Em um programa televisivo que participei com um representante da OAB, me dei conta de que a idéia de classe política estava “naturalizada” em minha própria formulação. Por mais que eu fizesse críticas, este conceito não escapava nem de meu discurso e nem das formulações. Num determinado momento do programa, afirmei ser o comportamento político dos congressistas como os de uma classe, com habitus, expectativa, concepção e projeção social assemelhada. Meu colega de debate, com muito cuidado e elegância, fez um comentário preciso.
Não me recordo as palavras exatas, mas a idéia central de seu comentário era justamente a naturalização da existência de classe política. Ou seja, como e porque nossos representantes se auto-regulam, isolam-se das bases que os indicaram; na prática não respondem por crime comum e terminam por serem os maiores responsáveis pelo atual descrédito do instrumento democrático? Passado o programa, o tema ficou na cabeça, literalmente perturbando cada um dos trabalhos diários, vinculados ao mundo da política, que felizmente tenho a oportunidade de realizar.
Para complicar, um dado nos assombra. A renovação do Congresso e das instâncias parlamentares é da ordem de 50% a cada eleição. Isto é, não é por falta de mudança de atores individuais, que a estrutura de representação não se altera. Para não me perder na formulação, busquei alguma base naquilo que já existe. Parti do princípio da crítica ao estatuto da reeleição, como forma de permanência de uma elite especializada. Um leitor atento vai me dizer que a reeleição é novidade para presidente, mas já está fincada na tradição dos parlamentos nacionais. É verdade, e no meu entendimento, é justamente aí que reside o centro do problema.
Uma das características de um comportamento de classe dirigente é seu instinto de sobrevivência, a permanência de costumes e formas arraigadas de exercício de poder. Tentando desconstruir a idéia de “classe política”, me parece óbvia a necessidade de terminar com a expectativa de se fazer uma carreira política de forma ininterrupta. A democracia concebida hoje, pode ousar e muito das formas experimentais. Uma delas é a aplicação de formas não burocráticas. Na prática isso significa alternar a representação, tanto no Executivo como no Legislativo, aumentar a participação cidadã e criar uma regra que obrigue a alguém que for eleito para um mandato, passar 4 anos na função e os outros quatro nas mesmas condições de vida de sua profissão de origem.
Se eu fosse fazer a crítica desta proposta, diria ser interessante, mas as elites políticas defenderiam suas carreiras através das indicações entre mandatos. Vamos supor: um deputado eleito em 2006 cumpriria o mandato até 2010 e nos anos seguintes, teria um cargo comissionado (CC) de algum outro colega. Este mecanismo só poderia ser combatido através de outro, ainda mais duro que o primeiro. A proibição de reeleição teria de valer também para as indicações. Isto é, nenhum cidadão poderia exercer uma função pública por mais que quatro ou cinco anos seguidos. Estas seriam, a princípio, o exercício de 1º, 2º e 3º escalão de governo, incluindo o Parlamento, o Executivo, os CCs e as funções gratificadas (FGs). As últimas são próprias do serviço público, e na prática, funcionam como um trampolim político desestimulando os servidores de carreira.
Mesmo sabendo que uma proposta como esta soa como espartana, portanto antipática, afirmo que toda reforma estrutural dói, e muito, especialmente nos seus beneficiados diretos. Quando se discute a reforma política, o debate gira em torno de fórmulas e mecanismos. Não sou de todo contra a engenharia política, mas creio que o recheio é tão importante quanto a massa do pastelão. Assim, não basta discutir a regra, se não mudarmos a mentalidade e as expectativas dos operadores políticos. Considerando que a “consciência republicana” é artigo em escassez no mercado, nos resta aplicar uma forma de impedir a idéia da carreira do profissional da política.
Poderíamos discutir, e bem, as vantagens do mandato parcialmente imperativo, que é o contrário do atual mandato delegativo. Mas antes de entrar nesse tema, a urgência é outra. A idéia básica de carreira política tem sua relação direta com a de mobilidade social. Quando alguém “entra na política”, imediatamente abre mão de fazer política entre os seus, usurpando para si redes de relações e vínculos sociais, todas de construção coletiva. Se o intuito do parlamentar fosse somente o de representar um setor da sociedade, ele/ela não se importaria em exercer o mandato coletivo e posteriormente voltar para sua base social. E não é isso o que ocorre.
Um comentário recorrente entre eleitores é o fato de que “fulano não mudou, ainda é um sujeito simples, fala com a gente de igual para igual”. O que era para ser obrigação, pela falta desta, torna-se virtude. A idéia de fundo, atravessando a mentalidade do brasileiro médio, é a de que a “vida política gera mobilidade social”. Mobilidade esta, somada ao fetiche do poder, e considerando que vivemos em uma sociedade de classes, em geral é para cima. Para frear isto, a própria sociedade teria de obrigar aqueles que quisessem tentar o exercício de funções públicas a retornar para suas funções de origem, antes de serem eleitos.
Nas três primeiras décadas do século XX, o sindicalismo mais combativo tinha um mecanismo parecido. Durante o período que os dirigentes sindicais exerciam suas funções, seus vencimentos eram os mesmos de um operário de fábrica na sua profissão de origem. Terminado seu mandato, o sindicalista necessariamente voltava para sua base por igual período, em que exercera a função dirigente. Assim, a própria estrutura combatia o surgimento de burocratas hiper-especializados, e se obrigava a formar novos militantes. Estamos falando de um setor social, que na época trabalhava 12 a 16 horas por dia, em sua grande maioria alfabetizado nas escolinhas do sindicato e cujos líderes eram alvos de perseguição patronal permanente. Detalhe, naquela época, ainda não existia imposto sindical, nem Ministério ou Justiça do Trabalho.
Voltando ao mundo da representação política do início do século XXI, vemos tudo ao inverso. Os operadores da política revezam-se nas funções, mas poucos retornam para as bases do setor da sociedade que o elegera. Tornam-se de fato os “eleitos”, oscilando entre CCs, ministérios, secretarias, governos, presidente, governadores, prefeitos ou gabinetes. Do jeito que a coisa vai, sem um mecanismo de controle social da representação, o distanciamento entre políticos profissionais e a sociedade desorganizada será cada vez maior.
Em tese a premissa é simples. Qualquer um que exerça função pública tem por obrigação, passar o mesmo período sem poder exercer nenhuma função de mandato ou de confiança. É de se pensar algumas formas compensatórias, considerando que um político nestas regras seria alvo de maior controle social, portanto, iria incomodar a mais gente. O mais importante é quebrar a continuidade nas funções-chave do Estado, desassociando a participação da idéia de carreira política, cujos dividendos incluem a especialização e a mobilidade social.
Esta seria uma outra reforma política, dotada de medidas estruturantes e não simplesmente contemplando o “afundar progressivo” da democracia brasileira. Noutras ocasiões voltaremos ao tema, complexificando exemplos e cenários. Reconheço que o assunto é difícil, mas não imagino nada mais urgente para o combalido regime vivido por nós.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat