As motivações geradoras deste debate hoje, são tão ou mais casuísticas, do que àquelas impulsionadas por Fernando Henrique Cardoso e seu então ministro das Comunicações, Sérgio Motta, o Serjão.
Como é sabido por todos, Serjão foi atrás dos votos necessários para a emenda constitucional que permitiria a reeleição. E foi com vontade, “por todos os meios necessários”. Não vamos entrar aqui no mérito das denúncias nem tampouco nas investigações posteriores. Matérias de tipo denúncia são interessantíssimas, mas não cabem no modelo analítico proposto. O foco da discussão são as fórmulas políticas e a crença de muitos nestas, como tábua de salvação para a democracia brasileira.
Embora o público externo não o perceba, muito em função do círculo viciado e vicioso que é a vida acadêmica brasileira, o debate em torno de formas, fórmulas e conteúdo democrático é vital na ciência política brasileira e latino-americana. O fosso termina por gerar enfoques muito distantes entre institucionalistas e culturalistas.
Embora estejamos mais próximos do segundo grupo, vemos esta disputa muitas vezes como cega e esterilizadora do debate. Sempre cabe perguntar:
- Afinal, procedimentos políticos servem para que?!
Se trouxermos o debate para o campo das artes, da comunicação e da estética, veremos que há uma falsa contradição entre forma e conteúdo. Se diferente fosse, certamente as cidades, as estruturas arquitetônicas, o design e também as fórmulas de funcionamento político-social dos antigos países stalinistas seriam lugares e sociedades agradáveis para se viver. E, como todos sabemos, seja por relato direto de ex-exilados ou através dos próprios olhos, estas sociedades não eram nada convidativas.
O mesmo vale para os partidos políticos, sejam estes eleitorais ou mais radicalizados. Vejamos um exemplo genérico já comum e corrente nas esquerdas mais extremas da América Latina. Por melhor intenção que tenha uma organização, ausente da estrutura interna adequada para os objetivos propostos por ela, o mau funcionamento só gerará mais projetos falidos e diversas frustrações.
Mas, uma vez contando com elementos fundamentais, a trajetória “presumidamente” fracassada pode alterar mais uma tragédia anunciada. Contando com ao menos parte das demandas político-técnicas, contatos reais com as necessidades populares, capacidade de autocrítica e reformulação interna e um número mínimo de quadros médios, a mesma organização quase falida pode se recompor e render frutos conforme seus objetivos estratégicos.
Entramos no debate político através deste exemplo justo por acreditar que há regras universais na política. Na ausência de propósitos comuns, pactos substantivos e objetivos gerais que alcancem o conjunto da população, não há instituição democrática que agüente.
Ou esta termina por resignar-se em ser apenas um procedimento, como um pastel de vento sem recheio e com sabor amargo, onde as decisões fundamentais não entram no jogo e não contam no cálculo dos agentes coletivos. Ou então, quando o conjunto do povo não se vê contemplado através da vontade e urgências de suas maiorias, não haverá urna que sustente um projeto de nação inacabada indo à falência múltipla de seus órgãos vitais.
O recente exemplo boliviano nos materializa a hipótese. Caso o governo de Morales e Linera não comece a executar seu programa de nacionalização em 90 dias, um conjunto de entidades populares como a COB, COR, Federação Camponesa, Coordenação em defesa do Gás, Tinku, entre outras, irá emparedar o governo eleito por eles mesmos.
O mesmo vale para a elite de Santa Cruz de la Sierra e sua proposta de autonomia política. Mesmo sendo uma questão central, um problema de fundo presente na realidade boliviana desde sua formação, esta questão jamais passaria pela cabeça dos cambas em outras eras.
Apenas para exemplificar, tendo todos seus interesses atendidos, a oligarquia cruceña não chiava nem tampouco sentia-se ameaçada durantes os dois governos de Banzer. Muito pelo contrário, defendiam seu governo, assim como a fórmula fiscal unitária e centralizadora.
Formatos de organização política e arranjos institucionais importam sim, e muito. Mas, as regras e procedimentos são incapazes de por si próprias, alterarem a estrutura de uma sociedade. Este é o problema de fundo e que no Brasil pactamos por não discutir.
Com quatro ou cinco anos de mandato tendo ou não direito a reeleição, teremos as mesmas relações fisiológicas, clientelísticas e corruptas emanadas da classe política brasileira. Esta sociedade estruturalmente injusta continuará vivendo a contradição de ter o mundo legal para uns e o real para a maioria. E, dentro do mundo legal, ainda seguirá tendo duas abordagens distintas. Para os detentores de parcelas do poder, todos os benefícios e alternativas do direito. Já para as maiorias, os rigores da lei quando o Estado chega e alcança a punir.
Não precisamos de teorias loucas para constatarmos o óbvio. Não por acaso, quanto mais sofisticado costuma ser um discurso, mais longe da obviedade está ele. E, o óbvio e o real, é onde vivem os brasileiros de carne e osso. Para quem pensa que estamos exagerando, basta observar o perfil da população carcerária do Brasil. Quanto a forma de proceder da classe política, a simples leitura deste blog já alcança para demonstrar nosso ponto de vista.
Mas, uma vez que sou contra as análises tão consistentes quanto uma gelatina, penso que devo emitir uma opinião. Quanto ao tempo de mandato, concordo com os cinco anos. No período atual, o primeiro ano é quando se gasta o capital político e tenta-se dominar a máquina estatal. Nos dois anos intermediários, é quando se dá o governo de fato, em geral com uma oposição em pé de guerra e o Congresso sedento por emendas. Já no último ano, gasta-se toda a verba líquida acumulada fruto de arrocho fiscal para aplicar em obras e programas eleitoreiras.
Obviamente, enquanto lança os gastos públicos em cerimoniais, o presidente, governador e prefeito faz campanha com nosso dinheiro.
A reeleição gerou eras ruins, péssimas e tenebrosas em toda a América Latina. Para que nenhum leitor imagine que com este artigo estamos fazendo campanha de forma indireta, não citaremos nomes. Acreditem, não é este o propósito deste artigo.
Defendemos o mandato único para apostar, e é uma “aposta” apenas, na maior organicidade dos partidos políticos. Preferimos ver siglas disputando ou combatendo contra siglas e não nomes contra nomes. O modelo democrático que defendemos é protagonizado por agentes coletivos.
Portanto, somos contrários ao modelo atual, onde prevalece uma democracia de ritos e de cujo caldeirão de bruxarias brotam atores individuais.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat