Inicialmente, uma dolorosa verdade precisa ser repetida. O Estado, como gestor da segurança pública da maioria dos cidadãos, caminha a passos largos rumo à falência. Não conseguindo ser um elemento provedor de justiça, o Estado de Direito termina por ser um operador das injustiças. Explico: Enquanto o jornalista Pimenta Neves, réu confesso, esperou julgamento em liberdade; no mesmo país e estado, mais de 34.000 processos tramitam sem julgamento. A morosidade da Justiça atinge o cidadão comum, quando este procura os direitos do consumidor. E, bate no meio do fígado da pequena e baixa marginalidade, mesclando primários com gente experiente, punguistas com latrocidas. Deste “caldo de cultura” brotam organizações do tipo Partido do Crime, também chamado de PCC.
Se boa parte dos 111 presos, chacinados pelo absolvido coronel Ubiratan Guimarães (deputado estadual pelo PTB de São Paulo), tivesse sido julgada no tempo devido, hoje não fariam parte desta triste estatística. E, tampouco seriam a gasolina atirada na fogueira das insanidades do Piranhão da Cadeia de Taubaté, masmorra pós-moderna de onde surgiu e foi gestado o Partido do Crime. Vamos escalar o time inicial dos “oito cobras”:
Mizael, Cesinha, Geleião, Eduardo Cara Gorda, Paixão, Isaías Esquisito, Dafé e Bicho Feio. Na primeira geração, co-fundadora, também participaram Sombra e Playboy. Conforme declarou o preso Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra:
“- O PCC foi fundado por nove pessoas. Oito presos e o senhor!”
O nono fundador do Partido, seu maior inspirador, teria sido o funcionário de carreira da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, Dr. Ismael Pedrosa. Este servidor público foi diretor da Casa de Detenção quando do massacre do Carandiru e também diretor da Casa de Custódia de Taubaté, quando da inauguração do PCC. Não é mera coincidência. Não, que o Dr. Ismael seja o responsável por todas as carências dos presídios paulistas. Mas, ele era o principal gestor nos momentos de maior crise e covardia contra uma leva de apenados, vista como escória humana. Naturalmente, cedo ou tarde, uma parcela desta massa carcerária ia se organizar e jogar com as regras e códigos que aprendera no “proceder do lado certo da vida errada”. Tinha que dar nisso.
“Curioso” o espanto de autoridades, quando estas mesmas pessoas, tanto as da área policial como os políticos profissionais que perambulam entre Brasília e São Paulo, tem cinco vezes mais informações do que qualquer pesquisador ou pós-graduando. A editora Objetiva publicou o livro Cobras & Lagartos, cruel ironia com a novela homônima da Globo, no horário das sete da noite. O autor é Josmar Jozino, e a obra publicada no ano de 2005. Texto simples, digno daqueles que manejam a pena profissionalmente. O repórter policial, com longas passagens na mídia paulista, sabe das entranhas deste mundo e o narra como ninguém. Não apenas narra, mas diagnostica. Será que somente o repórter que atende pela alcunha de “Caveirinha” sabe das coisas?! Óbvio que não.
Não é conveniente buscar os “culpados” por tamanha desorganização do Estado, mas dois indícios são gritantes e não podem ser negados. Quando da “estréia” do Partido do Crime no cenário nacional, durante a mega-rebelião de fevereiro de 2001, todos os especialistas diagnosticaram o mesmo remédio. Seria necessário impedir a entrada de telefones celulares e outros aparelhos de longa distância no interior das “faculdades”, forma como são chamadas as instalações penitenciárias. Nada foi feito, e agora a cúpula dos atuais oito cobras do PCC coordena tudo por meio da telefonia móvel. Detalhe, o mesmo grupo e aliança política, que então governava São Paulo, segue ocupando o Palácio dos Bandeirantes. A conta, ecumênica por sinal, tem de ser paga pelo PSDB e PFL paulistas, com Geraldo Alckmin, Cláudio Lembo, Nakashi Furukawa e cia.à frente.
O segundo indício de incapacidade e falta de vontade de governar foi dado pela União, já na gestão de Luiz Inácio. No ano de 2003, foi acertado o convênio entre os 27 estados brasileiros e o governo central. À frente do Plano Nacional de Segurança Pública estava o reformador Luiz Eduardo Soares. Mas, aconselhado por seus assessores políticos, visão esta corroborada por Márcio Thomaz Bastos, Lula, simplesmente se abstêm de governar esta pasta. Ou seja, fora operações pirotécnicas da Polícia Federal, as fontes de recursos minguaram e o Plano ficou apenas no papel.
Para concluir o desastre, a greve dos policiais federais, ocorrida em 2004, é derrotada e não ocorrem as reformulações estatutárias na força. Pouco antes, o cientista político e antropólogo carioca Luiz Eduardo Soares sofre sua segunda queda no Executivo. Na primeira, perdeu o posto e a possibilidade de fazer política para Antônio Garotinho Mateus e seu homem de confiança, o então coronel da PMERJ e ex-agente do Doi-Codi do I Exército, Josias Quintal. Agora, perdia em seu próprio terreno, tendo seu tapete puxado por amigos de longa data.
Vamos ser francos e racionais neste momento. A rebelião do PCC era esperada. A surpresa foi o nível de violência e o aumento da capacidade de coordenação desta rede de quadrilhas, alçada ao grau de organização criminosa. Seria uma novidade caso o estado de São Paulo não fizesse parte do mesmo governo nacional do estado do Rio de Janeiro. Mas, se até o estatuto do PCC tem como fonte e base os decretos de fundação do Comando Vermelho, então, qual é a surpresa?!
Uma simples caminhada pelas praias de Santos nos anos de 1997 ou 1998, parando providencialmente para conversar em bares e botequins, e a realidade extra-muros seria sabida e informada. As areias do Gonzaga sabiam dos vínculos do CV-PCC e os domínios territoriais a partir dos morros da Baixada Santista. Na selva paulistana e sua metrópole, a falta de controle do espaço físico é compensada pela própria facilidade de submergir na população. Some-se a isto, a imensa facilidade em contribuir para o caos urbano e a mescla incendiária está pronta.
Entre o muro e o holofote, vendo o desemprego somar-se a falta de expectativas, pouca ou nenhuma mobilidade social é o que resta para mais de 100 milhões de brasileiros. Quanto maiores as possibilidades, como é o caso de São Paulo, maior o abismo social. Encarcerando de forma sumária, superlotando presídios, delegacias e casas de detenção provisória, o Estado contribui para o crime da ralé.
Sim, da ralé, pois as mesmas famílias que vêem seus filhos tornarem-se “lagartos” do PCC, assistem atônitas à impunidade no Congresso Nacional. Apenas no ano de 2005, foram gastos mais de R$ 10 bilhões de reais em emendas e acertos extra-orçamentários. O país gastou com seus congressistas, de forma pouco republicana, o mesmo montante do lucro líquido da Petrobras. Vendo isto acontecer e ser noticiado diariamente em rede nacional, mesmo sabendo que não se sabe da missa a metade, fica impossível convencer a um jovem a aceitar impassível uma expectativa de vida, oscilando entre o subemprego e o salário mínimo.
Quanto maior a opressão e a barbárie, mais duras serão as formas de resistência. A reação do PCC é semelhante a do extinto Cartel de Medellín. Quando a cúpula de Pablo Escobar Gaviria foi executada, “tudo voltou ao normal” em solo colombiano. Assim, extinta a anomalia do crime organizado por pessoas de origem pobre, bastava entregar este “setor informal da economia” aos aristocratas do Cartel de Cáli. Tudo está “tranqüilo”, ninguém importuna o crime de colarinho branco e há consenso no interior das elites dirigentes colombianas.
- “Será esta a paz desejada pelas elites brasileiras?”
artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat