Parto do princípio que a meta democrática não pode ser apenas um rito de normas e procedimentos. O rito da competição eleitoral não substitui, nem pode ser mais importante do que a participação direta. Participação é a palavra chave, mas com poder decisório, e não uma maquiagem onde os recursos de mobilização atendem aos objetivos das práticas políticas de cabresto. As entranhas da sociedade organizada são as instituições de base. É deste tecido social esfacelado, que nascem e até rebrotam as possibilidades de transformação. Na ausência desta participação, abundam os programas de assistência direta.
Desde a volta do regime democrático no Brasil, em 1985, e especificamente após a Constituinte “cidadã” de 1988, vivemos uma situação social esquizofrênica. Por um lado, em tese, aumentam os direitos das maiorias. Por outro, uma série de barreiras estruturais brecam o avanço popular: - o direito não é normatizado em leis funcionais; - a classe política vai se autonomizando para com seus representados; - os recursos necessários para o exercício destes direitos nunca constam nas diretrizes orçamentárias, e mesmo quando constam são coincidentemente contingenciados; - aumenta a carga impositiva, mas o Estado cada vez funciona menos e piora seus serviços.
Durante os últimos 12 anos, o Estado brasileiro operou com uma lógica absurda. Abriu mão do exercício de funções básicas, recusou-se a ter objetivos estratégicos de médio e longo prazo e ancorou sua aliança na ciranda financeira e no monopólio da comunicação. Este mesmo estilo “low profile” de governar, capitaneado por FHC e o tucanato, foi, fielmente, reproduzido por Lula, o Campo Majoritário e seu Núcleo Duro de governo. Para isto, o PT deu sua grande contribuição para o rito da “democracia” brasileira. Por um lado, dedicou seus melhores e mais bem preparados quadros para serem reprodutores de um estilo e escola de governo pactuado, e que não atende os interesses das maiorias. Por outro, acalmou e desarticulou estas mesmas maiorias.
Senão a pactuar o país socialmente, ajudou a desorganizar a classe a qual se dizia representar e aumentou o vínculo direto da maioria excluída com os programas de ajuda do Estado. Isto garante que, as tais “massas em disponibilidade”, se mantenham em disponibilidade eleitoral e não mudem nada de suas relações sociais básicas. Ao invés de mobilização social, cestas básicas. A moeda de troca é o voto e não a pressão. Os movimentos populares não conseguem chegar sequer a ser clientes do governo. A imensa massa de jovens desempregados ou subempregados, abundando em favelas e periferias de norte a sul do país, fica como está, até que vire o mês e chegue em suas casas o próximo bolsa família. Entre bolsa e bolsa, é mais fácil o caminho do crime do que o da militância.
Qualquer um que já se ocupou da dura tarefa de mobilizar pessoas, trabalhar para que estas se tornem sujeitos e protagonistas de seu próprio destino, sabe como é dura esta lida. Mais pesada ainda quando há uma profunda confusão de conceitos, confundindo movimento popular, partido político e governo eleito. Mais confuso ainda quando todas as expectativas foram jogadas no exercício de uma parcela do poder real da sociedade, justo aquele ocupado através da eleição ao Poder Executivo.
Some-se a isso algo que mais ao sul chamamos de “lavar o discurso”, como erva lavada de um mate já frio e sem graça. Lavando o discurso e profissionalizando a militância, se acalmam os ânimos. Um processo desta envergadura é fruto de ao menos uma década, e não meses ou mesmo anos de governo. O resultado é visível: quanto menor a mobilização popular, maior será o assistencialismo. O ceticismo para com a classe política cresce de um lado, mas não encontra eco na pouco praticada independência de classe. Ausente esta última, a lógica eleitoral impera, aumentando assim a autonomia da mesma classe política, em quem ninguém confia mais.
Neste breve artigo, não queremos aumentar o lugar comum do “ninguém presta” e “nada podemos fazer”. É justo o oposto. A primeira medida para sair da crise política, onde se encontra a militância dos movimentos populares deste país, é reconhecer a crise e ver as causas e conseqüências diretas da mesma. Reconhecido o problema, identificando sua questão central, entram em ação a coragem e a lucidez de cortar na própria carne e fazer o que tem de ser feito. Os leitores me perdoem a extrema franqueza, mas faço análise para o campo ao qual pertenço.
Em uma comunidade tradicional, regida por elementos federalistas, os chefes e conselheiros tinham o poder e o dom da palavra. Ainda assim, a qualquer momento poderiam ter o dever de mandar, retirado pela maioria que o outorgou. Considerando que vivemos em uma sociedade complexa, injusta e multifacetada, uma reflexão é mais que urgente: - Como exercer controle direto sobre a classe política?!
Detalhe, hora alguma esta mesma sociedade tradicional desmobiliza suas forças e delega tudo para os mandatários. Justamente o oposto do que ocorre aqui..
Voltando para o Brasil contemporâneo, a realidade nua e crua, conhecida por todos os brasileiros, é a seguinte: - As instituições públicas não funcionam e não atendem a maioria de nosso povo.
Obviamente, este tema não passa nem perto dos “sábios”, que vem discutindo a reforma política ao longo da última década. Em tese, a “democracia” seria o regime do mando do povo. Fica então outra pergunta: - Se o regime tem como base o mando do povo, porque a maioria precisa ficar desmobilizada para que esta democracia funcione?
Considerando o que os sábios, especialistas, atores individuais e consórcios partidários nos dizem com seus próprios atos, e não com seus estudados gestos, a dúvida só aumenta. É óbvio que, aumentando os recursos de mobilização popular, aumentam também a desconfiança com os políticos profissionais, alto tecnocratas e seus aliados das grandes corporações privadas. O modelo democrático praticado no Brasil não agüenta a desconfiança somada com a pressão popular.
É só isso a democracia? Então que democracia é esta?
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat.