Esta não foi a primeira operação de espionagem política e nem será a última. Toda atividade político-partidária tem um grau conspirativo, por direita e por esquerda. Durante a vigência do AI-5, conspirava-se dentro e fora da caserna. A tigrada flertara com o ultra-nacionalismo e esbarrara em Golbery e sua linha de comunicação com o empresariado de São Paulo. Anos antes, quando havia um inimigo comum a ser combatido, os primeiros passos para a montagem do aparelho repressivo nacional resultam na forma clandestina da OBAN. O Brasil tem uma larga história de dossiês e biografias não-autorizadas. Como estilo de fazer política, na transição do regime o escândalo se manteve firme e forte.
Retornando a atualidade, é preciso identificar o objetivo estratégico. Em um processo investigativo, trabalha-se com a afetação controlada do ambiente. O trabalho sistemático de vigilância e seguimento sobre o alvo investigado gera o produto, na forma de relatório, dossiê, arquivos de imagem e áudio. O conjunto dos produtos fornece a munição para o embate. De acordo com a obra adquirida por meios ilegais, pode-se variar da extorsão à eliminação física. Não estou exagerando; uma técnica usual é o suicídio induzido. Este pode ser físico ou mesmo político, como foi o caso do auto-imolado Roberto Jefferson.
Ou seja, um dossiê é um produto, mas não a meta. Monta-se um enredo a partir de informações privilegiadas. Especificamente no caso da espionagem para a corrida eleitoral, o objetivo é o ataque da imagem pública de um candidato. A situação ideal é afetar o próprio político profissional em sua conduta na função pública. Quanto mais dura é a disputa, mais caneladas são distribuídas. Parte-se para o ataque da vida privada e íntima. Todos têm algum segredo para guardar, seja por privacidade ou mesmo falso moralismo.
Um dos casos clássicos na disputa eleitoral brasileira foi o recurso de Lurian em 1989. Golpeando Lula no meio do fígado, o ex-metalúrgico teve sua vida íntima revelada. Na arena pública, a edição do debate contra Collor terminou o ataque de armas combinadas. A expectativa de parte de seu eleitorado de então era outra. Qualquer operário, “sujeito homem”, teria de tomar medida mais drástica quando sua honra é atacada. Ao revés, Luiz Inácio estava fraco de espírito, resolvendo posar de estadista no meio de uma várzea geral e irrestrita. Os marketeiros do candidato arrivista, na base do vale tudo, aplicaram Clausevitz à moda tupiniquim. Melhor do que ganhar uma batalha ou mesmo uma guerra é retirar do inimigo as ganas de lutar. Naquele momento, conseguiram.
Passados dezessete anos, a situação é outra. O final da opereta bufa iniciada no escritório de campanha para a reeleição do presidente Luiz Inácio, tornou imprevisível uma partida já ganha. Impressiona a capacidade de lambança dos setores “operacionais” do PT. O governo pós-moderno da UDN com o PSD, ou seja, do PFL com o PSDB, tendo Fernando Henrique como chefe de Estado, entrou e saiu de um sem número de enrascadas. Não digo que passaram por tudo sem nenhum aranhão, mas de fato não tiveram nenhum flanco importante aberto. Inclusive, para refrescar a memória tão fraca nesses tempos de comunicação instantânea, também tiveram um caso de dossiê falso.
Iniciado em função de uma disputa estadual, o produto fora oferecido ao PT por um grupo de corsários empresariais associados a Maluf. Hoje sabemos que aquela peça de fantasia também continha um fundo de verdade. Algo sutil, nada grosseiro se comparados com outras contas oriundas de operações offshore. Mas, que ali tinha um fundo de verdade factual, isso tinha. Com os sanguessugas, provavelmente esteja ocorrendo o mesmo. Mas, o detalhe é que a verdade em si, pouco ou nada importa. Após quatro anos abafando casos, salvando a cabeça de mensaleiros, paralisando investigações importantes como a CPI do Banestado, qualquer leitor atento identificará na manobra dos homens de “inteligência e análise de risco e mídia”, apenas uma jogada eleitoral.
O problema deste tipo de atividade é a implicação de risco e reciprocidade. Ou seja, em linguagem popular, tudo o que bate acaba voltando. E, em se tratando das eleições em um país com 75% de analfabetismo funcional, quanto mais complexa é a trama, mais complicada é sua absorção. Entre John Le Carré e Rubem Fonseca, a massa do eleitorado prefere Janete Clair. A percepção de uma campanha teatralizada é um conjunto de informações atiradas no vazio. Havendo um enredo complicado, este demora a ser absorvido. Mas, uma vez aberto o fio do novelo, seu desenrolar começa a ser acompanhado com crescente curiosidade.
Os eleitores, ou melhor, os eleitorados, em geral, demoram de uma semana a 10 dias para absorverem a carga de informação negativa. Esta era a aposta dos assessores diretos do presidente na sua meta de levar José Serra para o segundo turno das eleições estaduais de São Paulo. Lembremos, com Mercadante eleito para viver no Palácio dos Bandeirantes, estava preparada a sucessão. O ataque foi e voltara ainda mais forte. Arrebatando paixões amortecidas, motivou até a poderosa Rede Globo a dar suas alfinetadas no aliado tático, hoje ainda titular do Planalto.
As volumosas cargas de informações confidenciais reveladas implicam um duplo sentido na hora do voto. Para quem vive a política de dentro, mesmo com indignação, percebe-se um grau de complexidade equivalente a um bom romance de espionagem. Já para a maioria dos votantes, a estrutura narrativa é de folhetim. Uma novela sem graça e sem heróis transforma-se na última semana. Definitivamente, o jogo ainda está em aberto.
Detrás das cortinas de fumaça, esquecida em um canto, está a pouco cultuada verdade factual. Como se trata de um enredo de anti-heróis, ambos os lados tem o rabo preso. José Serra estava implicado até o luzir da calvície na Operação Lunus, durante a pré-campanha de 2002. Em 2005 e 2006, qualquer pessoa em sã consciência deduz que Lula sabia de tudo. Em artigos anteriores eu havia afirmado que esta eleição somente poderia ser alterada na base da baixaria.
Para a infelicidade do país, reconheço o acerto da previsão.