A proposta aqui é uma leitura (ou mais uma releitura), onde modestamente faço um aporte para a compreensão dos efeitos no pensamento igualitário brasileiro após a conciliação simbólica do maior partido de “esquerda” da América Latina (o PT) junto aos arenistas sobreviventes, políticos oligarcas que não apenas apoiaram a ditadura, mas como dela fizeram parte ativa.
Este analista já escrevera muito a respeito e quase que falta fôlego para ir além. Assim, para não ficarmos nos repetindo em fatos e momentos da história recente e pregressa do Brasil, começo enumerando alguns tópicos na forma de possibilidades:
1 - Um efeito nefasto que resulta no desaguar da ira e protestos de junho de 2013 foi a não-reivindicação dos mártires da guerrilha brasileira contra a ditadura e pelo socialismo. Em todos os países da América Latina os mortos e desaparecidos políticos são uma bandeira permanente, sendo um fator unitário e agregador do pensamento igualitário.
2 - Parte deste abandono resulta na falsa dicotomia entre luta popular e massiva e confronto com a ditadura. O divisor de águas para o lançamento das agrupações guerrilheiras no Brasil entra como resposta a falta de resistência do governo João Goulart e o “reboquismo” do Partido Comunista Brasileiro, à época – auge da Guerra Fria e rompimento Sino-Soviético - hegemônico no Brasil.
Ao não esquematizar uma resistência e parecer mais potente do que realmente era, o antigo Partidão faz o desserviço de desmoralizar suas bases - ao não resistir e sequer ter um esquema de saída antigolpe – e ficar a reboque de um governo titubeante que tampouco sabia – ou se preparou - como resistir contra a reação da direita político-midiática-militar. A guerrilha chegou tarde e isolada, não teve tempo de desenvolver-se. Caso a resistência ao golpe resultasse em insurgência e teríamos um conflito prolongado e com chances de vitória do povo. Não foi o que ocorreu.
3 - Daí se compreende a autocrítica dilacerante de ex-guerrilheiros e a opção por vias equivocadas como a Abertura Ampla, Geral e Irrestrita. Também daí é compreensível a vocação eleitoral e o pânico de quebrar as regras do jogo, ultrapassando os níveis “toleráveis” de confrontação. Houvesse uma sobrevida das agrupações guerrilheiras durante o Ato Institucional número 5 (AI-5) e o engajamento destas como um apoio e suporte do movimento popular que emerge no final do governo Geisel e teríamos outra leitura do país.
Definitivamente há pouca ou nenhuma chance de aprofundar ideias de câmbio social profundo sem reivindicar os que caíram nesta mesma caminhada. Este abandono é a ante sala da traição de causa, o que veio a ocorrer à medida que a via eleitoral apontava-se como prioritária.
4 - O fato do PT nascer numa mescla de abertura democrática e ascensão do movimento popular o confere legitimidade, que vem a ser reforçada quando esta confluência de correntes também faz a crítica ao Leste Europeu e os partidos satélites soviéticos. Este fator de legitimação não confere com a linha cada vez mais conciliadora e que pouco a pouco, ao invés de transformar o aparelho de Estado, é modificado pela convivência com as outras forças política que na União pululam há décadas.
5 - Ainda nesta legitimação, o stalinismo tão criticado foi revivido nas práticas internas, onde o pior do estilo pragmático de Lênin soma-se com uma leitura rasa de hegemonia gramsciana e resulta no exercício do poder central para melhorar as condições de vida da população, abandonando qualquer ideia de cambio social profundo e mimetizando-se com o estilo de vida dos adversários e inimigos anteriores. É como uma desculpa histórica: melhoramos a vida de milhões, portanto podemos fazer o que considerarmos necessário para isso. “Um passo para frente e dois para trás!”, torna-se o lema de fato do pragmatismo que transforma ex-militantes e dirigentes históricos em caricatura grotesca de si mesmos.
6 - Não se pode ser injusto e afirmar que apenas o PT sofreu este mimetismo. A legenda de Lula e José Dirceu seguiu os passos do cadafalso das anteriores, tanto o trabalhismo (PDT) como o stalinismo revivido (PC do B), como as oposições mais legalistas (MDB e PSB) fizeram esta mesma caminhada trágica. Nunca custa lembrar que a Constituição Federal de 1988, hoje bastião restante da democracia representativa, teve assinatura recusada pela sigla de José Dirceu por considerá-la muito marcada pelo Centrão. Hoje este grupo de conservadores e fisiológicos também atende pela alcunha de Blocão e é base de um governo presidido por uma ex-combatente destas mesmas práticas.
7 - A década perdida de ’80, cujo ápice político foi a derrota de Lula para Collor com toda a operação midiática conjunta, apontava esta tensão. Na época, Luiz Inácio disputava com Brizola, sendo que o ex-caudilho já era visto como de estilo ultrapassado e profundamente conciliador com oligarcas e amplos setores da direita. Uma década e meia depois e Lula, já no governo, faz movimentos iguais ou piores. Em 1989, Fernando Collor de Mello era taxado de filhote da ditadura (o que é fato incontestável); no início do século XXI, passa a ocupar a volátil base de governo, assim como seu cão de guarda, Roberto Jefferson.
8 - Tudo culmina no aceite do conceito de presidencialismo de coalizão e a chamada dos arenistas para governar em conjunto. Escrevi laudas sem fim sobre o tema, mas não canso de retomá-lo. Para quem vem do final século passado e iniciou sua vida política na década de ’80, o paradigma em São Paulo – e por isso reverberava para todo o país – era a dicotomia entre o homem da ditadura, Paulo Salim Maluf, e o líder autêntico (embora não radicalizado), Luiz Inácio da Silva.
Quando o PP (antes com outras siglas) vai para o governo de Lula e após, este troca o ministério das Cidades no auge da crise do Mensalão, substituindo o impoluto ex-governador do Rio Grande Olívio Dutra por Márcio Fortes – tecnocrata com carreira na ditadura – ratifica o absurdo de ter uma disputa dentro do governo entre José Dirceu e Roberto Jefferson.
9 - Se em São Paulo o malufismo traduzia o pior da ditadura em nível estadual, o mesmo se repetia em escala quando o ex-presidente da ARENA, José Ribamar (vulgo Sarney), termina sendo vice de Tancredo Neves e toma posse sem o titular chegar a assumir. O PT tornou-se a expressão política das lutas populares durante este governo pífio, onde o PMDB ganhou quase todos os governos estaduais do país e exerceu o Poder Executivo de braços dados com os ex-adversários políticos da ARENA (então rachados no PFL) e deitado no colo dos militares. Governar com o apoio de Sarney e sua trupe é tão absurdo para o PT nacional quanto em São Paulo, aliar-se com Paulo Maluf e outros asseclas da ditadura.
10 - Não espanta assim a tímida (envergonhada) política de reconhecimento dos direitos humanos, do flagelo da ditadura e os crimes de lesa humanidade cometidos durante este nefasto regime. O Brasil pune menos que o Chile, estando o país do cobre ainda sob Constituição herdada de Pinochet. A (ex)-esquerda brasileira – a ala hegemônica – joga a toalha, ruma ao centro da política e torna-se uma versão tropical da social-democracia européia.
Ora, os social-democratas são o braço direito do eurocomunismo de pós-Guerra, quando os satélites do Kremlin eram o esteio da democracia representativa na Europa. Na América Latina, estes satélites são os maiores adversários da luta direta e o PT ergue-se como o reformismo radical em oposição a este controle centralizado.
O exercício do poder no Estado burguês resulta no rumo à direita, sem volta e inequívoco. A reivindicação dos anos de chumbo quando ocorre, é por puro oportunismo, servindo apenas para legitimar a imagem do sinistro José Dirceu e companhia, Genoino junto, enterrando na lama a memória dos que caíram combatendo o regime cujo braço político hoje é aliado de seu governo.
11 - Daí termos uma ex-guerrilheira no poder e isto não vindo a implicar em nenhuma diferença qualitativa em relação à memória da ditadura e a luta pelos direitos humanos. Infelizmente, os mortos e caídos foram re-enterrados quando da Anistia e depois na aceitação de alianças com os ex-inimigos políticos.
Esta longa reflexão em tópicos nos aponta alguns caminhos. Um deles, passa pelo repúdio ao governo de coalizão e a aliança com qualquer tipo de partido à direita. Definitivamente o PT é hoje um partido fundamental para a governabilidade e a acumulação no Brasil. Tem políticas sociais distributivas, mas é só. É pífio em todos os aspectos de uma política por esquerda e cada vez mais tem menos democracia interna (seu diferencial em relação aos partidos anteriores), funcionando em torno de caciques e do líder carismático.
Outro caminho passa por entender que necessitamos de um projeto universal, onde a herança do colonialismo seja repudiada junto da estrutura de segurança pública (herdeira direta da ditadura) e para isto é necessário reinventar todo o discurso. Uma plataforma popular pode ter como pilar ao menos reivindicar os caídos, em especial os menos reivindicados, tais como o guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão do Araguaia) e o operário Santo Dias da Silva.
Ainda que com orientações políticas equivocadas, estes militantes simbolizam o melhor do país, popular, universal e afro-centrado, tal como uma sociedade de quilombo. O engenheiro baiano e capoeirista Carlos Marighella, segue o mesmo caminho, onde a militância se encontra com a cultura popular de matriz africana, fazendo o sincretismo entre teoria e práxis política, ainda que tardia. Estes mártires sobrepujam suas legendas e antigos companheiros hoje em posição duvidosa.
O terceiro passo, enfim, seria um projeto político onde abertamente se discuta a democracia direta e participativa em consonância com um modo de produção igualitário e distributivista sobre uma base de recursos de poder e circulação equilibrada. Novamente o povo brasileiro fornece a saída, com a obra magistral de Milton Almeida dos Santos – nosso geógrafo por excelência - e sua observação sobre a economia política do território, quando vemos a distribuição espacial desigual e a urgente necessidade de fazermos o inverso.
Talvez a perseguição do PT contra a esquerda restante aponte o caminho que a via eleitoral cega e impede a realização. O caminho também passa pela compreensão que acima da lei está o direito e os direitos coletivos só vem com luta popular e não medidas do Executivo. A melhoria das condições materiais de vida sem uma reivindicação direta cria reservas eleitorais e desmobilização.
Após dez anos de pasmaceira parece que o aniversário do Golpe de 1º de abril opera como despertador histórico. Quem se alia com os assassinos do povo brasileiro é cúmplice destas mortes. O mesmo aparelho repressivo que combateu a guerrilha estrutura as PMs do país e promove o genocídio contínuo contra a maioria negra e a descendência indígena.
Se dentro de cada camburão tem um pouco de navio negreiro, a máquina de tortura da ditadura foi cria também das delegacias e repartições policiais, recrutando seus piores elementos para combater a militância. Contra isso não há tolerância. Memória, Verdade e Justiça é trazer Osvaldão (foto 1), Carlos Marighella (foto 2) Santo Dias (foto 3) Virgílio Gomes da Silva (foto 4), Zequinha, Iara, Eleniras (Elenira Resende, foto 5) e centenas de outros e outras caídas e mártires para a rua.
Todos os países da América Latina combateram o neoliberalismo das décadas de ’80 e ’90 do século XX com a bandeira dos mortos e desaparecidos políticos como estandarte unitário das esquerdas.
É ora do Brasil reinventar a sua militância, dessa vez não eurocêntrica e de base popular e libertária. Simultaneamente, é urgente romper com o pior da conciliação de classe, dos acordos da Abertura de Geisel e Golbery e do governo de coalizão com Maluf, Sarney e companhia.
Que junho de 2013 e março de 2014 sejam o período de maturação desta consciência em gestação. Ainda dá tempo, para além das urnas e com a democracia de base como substrato da luta direta, sempre dará tempo.
Artigo publicado originalmente no site Afropress.