O Estado Argentino estava acéfalo, sem rumo institucional definido e, portanto, sem poder político. Por mais de uma semana, intacta mesma só a capacidade repressiva. O cacerolazo resultou, sem dúvida alguma, num marco histórico para os movimentos populares na América Latina. O poder oscilava entre a oligarquia reunida em palácio e as assembléias de base. As decisões estratégicas, passavam tanto pelo imponderável, como pelas direções de organizações políticas de esquerda. Os escritórios clandestinos do Serviço de Inteligência e Defesa do Estado (SIDE) e seus vínculos com o Partido Justicialista, contra-operavam de modo frenético.
Com uma capacidade maior de coordenação estratégica, os cordões periféricos e as assembléias na capital poderiam ter aprofundado o duplo poder. Um ensaio disso chegou a ocorrer, como durante as madrugadas, quando setores piqueteros fecharam as ruas de acesso e organizaram breves milícias em alguns bairros operários. O ensaio de controle de território urbano era para conter as "bandas de servicios", grupos de provocadores, punteros da direita peronista, que ordenados pelo SIDE, realizavam saques e roubos entre todos. Na memória coletiva, o povo argentino recordava Villa Constitución e Villa Devoto.
A pueblada teve um resultado concreto. A Argentina despertou sem cabeça política, com os bancos fechados e uma consigna simples e contundente, Que se vayan todos! O candidato da direita peronista, derrotado por De la Rúa no pleito de sucessão a Menem, vem a assumir a Casa Rosada em típico acordo oligárquico. Se esperava do ex-governador da Província de Buenos Aires um governo assistencial e manejado através de sua máquina privada-pública-partidária-policial, que tem como braço armado operacional a temida Polícia Bonaerense e seus métodos de gatillo fácil. Duhalde assume na defensiva, numa conjuntura onde salvaguardar o sistema político, e enterrar de vez a Alianza social-liberal são as medidas concretas. UCR e Frepaso são os cadáveres políticos do cacerolazo, tendo de pagar a conta dos 8 anos de Menem e suas barbaridades governamentais. Outro resultado concreto é a idéia de auto-goveno, ou usando o termo clássico, da implementação de medidas e vontades para exercício de Poder Popular e Autogestão Social.
Sem dúvida, mesmo com os custos de uma provável guerra civil, ao aplicar estas políticas o povo argentino poderia começar a sair do buraco negro onde a oligarquia e os financistas meteram o país. O Estado Argentino, os capitalistas financeiros, as elites econômicas que sacaram a base monetária do país e a lição de casa do FMI quase faliram a nação. Os momentos de duplo poder das Assembléias Populares, das Coordenações Piqueteras , motivados por questões de interesse imediato e social, já dão um tom de maturidade política dos trabalhadores formais e informais daquele país. Se fosse um processo de maior avanço na luta de classes, fatalmente uma situação revolucionária estaria conformada hoje na Argentina. Mesmo assim a realidade de combate é positiva e contundente, estando o povo mobilizado e alerta. Os setores piqueteros e o impulso de algumas poucas organizações de esquerda, como o PCR, Auca e Patria Libre, levaram para a capital federal os níveis de enfrentamento já existentes nas províncias do norte de Jujuy e Tucumán e na sulina Patagônia, onde o Cutralcazo e os sucessos de 1996 e 1997 reinauguram as jornadas de lutas na Era Menem.
Economicamente, a Argentina é um país cheio de potencialidades. É auto-suficiente em petróleo, não tem problema com falta de energia elétrica e é dotado de abundantes recursos hídricos. Com solo fértil e poderoso setor do agro, produz quantidade de alimentos capaz de sustentar a mais de 300 milhões de pessoas ao ano. Sua população tem níveis de escolaridade muito superiores que a média da América Latina. Praticamente não tinha analfabetos até o início dos 8 anos de Menem e tem escolarização média de 2o grau. Além disso, seu território tem um ótimo tamanho, podendo crescer e expandir suas bases de ocupação econômica e territorial e sendo perfeitamente governável. Sua população é 5 vezes menor que a do Brasil; fazendo que o país seja de fácil administração.
Fica a pergunta. Como puderam levar esse país ao caos? É muito simples. A Argentina seguiu na última década todo o receituário neoliberal ditado pelas nações capitalistas desenvolvidas através do FMI.
O Sr. Cavallo virou o queridinho do FMI, um Aexemplo@ a ser seguido em toda a América Latina. A partir desta posição privilegiada, o economista já derrubou dois governos equatorianos e um argentino com seus planos mirabolantes. Muito bem, o país se abriu para o mercado externo, deu liberdade para entrada e saída de capitais de sua economia e fixou o câmbio ao dólar. O inteligente povo argentino, que produziu grandes economistas até para a CEPAL, ficara vinculado a uma saída escapista e intelectualmente medíocre. No início, quando o Estado Argentino conseguia se endividar sem maiores problemas de insolvência, tudo foi maravilhoso. Capitais externos entraram em profusão para comprar as estatais argentinas. Só faltou privatizar de vez a polícia, porque todo o resto venderam. A praça financeira ganhou a liberdade de lucrar e sair sem dificuldade ou ônus. No longo prazo, essa opção econômica foi fatal, pois a Argentina se esquecera de alinhavar planos para sua agricultura, indústria, comércio (incluindo aqui a exportação), perdera a possibilidade de fazer política monetária e muito pouco poderia fazer com relação aos juros. Quando se percebeu que essa desatenção com a economia real (agricultura, indústria e comércio) e a falta de liquidez estava levando o país a não crescer mais, já era tarde demais. A Argentina tinha um grande furo anual em suas contas correntes, pois tem compromissos anuais na ordem de US$ 14 bilhões de serviços de sua dívida externa (que hoje é de US$ 132 bilhões) e não podia tentar compensar isso com algum superávit comercial, pois o produto argentino atrelado ao dólar ficava caríssimo. Observando estes furos, acompanhados da falência do sistema político, as agências de classificação de risco começaram a rebaixar os papeis argentinos.
A situação de fato, já em julho de 2001, era essa. O país não conseguia mais captar recursos, a não ser em troca de juros extorsivos, o que jogava ainda mais a Argentina no buraco. Some-se a isso, um Estado que tinha que perseguir o déficit zero por exigência dos credores internacionais, os quais não estão interessados na situação do país, mas apenas em ver seu dinheiro de volta. Ou seja, o Estado Argentino reforçou a tendência recessiva ao cortar seus gastos. Pronto, com essa administração subserviente, o governo De la Rúa apenas completou a política errada de Menem. Os geniais doutores em economia conseguiram levar a Argentina à bancarrota.
Resumo da ópera, agora que o bom aluno está em dificuldades por causa da receita do professor, o FMI diz que Anão é culpa dele@ e abandona o país a própria sorte. E talvez seja melhor assim. A Argentina tem condições de restabelecer uma condição digna para seu povo, mas temos nossas dúvidas se isso seria possível dentro do modo capitalista de produção. De qualquer forma, só sobrou para a Argentina a opção de se fechar, olhar para si e desenvolver um projeto nacional para sua economia, abandonando a louca aventura da economia globalizada. Para finalizar a demência macroeconômica, trazemos um fato verdadeiro, mas triste. Nos últimos 4 anos o único produto de exportação que a Argentina estava conseguindo emplacar no mercado internacional eram os seus jogadores de futebol. Somos obrigados a reconhecer que estes boleiros são ótimos, jogando com garra e habilidade. Mas, para sustentar um país, exportar jogadores de futebol não basta.
A contraparte vem vindo das ruas. É importante lembrar que mesmo com a economia em baixa e os níveis de emprego e produtividade quebrados, a capacidade de luta da população vem crescendo há pelo menos 5 anos. Com panelaços ou pedradas, as puebladas de 2001 trouxeram a melhor tradição Argentina. Uma breve volta no tempo nos trás às últimas montoneras do século XIX; passando pelas greves da Semana Trágica e da Patagônia rebelde; pela heróica geração do Cordobazo dos anos 60 e 70 e os estallidos sociales dos anos 80. Dezembro de 2001 culmina o desejo das maiorias argentinas, Que se vayan todos! Resta saber se a correlação de forças e o grau de coordenação das esquerdas tornará possível esta tentativa. Ou então, se a pressão das ruas servirá apenas para conter outra onda neoliberal, e se possível, renegociar a dívida Argentina em termos mais favoráveis.