4ª, 20 de fevereiro de 2008, Vila Setembrina dos Farrapos, Continente de São Sepé, Pátria Grande de la Liga Federal
O verão no Congresso Nacional é marcado pela possibilidade de mais uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Os debates discorrem sobre seu formato, se será mista ou unicameral, e a disputa de seus postos-chave, como presidência e relator. O alvo da vez são os cartões corporativos. Enquanto isso, com pouca difusão e interesse, segue correndo a CPI das Organizações Não-Governamentais (ONGs). O chavão é válido. Tem cheiro de pizza de tapioca no ar.
A essência deste artigo é debater as razões de fundo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Quanto mais banal for sua aplicação, pior será a execução. Vale comparar com os antigos Inquéritos Policiais-Militares (IPMs). Usados para justificar os indícios de corrução nos governos de Jânio Quadros e João Goulart, os IPMs não deram em quase nada. Tiveram “resultado” quando aplicados na repressão política e no controle ideológico. Ainda assim, serviram mais como braço jurídico da tortura e do estado de guerra interna do que como mecanismo de apuração de qualquer tipo de verdade factual.
O mesmo está passando com as investigações parlamentares. Entendo que como instrumento “investigativo”, o formato CPI está falido. O pouco que chega a ser elucidado fica no marco da boataria ou, na língua da arapongagem, nas sombras. Infelizmente, as funções de governo e de Estado são subordinadas aos interesses imediatos, marcados pela cruel regra da sobrevivência e longevidade política. Isto porque a atividade-fim da CPI não é a apuração da verdade factual. É pura e simplesmente a fabricação de fatos políticos através de escândalos televisivos com algum grau de validez jurídica.
Não digo com isso que as CPIs não despertem interesse ou que a cobertura política do país não deva se debruçar sobre o tema. Particularmente nunca reclamo quando a imprensa bate e sim quando a imprensa bate pouco e de forma seletiva. O problema da corrupção não é invenção da grande mídia, mesmo com todo o lacerdismo abundante entre os herdeiros de Paulo Francis na internet brasileira. Tampouco o problema é de falta de instituições reguladoras, controladorias e ouvidorias externas. Afirmo neste artigo aquilo que venho repetindo sistematicamente. No Brasil não faltam instrumentos de controle sobre as finanças públicas ou a máquina do Estado. Falta é controle mesmo. Na ausência de punição, o que cai no descrédito é o estatuto da representação política.
Enquanto Luiz Inácio sobe, as demais instituições da democracia representativa, como o parlamento e as legendas partidárias, caem em um descrédito cada vez maior. Este é um dos motivos do índice de aprovação do ex-sindicalista que afirmou nunca ter sido de esquerda. Os bancos extrapolam os recordes de faturamento, o Bolsa Família chega religiosamente nos lares selecionados e temos a idéia da estabilidade presente. Noção esta reforçada após a crise estadunidense fruto das pirâmides de empréstimos bancários erguidas sobre hipotecas podres - o famoso subprime. Este governo baseia toda a sua idéia de estabilidade na continuação macroeconômica e áreas afins. Quando o Executivo é cobrado, o presidente apela para a linguagem futeboleira. Para ele, fazer oposição, mesmo que por esquerda, vira “coisa de secador”.
O gigante adormecido prefere seguir hibernando na ciranda digital de que ver a constatação do real. Para tornar instável a política nacional, basta investigá-la com ímpetos jacobinos e transparência absoluta. Como isso não interessa a ninguém, menos ainda a tucanos e pefelistas, o que assistimos pela TV é apenas a acumulação primitiva e imediata de capital político volátil. Assim como na jogatina financeira, este capital pode ser aplicado na barganha interna por cargos de 2º e 3º escalão ou nas eleições municipais de outubro próximo. Na “polititica nacional”, as aplicações ainda são da época do overnight.
Sinceramente, para uma visão estruturante de país e de nação, pouco ou nada importa se a roubalheira começou neste ou naquele governo. O problema é o uso perdulário das finanças da nação e não a sobrevivência política de um mandatário. No quesito uso discricionário dos cartões corporativos, uma boa solução seria a transparência total dos gastos da Presidência e da Vice-Presidência. Para não gerar melindres, que se quebre o sigilo bancário de todos os ministros e ex-ministros de Lula e FHC. E que o Supremo decida pela abertura ampla, geral e irrestrita dos gastos de governo. Mas, como diz a música cantada por Clementina de Jesus, “sonho meu, sonho meu”.
Na posição de analista, tenho a opinião de que houve gasto perdulário com os cartões corporativos desde sua inauguração. Entendo que deve haver devassa fiscal e bancária e punição para todos os gastadores do dinheiro coletivo. Doa a quem doer e não importam as conseqüências. O Brasil não pode conviver com uma versão pós-moderna de Ademar de Barros. Se o antigo governador de São Paulo tinha como lema o “rouba, mas faz”, ao que parece, hoje a idéia-guia é “usa e abusa mas assegura a estabilidade”. Como afirmei antes, para desestabilizar a política nacional, basta investigá-la. Infelizmente, é por este motivo que a CPI ou CPMI dos cartões corporativos vai acabar na tapiocaria.
Este artigo foi originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat.