A semana anterior ao Gre-Nal do Beira Rio, teve ao menos dois programas em mídia eletrônica e de ampla difusão. Na TV Com, canal 36 do UHF, empresa do Grupo RBS, o programa Conversas Cruzadas (diário) trouxe o tema. No dia seguinte, na Rádio Band AM 640, foi a vez do programa Manhã Bandeirantes, com Darci Filho na mesa, conduzir o debate. Chamo a atenção para a relevância. Quando a mídia pauta, e quase sempre é o quarto poder que pauta a temática, o conceito de agenda política fica subordinado aos significados gerados por esta indústria. Desta vez foi ao inverso.
A campanha das cotas sociais e raciais começou a ser debatida na UFRGS há pelo menos cinco anos. O tema chegara ao Brasil no inicio dos anos ’90, sendo uma versão brasileira da política de ações afirmativas dos EUA. Alguns estados aplicaram esta política ou parte dela. É o caso do Rio de Janeiro e da Bahia. Em universidades públicas estaduais e federais, o primeiro mito, de que estes estudantes entrariam pela porta dos fundos, caiu por terra. O desempenho é bom e a evasão pequena. Outros mitos construídos devem ter o mesmo caminho.
Para entrar na questão, a primeira necessidade é uma premissa. Tem racismo no Brasil ou não? Se existe, como este se manifesta? Mais, havendo racismo, o preconceito é um sintoma e não uma causa. A conseqüência é o elevador de serviço e o quarto de empregada, pedaços constitutivos do modo de vida das elites brasileiras. Não compreendo o racismo brasileiro como uma versão parecida dos Estados Unidos ou mesmo a África do Sul. O exemplo serve como propaganda política, mas não para elaborar um conceito operacional.
Assim, começo afirmando que existe racismo e a exclusão de espaços de poder passa pela universidade. Nossa elite tem formação civil sendo o Estado brasileiro criado por bacharéis-parlamentares eleitos no voto censitário quando debatiam nas Cortes do Porto. Ou seja, nas instituições de ensino superior o pensamento de esquerda é tolerado. Já a presença popular não.
No caso específico do Rio Grande, a tendência piora. É absurda a imagem do estado gaúcho como o mais racista do país. Longe disso, a constituição do gaúcho original passa por sua descendência indígena. A República Rio-Grandense, traída pelos latifundiários charqueadores, se vitoriosa fosse, haveria sido construída com as cargas de Lanceiros Negros. Mesmo assim, os cerca de 20% de afro-descendentes no Rio Grande do Sul mantêm a média brasileira de estarem com renda e IDHS abaixo dos brancos.
Na UFRGS, menina dos olhos das elites locais, fundados seus alicerces na ditadura positivista, a proporção é terrível. O Brasil é o segundo país do mundo em população africana. São 47% de negros brasileiros, mas apenas 2% dos jovens negros estão nas universidades. No pago a média é a mesma para os estudantes. Professores, bem, estes são apenas 0,3% do total. Se isso não é coincidência, e não é, portanto o racismo é estrutural.
O tema das cotas tem outro problema além do preconceito. É a reserva de mercado. A indústria do vestibular atinge a muitos interesses, incluindo a listagem final dos aprovados. As maiores redes de cursinhos conseguem ficar com as vagas mais disputadas, justo nos cursos onde a procura é enorme. Deste modo, a presença de estudantes de origem humilde será notada com força em carreiras como direito, medicina, odontologia, contábeis, informática e nas engenharias.
Percebam, não afirmo que os estudantes destes cursos em todo o Brasil tenham um perfil elitista. Apenas digo que dentro da UFRGS não se nota a presença popular. E mais, apesar das posições estarem divididas, alunos destes cursos (parte deles) se mobiliza por direita, contra as cotas. Isso é raríssimo dentro de qualquer universidade. Em geral, a posição mais conservadora é a apatia política e a negação do muito viciado movimento estudantil. Apenas quando a atuação ou a causa incomodam muito a parte mais reacionária se expõe. Isto ocorreu na ocupação da reitoria da USP e agora na questão das cotas no sul.
Entendo que o tema não se esgota, sendo que o debate e a polêmica apenas iniciam. Se por um lado temos o risco, real, de haver uma racialização da luta social no Brasil; por outro prisma, essa racialização é urgente e necessária. O mito da democracia racial noz faz cego perante um Estado que manteve o crime de vadiagem mesmo após a abolição da escravatura sem nenhuma reparação. Nos Estados Unidos ao menos prometeram (mas não concederam) 40 acres e uma mula para cada homem negro e livre após a vitória da União na Guerra de Secessão. Aqui, nem a falsa promessa houve.
No dia 29 de manhã, tanto pode haver um resgate da história dos descendentes daqueles que construíram as charqueadas com o lombo, como pode ser mais um dia de frustração. Em ambas as hipóteses, se e caso as lideranças negras não se omitirem, esse vendaval de razões pode entrar em um novo ciclo de embates.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat