Além das ameaças proferidas por Renan , a tática de sobrevivência incluiu a manobra regimental. Isto porque os representantes eleitos para a câmara alta da república "federativa" do Brasil têm o privilégio de se esconderem dos eleitores e da opinião pública para julgarem seus pares. Este mecanismo é no mínimo absurdo. Protege o representante da cobrança do representado, perpetuando a negociata de gabinete ao invés do debate franco e aberto. Nada pode ser mais antidemocrático.
É certo, o mesmo não ocorre na Câmara dos deputados. Na câmara baixa do país, a sessão é aberta, mas com votação fechada, secreta. Mais uma vez temos o pior dos exemplos. Uma instância de representação política que legisla em causa própria e através de formas veladas. Como instituição, a democracia representativa se encontra na berlinda. Justiça seja feita, não é apenas o Congresso o responsável por estas mazelas.
Por mais de uma vez expus aqui neste blog várias das possibilidades de arranjos institucionais que permitiriam um aumento da participação popular. Infelizmente, no interior da ciência política praticada no Brasil, a corrente hegemônica se afilia a outra tradição. É impensável supor que um regime político se sustente e reproduza sem um discurso legitimador. O mesmo ocorre com a economia. Acreditem a junção dos pressupostos neoliberais com a ânsia pela democracia vista apenas como um conjunto de regras mínimas não é nenhuma coincidência.
Percebam a gravidade da situação. O senador Renan Calheiros é um equilibrista político, ocupando os holofotes do Planalto desde os idos de 1990 quando ainda era aliado do conterrâneo e hoje também senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL). Escapara por pouco, mesmo tendo contra si acusações indefensáveis, muitas delas também inconfessáveis. O peemedebista alagoano e aliado de Lula forma uma trincheira política, usando o regimento da casa como parapeito e os colegas de Senado como tropa auxiliar. Dentre os amigos, a abstenção dos senadores do PT. Eis o consagrado preço da "governabilidade" como tanto gosta nossos neoinstitucionalistas.
Se a grande meta desses politólogos é formular um conjunto de normas procedimentais que permitam a estabilidade da "democracia possível", então podemos concluir que a corrente hegemônica se encontra vitoriosa. Isto porque, mesmo com todos os escândalos, a democracia como ela é sobreviveu aos Vampiros, a CPI do Banestado, ao Mensalão, ao Caseirogate, as Sanguessugas e agora ao affaire Renan.
Este artigo quer debater a substância de democracia realmente existente no país chamado Brasil.. Uma vez que o conceito de democracia – "mando do povo" – não é o bastante, se agregam terminações. Assim, a teoria atual, em vigor na sociedade real, é a da democracia minimalista, representativa e delegativa. Neste modelo, o instituto da delegação tem no mandato um cheque em branco. Por isso, os representantes são julgados apenas pelos seus pares. Como no dito popular, a maioria tem telhado de vidro, poucos se atrevem a atirar as pedras certeiras.
Como já dissemos, não existe regime político ou sistema econômico que não conte com um discurso legitimador. O golpe militar de 1964 foi, segundo os golpistas, uma "revolução". O mesmo ocorre no Senado de cuja tribuna discursou ACM, Sarney e Renan. Seu regimento é "democrático" e os crimes cometidos pelos senadores são "deslizes". Para piorar, a "ciência" política hegemônica afirma que isto denota uma "maturidade" do sistema político, gerando uma idéia de "estabilidade" das instituições democráticas.
Resta perguntar ao povo brasileiro se concordaremos em arcar com a "estabilidade" gerada por mecanismos injustos e absurdos tal como o regimento do Senado da república. Diz o ditado popular que "quem não deve não teme". Se os políticos profissionais do país não tivessem muito a esconder, estas normas protetoras do patrimonialismo a serviço da plutocracia jamais teriam existido. Pelo bem da democracia real estas formas de procedimento devem ser extintas o quanto antes.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat