Podemos afirmar que a derrota para Collor em 1989, levou a uma profunda reorganização e reposicionamento de quadros chave (como Genoíno, Zé Dirceu e cia.) e suas respectivas correntes internas. Na Convenção Nacional de 1990, várias decisões e rachas posicionam o PT mais à direita. Ocorreram alguns, mas um representou a quebra da linha histórica do partido. A Articulação, que vinha diretamente das lutas de massa dos anos 70, na época ainda estava unitária e respondia por 60% da militância. Justo ela, a corrente original, racha em duas: na Articulação de Esquerda e na Articulação Unidade na Luta (de direita). Vêm desta direita da Articulação o maior volume de militantes e quadros do Campo Majoritário, hoje controlador dos cargos da Executiva Nacional. A mídia cobriu o posicionamento das maiores correntes da esquerda, a Democracia Socialista (DS), a Ação Popular Socialista (APS) e a Articulação de Esquerda (AE). Não foi coberto o fato de que os quadros (nacionais e médios) dos movimentos sociais que ainda tem o PT como referência, cada vez mais não se vêem representados sequer pela esquerda do partido.
Passa desapercebido aos olhos dos analistas políticos um processo iniciado em 1997. Surge neste ano um espaço de debate e articulação chamado Consulta Popular, e que hoje já fala discretamente na formação de uma outra idéia de partido, uma organização política sem fins eleitorais. Adotaram para isso o conceito de instrumento político. É a mesma denominação original do MAS boliviano de Evo Morales, cujo nome e idéia inicial era ser o "Instrumento Político Autêntico dos Povos Originários da Bolívia". Isto, antes do MAS ter a possibilidade de ser governo eleito na Bolívia.
Neste ano de 2005, passaram a se chamar Movimento Consulta Popular. Planejam ir crescendo na medida que ganhem volume e visibilidade em diversos setores do movimento popular. Poderia apenas se tratar de mais uma corrente da esquerda do país, mas não é. Isto porque quem convoca e garante a existência do Consulta é o Movimento Sem Terra (MST) através de grande parte de seus quadros médios e nacionais. A campanha dos plebiscitos contra o pagamento da dívida externa (em 2000) e contra a ALCA (em 2002) foram impulsionados por eles. Neste momento, realizam um trabalho de base, sob o guarda-chuva político-social da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), chamado "Mutirão pelo Brasil que queremos". É uma campanha simples, com aplicação de questionários e conversas em comunidades pobres. Nestas atividades, se fala abertamente de temas de fundo. Os eixos são a falência desta forma de representação política, a defesa de uma outra organização de Estado e contra a política econômica subserviente do governo que o próprio Consulta e o MST apóiam "criticamente".
O dilema deste setor mais à esquerda é justamente este "apoio crítico". Há setores inteiros do MST que não querem nem ouvir falar mais em eleição, muito menos em governo de coalizão. Simultaneamente, este movimento encabeça ao lado da CUT (hoje no Ministério do Trabalho) a "Carta ao Povo Brasileiro", convocando as forças sociais a apoiarem ao governo Lula e combaterem a sua política econômica. Reproduzem uma louca teoria de que "o governo está em disputa" enquanto existe um "cerco ao presidente". Ambas idéias já foram aplicadas pelos Montoneros para justificarem seu "apoio crítico" ao 2º governo de Perón (1973-1974). Com a Argentina em quase guerra civil, Perón os expulsou do governo e do Partido Justicialista. Dois anos depois veio um golpe militar proto-fascista. Embora longe desta conjuntura, o Consulta, o MST e seus militantes vivem este mesmo dilema. Uma possibilidade é partirem para a disputa interna no PT dominado pelo Campo Majoritário (ala direita). Para isto terão de se aliar com as correntes da esquerda petista (DS, AE e APS) o que hoje a maioria de sua militância quer é distância. Ou então abandonam de vez a disputa eleitoral e buscam um modelo de luta de massas aos moldes bolivianos.
Este debate, longe de parecer algum delírio de extrema-esquerda, é a conversa corrente entre os mais de 5.000 militantes do MST, que somando famílias acampadas e assentadas, são mais de 2 milhões de pessoas. Sem contar os setores da Igreja Católica que hoje discutem acaloradamente duas opções. Podem deixar o PT e buscar uma via mais radicalizada, como fez a mesma Teologia da Libertação na América Central e Andina. Ou desistem de fazer política social e se concentram apenas na disputa por fiéis. Um observador atento pode acompanhar este dilema nas edições semanais do jornal Brasil de Fato e nos artigos mensais de João Pedro Stédile na revista Caros Amigos. A crise política antecipou a corrida eleitoral e também as crises no interior da própria esquerda. Neste momento, o setor que tem a hegemonia no movimento popular brasileiro não sabe o que fazer. Se tenta salvar o governo Lula e disputa o PT por dentro, ou vai para a luta direta contra a política econômica e a própria forma de governar o país.
Originalmente publicado no Blog de Ricardo Noblat