grandes capitais nacionais. Duas derrotas eleitorais a mais e se baixa a guarda de vez. Em nome do coeficiente eleitoral abrem mão do programa de governo. Para aprofundar a crise ideológica, fruto de uma análise estrutural ao nosso ver cega e tacanha, alicerçaram o novo governo no modelo econômico anterior. De tudo isto, um valor há que ser reconhecido. Processo coerente, estratégia conseqüente. Para governar para os bancos, compra-se parte da direita que está a venda e pronto. Não podia dar em outra coisa, o pragmatismo político pragmaticamente engole ao seu criador. Um esquema tão escancarado promovido por neófitos de Brasília tinha fazer água. E fez.
Em todos estes momentos históricos, Dirceu se encontra no miolo do centro decisório. Assume sua posição de referência, mata no peito e chama para si a responsabilidade. Portanto, é responsável direto por mais esta tragédia da esquerda latino-americana. Como em todo processo real, os níveis político, econômico e ideológico são intrínsecos e interdependentes. Ou seja, o dirigente muda de hábitos, padrões de consumo, círculo de amizades e influências. Até terminar assim, cassado, amigo de Roseana Sarney e tendo sua casa de campo em condomínio de luxo em Vinhedo roubada. Qualquer semelhança com as dashas da nomenklatura soviética, infelizmente, não são mera coincidência.
É bem provável que José Dirceu não seja necessariamente um corrupto. É apenas um ultra-realista operador político, homem que além de sofrer derrota ideológica, cegamente distingue os processos dos fins. No meio dessa confusão, perde o objetivo estratégico. E por isso mesmo, acaba perdendo tudo.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat