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Debatendo um modelo de organização política como força motriz para o processo de radicalização democrática – 2

sacoyvanzetti_colectivo

A espinha dorsal de qualquer processo de transformação é aumentar a organicidade das entidades de base, preenchendo o vácuo do senso comum com uma perspectiva de horizonte e metas de longo prazo tornadas palpáveis através de conquistas concretas e vitórias relevantes sobre a direita

18 de março de 2010, da Vila Setembrina de um Rio Grande antes platense do que chauvinista e vende-pátria, Bruno Lima Rocha

Neste texto, dou seqüência ao esforço de difusão científica, retomando o debate a respeito de um modelo de organização política que não tenha como atividade-meio a representação e a intermediação profissional. Como no artigo anterior, o mesmo consta de bibliografia ao final para melhor situar o leitor no debate acadêmico e de rigor.

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O ambiente macro e uma generalização palpável de democracia

Entendo que é fundamental, antes de seguir na tipificação do partido político, entrar no tema do ambiente macro onde o mesmo está inserido. Na hipótese de trabalho aqui argumentada, a organização política não é necessariamente de tipo partido competidor, partido eleitoral. E, não se trata necessariamente de fortalecer ou não a saída de tipo insurgente, mas de aprofundar a capacidade de avanço democrático no interior das lutas e disputas pela ampliação de direitos coletivos e individuais. Por suposto que o modelo advoga uma base societária ditributivista e por raciocínio lógico, a mesma é impossível sem disputa em distintos níveis. Mas, antes de entrar nesse mérito, faz-se necessário o debate a respeito da democracia.

Tal como a maioria dos cientistas políticos, entendo que não há uma teoria unitária de democracia e que a mesma está em disputa. Também compreendo como válida a afirmação de que a vida em sociedade através do exercício de liberdade de expressão, de reunião, de organização e de manifestação são os pré-requisitos básicos para uma sociedade democrática. Embora sejam essenciais, tais direitos não são fins em si mesmos. E, a garantia da estabilidade destes direitos não pode existir excluindo a dimensão social, distributiva, jurídica e econômica da democracia. Assim, não compreendo como “democrática” uma sociedade plena de direitos, mas onde as maiorias não influem de forma direta sobre e a respeito das decisões fundamentais.

Abordando este tema através da unidade de análise partidos políticos, nos encontramos com um debate de fundo. O mesmo trata das regras e condutas pelas quais o trabalho se posiciona. Para isso, necessita-se debater qual o conceito de democracia estamos adotando? Para Baquero 2000 (p.17), “[...] apesar de todas as categorizações conceituais de democracia que se encontram na ciência política, dois tipos de orientação tem se sobressaído. Por um lado a democracia liberal e, por outro, a democracia social.” Para Baquero (id), embora seja fruto de polêmica, divergências, debates e embates na bibliografia no interior do campo, ambas as concepções tem como pontos comuns de convergência: “soberania popular, direitos humanos, igualdade de oportunidades e livre expressão.”

Faço acordo com esta definição generalizável de democracia e vejo que no avanço da democracia liberal, pois à medida que os pressupostos neoliberais ampliam sua gravitação e o peso relativo, é onde a soberania popular perde espaço para os agentes que operam na lógica de mercado, e por conseqüência vem sendo retirado conteúdo dos regimes democráticos. Simultaneamente devido a perda de regulação social e a concomitante estabilidade procedimental do regime político, outras formas de expressão políticas vêm ganhando terreno.

A quebra da exclusividade da representação política e o problema de modelagem

Há uma extensa bibliografia abordando o tema dos movimentos populares, dos “novos movimentos” e da relação destes com os partidos políticos. Ao mesmo tempo, segundo Offe (1992, p. 164) “há um aumento de ideologias e atitudes ‘participativas’ que levam as pessoas a se servirem cada vez mais do repertório de direitos democráticos existentes”. Esta característica agrava o distanciamento entre os partidos constituídos, operando dentro do jogo eleitoral e a partir dos procedimentos formais e evitando o conflito para o aumento destes mesmos direitos. Ainda para Offe (id) outros fatores que fortalecem este hiato de “representação formal”, seriam “o uso crescente de formas não formais de participação política” (obs: como as já por mim retratadas, as que fortalecem as modalidades de protesto através de mobilização e geração de fatos políticos); e “as exigências e conflitos políticos de temas que conseguem se ‘politizar’”.

Entendo que isto se dá, porque fruto da correlação de forças, há a capacidade de um setor da sociedade, sujeito social organizado [através de um(s) agente(s) dotado deste propósito] ou fração de classe, de conseguir tornar politicamente aceitáveis temas que em uma etapa anterior eram vistos como de “ordem moral, privada ou confessional”. Tal é o caso, dentre vários, dos direitos reprodutivos (questão do aborto), do assédio moral (humanização do trabalho), dos temas da sexualidade (homossexualismos como disparadores de outras versões de gêneros), étnico-culturais (combatendo idéias arraigadas de supremacia e da própria concepção de raça) e das causas vinculadas direta ou indiretamente à ecologia (passando por demandas ambientalistas, preservacionistas, indigenistas, camponesas, dentre outras tantas).

É neste cenário de quebra do monopólio da representação, fazendo a crítica da intermediação profissional e sendo obrigado a operar num terreno de identidades fragmentadas e multiplicadas que está sendo proposta e desenvolvida – aqui e fruto de tese de doutoramento na área - a modelagem de “partido”. Isto é, por definição aqui empregada, a organização política específica, neste caso, de matriz e orientação libertária. O enfoque organizativo desta série que debate um modelo de organização política é visto como um foco de debates, um eixo de análise. Não se vê como único, mas compreende que as formas de funcionamento refletem o projeto político em si, na forma viva por estar sendo exposto e reproduzido em meio das relações sociais e em cenários cada vez mais complexos.

Sua modelagem se dá através da análise e proposição organizativa da organização política, isto porque “são os conceitos essenciais a ser desenvolvidos” (Panebianko, 1982, p.17) para analisar o partido político. Para Panebianko (p.15), “naturalmente as organizações, e por tanto, também os partidos, tem um conjunto de características que obedecem a imperativos técnicos: exigências derivadas da divisão do trabalho, de coordenação entre distintos órgãos, da necessidade de desenvolver certa especialização em suas relações com o entorno, dentre outras exigências.” (obs: o grifo é meu)

O estudo da organização política e a carência na ciência política atual

Este trabalho apresenta a teoria de médio alcance onde o recipiente de longo prazo para a acumulação de forças na interdependência é a organização política e as instituições sociais (com perfil de movimentos populares), adentro dos quais esta instituição política tem penetração e está inserida. Para tanto, utilizaremos alguns dos conceitos recorrentes na literatura contemporânea, recortando as ferramentas de utilidade explicativa independente de escola ou matriz teórica.

No tema específico desta série, o objeto de estudo é o treinamento de quadros de organizações políticas com intenções de ruptura. Este é, em nosso ver, secundário na literatura política contemporânea. Em especial se tratando dos autores e escolas cujas origens estão nos países centrais e consagradas nas universidades de países periféricos como o Brasil. Esta falta de importância não é por acaso. Cabe a ciência social dos países centrais também formular e servir de laboratório para suas políticas externas, tratando tanto de ações de Estado, como as de tipo mais comum, inserindo os saberes acadêmicos na divisão internacional do trabalho (Santos, 2002). Infelizmente, boa parte dos centros de estudos na área de política (e suas derivações) da maior parte das universidades brasileiras, aparentemente termina por se contentar em reproduzir o conhecimento enquanto representação, difundindo as premissas que nos impedem de pensar caminhos autônomos e independentes para os países latino-americanos.

Entendo ser interessante apontar aqui a definição de Baquero (2006, in Baquero & Cremonese, p. 47) a respeito deste fenômeno, algumas de suas conseqüências e as possíveis contra medidas aplicadas pelos cientistas políticos latino-americanos:

No caso da América Latina, a “dependência” de paradigmas externos tem produzido uma estagnação no conhecimento, bem como uma paralisia da criatividade intelectual no sentido de propor alternativas para pensar nossa história a partir de construtos autóctones.”

É justo no sentido da constatação e da crítica acima que se dedica esta Tese como um todo, e em se tratando de modelos de partidos, este capítulo em especial. A ponderação que segue, conflui com a reflexão que faço no parágrafo além da citação. Vejamos:

Isso não significa negligenciar ou não analisar as condições contextuais de países com culturas e economias diferentes das nossas, sobre as quais foram elaboradas teorias. Pelo contrário, essas experiências devem ser utilizadas para identificar as especificidades dos países latino-americanos, porém devem ser examinadas como evidência contrafactual. Esta prática, penso eu, poderia ajudar a identificar as áreas nas quais o cientista político poderia atuar, indo além do mero diagnóstico e descrição normativa, pois naturalizar acriticamente as teorias internacionais em nada contribui para vislumbrar estratégias emancipadoras de nossa condição de meros reprodutores de teorias
. (Baquero 2006, p. 47)

Cabe aqui uma observação minha. Entendo que são teorias internacionais por sua força e gravitação através de origem, ou seja, dos países de capitalismo central. Não são “teorias internacionais” por se aplicarem mundialmente ou por terem conceitos “naturalmente” internacionalizáveis. No caso da América Latina, tal postura atinge não somente a ciência política stricto sensu, bem como o próprio fazer político e seus tipos ideais advogados e defendidos como normativamente positivos.

Voltando ao desenvolvimento argumentativo próprio, ressalto ser a intenção aqui o estabelecimento de um diálogo e de levar ao debate de fundo, incluindo as premissas, de alguns autores que apresentamos ao longo do texto. Para manter certa coerência e o tom da polêmica necessário, debatemos utilizando algumas ferramentas necessárias que são apresentadas (genericamente) no próprio treinamento de pós-graduandos em ciência política. Argumentamos ao longo das próximas páginas (desta série, neste e noutros artigos) que a capacidade de um analista está em utilizar os conceitos como ferramentas teóricas, capazes de explicar, exemplificar e universalizar algumas categorias, transitando entre teorias sem abrir mão de seus pressupostos. Cabe repetir a ressalva de que este espaço tem uma abordagem limitada, portanto estamos elegendo categorias básicas para o treinamento do quadro deste tipo de partido.

A “chave do tamanho” é a polifuncionalidade aplicada em cada círculo concêntrico

Só é possível desenvolver o funcionamento do agente de ruptura da ordem no longo prazo, o partido político com esta intencionalidade, se observarmos o elemento fundamental para seu funcionamento. Isto é, se estudarmos os quadros do partido, ou de acordo com a tradição especifista, os militantes plenos, aptos a delegar e ser delegados para distintas funções e tarefas, com bom domínio político e técnico das atividades levadas pela organização ao qual este pertence.

Estamos nos aproximando de uma idéia ampliada de “quadro”, cujo termo infelizmente remete diretamente a tradição de partido tipo bolchevique, ou leninista. No caso aqui tratado, este não é apenas o membro de uma organização com funções de responsabilidade ou no manejo de aparelho burocrático. Mas sim e necessariamente o indivíduo que reproduz e leva adiante as distintas tarefas elegidas por uma organização política como fundamentais para sua missão institucional. Assim, entendemos o “quadro de partido” com intenções de ruptura, como um indivíduo com bom nível de treinamento para levar a cabo a polifuncionalidade, assumindo distintas tarefas de acordo com as bases institucionais a que pertence.

Por polifuncionalidade, entendemos que este “quadro” deva ser capacitado (ir se capacitando) para atender as distintas demandas apresentadas, tanto na interna da instituição como nas arenas onde esta organização atua. O manejo de tempos distintos em arenas diferentes é uma abordagem necessária para este nível de responsabilidade. Em termos teóricos, isto significa que a arena eleita não é necessariamente a arena eleitoral e a competição por mandato através de voto. Historicamente, a maior parte dos partidos/organizações que se propuseram a este objetivo finalista ou não atuavam nesta arena, ou a tinham completamente subordinada aos outros tempos (Mechoso 2002, p.118).
Voltando ao tema da preparação, o exercício destas responsabilidades implica um determinado tipo de treinamento bem diferente do treinamento de elites políticas de tipo oligárquicas, empresariais ou tecno-burocráticas. Não surpreende, portanto, que o tema seja pouco abordado pela literatura hoje produzida na área. Identificamos no treinamento político e técnico o elemento central da reprodução e desenvolvimento institucional destas organizações políticas.


O conceito-chave para a análise: círculos concêntricos

Concluindo a apresentação do tema, a modelagem desta organização passa por uma conceituação inicial. O conceito fundamental da organização política libertária são os círculos concêntricos. Este conceito é simples e implica separar as formas de atuação e os níveis de compromisso. O político específico corresponde ao ideológico e é para os militantes politicamente organizados. Como esta organização não é de massas, portanto não tem filiação aberta. Compreende-se que o nível político-social e social devem ser massivos e abertos a todos os militantes populares. O político-social é para um setor afim, que compartilhe um estilo de trabalho, mas não necessariamente adepto no sentido ideológico-doutrinário (Lima Rocha, 2003).

Já o social propriamente dito é para o conjunto das classes oprimidas, para a noção generalizável de povo como um todo. Corresponde às instâncias gerais da luta de classes e popular, proporcionando a organização do tecido social-produtivo, que é o pilar e o terreno do projeto de Poder Popular, através do processo de Radicalização Democrática. Tornar capilar a sua influência organizada, por estes círculos e ao mesmo tempo estabelecer outra forma de relação não hierárquica, fugindo do molde de tipo correia de transmissão, é a chave para equacionar o hiato democrático entre a decisão de uma minoria política e o setor popular socialmente organizado (Cartolini, 1997).


Este artigo foi originalmente publicado no portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)


Bibliografia referenciada

BAQUERO, Marcello. A vulnerabilidade dos partidos políticos e a crise da democracia na América Latina. Porto Alegre, Ed.UFRGS, 2000.

BAQUERO, Marcello e CREMONESE, Dejalma (orgs.) Capital Social, Teoria e Prática. Ijuí, Editora Unijuí, 2006.

CARTOLINI, Nestor Cerpa. Entrevista al comandante del MRTA, Montevidéu, Editorial Recortes, 1997.

LIMA ROCHA, Bruno. O grampo do BNDES: quando o complemento da ABIN é a mídia oficiosa. Rio de Janeiro, Sotese, 2003.

MECHOSO, Juan Carlos. Acción Directa anarquista: una historia de FAU, tomo III, Los primeros años 1956-1964. Montevidéu, Editorial Recortes, 2002.

OFFE, Claus. Partidos Políticos y Nuevos Movimientos Sociales. Madrid, Editorial Sistema, 1992.

PANEBIANKO, Angelo. Modelos de Partido. Madrid, Alianza Editorial, 1982.

SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a Democracia, os caminhos da democracia participativa. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002.






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