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Três confusões e vários equívocos da esquerda brasileira


Os interesses de homens do povo, como este voluntário da Cabanagem do Grão-Pará, não se via nem se vê representado por partidos de intermediação das vontades políticas.

Vila Setembrina dos Farrapos, Continente do Rio Grande de São Sepé, 4 de julho de 2006

Agora começou. Eliminados vergonhosamente da Copa do Mundo, a primeira semana de julho marca o início da corrida eleitoral. Como no futebol, na disputa das urnas, vamos pagar o preço de fingir não ser quem somos, e por isso mesmo, iludir-nos das discussões de fundo estratégico. Entre Lula e Chuchu, no aperto do corredor polonês, o que sobrou de esquerda deste país sofre uma grande confusão ideológica e de modelos de partido. Neste breve artigo, vamos retomar o debate do tema.

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O Brasil, embora peculiar pelo idioma e o tamanho desproporcional para o continente, não é uma ilha isolada da América Latina. Muito ao contrário, quanto mais nos afastamos, mais “sudacas” e “cucarachos” nos tornamos. Tanto pela negação da própria identidade a ser reconstruída, como pela postura arrogante e sub-imperial que insistimos em reproduzir. Caso conhecêssemos mais a nós mesmos, e reivindicássemos as raízes da história política latino-americana, tudo seria distinto. Ao menos teríamos a chance de evitar uma grande confusão vivida pela militância brasileira mais à esquerda nos últimos 25 anos.

O primeiro conceito que quero trazer é a idéia de “melhorista” contra a clássica noção de “reformista”. Concretamente, o Partido dos Trabalhadores e suas várias correntes, vivem hoje um dilema, acobertado pela “questão conjuntural” das eleições. A esquerda deste partido ainda vê como “tática” a participação na legenda e passa a fazer uma lógica discursiva de dar pouco peso ao nível político. Isto é verdade, mas apenas em parte. Porque, quando uma agenda eleitoral pauta a luta popular, repetindo-se a cada dois anos, isto cria uma rotina de projetos de poder”(com p minúsculo) e aponta expectativas e projetos individuais dos militantes.

Reunificando-se a cada dois anos, esta frente de correntes, hoje divididas entre a direita majoritária (melhorista) e a esquerda em minoria (reformista), retoma o pacto de cumplicidade e mata no peito e em conjunto os escândalos que asseguraram a “governabilidade”. Na essência, em minha opinião, o governo de Lula partiu de uma perspectiva melhorista e de continuidade com o modelo anterior. Não tocou em nenhum elemento central da forma de governar dos 8 anos anteriores de FHC. Mais, aprimorou as diretrizes macro-econômicas, sendo que em alguns aspectos, implementou as propostas de governo elaboradas por José Serra no segundo mandato de Fernando Henrique.

As correntes da ala esquerda deste partido, representando vínculos com movimentos populares que tem participação lateral no governo, se vê embretada entre uma perspectiva reformista clássica e uma postura um pouco mais ousada. Não fosse a confusão propositada na formação política somada com alguma vontade estratégica, menos massista e mais política, e possivelmente esta polêmica não existiria mais. Mas, esta falha de formação, quando repetida ciclicamente por mais de duas décadas, deixa de ser falha e vira “virtude” aos olhos de quem assim foi formado.

Poderia nomear e debater uma série de conceitos propositadamente confundidos, mas neste breve artigo cito apenas a três. O primeiro é uma leitura de “guerra de posições” e da “disputa e correlação de forças” gramscianas, idéias-guia estas que simplesmente podem servir para qualquer coisa. Me recordo de um debate, há mais de 15 anos, com um coordenador da Pastoral Operária, quando este militante dizia: “usamos a Bíblia para uma interpretação e o neo-pentecostal por vezes utiliza o mesmo versículo para dizer o inverso e oposto do que fazemos”. As idéias básicas do italiano Antonio Gramsci servem para quase-tudo dentro das perspectivas de uma esquerda eleitoral e cada vez menos classista.

A segunda confusão, e esta é tão enraizada como a anterior, é a mescla entre a apropriação progressiva do Estado pelos poderes públicos, provenientes do antagonismo entre o povo e suas elites; e a confusão praticada da tomada do aparelho de Estado, por dentro do sistema de espólio da política brasileira. Este debate mal resolvido, tem suas origens nas disputas internas quando da criação das jovens repúblicas latino-americanas, e os choques entre o patriciado criollo e os ativistas liberais-radicais que queriam construir a res-publica mestiça, negra, indígena, com cheiro e cara dos povos que resistiram a conquista. Ao ocupar parcelas do Estado, sem fazer com que estes espaços adquiridos nas urnas sejam fruto da mudança da correlação de forças na estrutura da sociedade, a militância torna-se legitimadora deste mesmo Estado operador da injustiça e da desigualdade perante a lei.

A terceira confusão é a própria idéia de partido. O partido de tipo burguês, instrumento de representação política auto-promovida, vive uma crise sem fim. A classe política brasileira se auto-regula, e tal e qual os capitais voláteis da jogatina financeira, ao não terem barreiras, cada vez se regulam menos. Bem, para entrar na rinha de galos, é necessário usar biqueira e espora. Se as regras da rinha onde se aceita pelear são estabelecidas pelos donos do rinhadeiro, camada social que estruturou sua própria posição como forma de assegurar estas regras, é preciso entrar no clube e pagar a jóia do título de sócio proprietário. Ou então, mudar as regras de fora para dentro, e usar outro tipo de instrumento político diferente do utilizado pelo adversário.

Mas, ao associar a idéia de partido político como forma de representação eleitoral, estes mesmos militantes partidários se negam a ver a independência de classe perante o campo e a classe política como uma das poucas formas de criação de um outro poder. A acumulação de forças que pode assegurar a pressão necessária sobre o Executivo, a mudança dos rumos da macro-economia e o aumento simultâneo de uma apropriação pública das capacidades do Estado, passa bem longe das urnas.

Para conseguir esta acumulação de forças, são necessários alguns instrumentos. Um deles é político, a busca pelo modelo apropriado de partido político. Tal modelo toma a forma de uma agrupação de minorias, com vontades estratégicas, e cuja tarefa é ser força motora da construção deste poder. O outro instrumento é a separação absoluta entre partido e movimento de classe. Com pautas distintas, sem se entreverar com os espaços públicos abertos, proibindo a participação dos militantes em cargos de confiança exercidos em gabinetes e funções no Legislativo e no Estado. Por fim, mais uma separação decorrente das duas primeiras. Esta é, a distinção total entre partido político, movimento popular e exercício de governo.

Garantindo a ocupação distinta dos diferentes espaços, será possível a construção de uma outra forma de exercício de poder, atendendo aos interesses estratégicos do país, a partir da sua própria identidade como povo e classe. Para isto, será necessário um outro processo político, cuja resultante é a forja de uma militância popular desvinculada dos interesses eleitoreiros.

Infelizmente, para sairmos do corredor polonês formado de um lado pela oligarquia e a jogatina financeira de sempre, e do outro pela aliança entre “melhoristas social-liberais” e “reformistas social-democratas”, será necessário mais uma geração de militantes. Outros 25 anos nos esperam.

Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat






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