Antes que os aguerridos leitores deste blog comecem a especular sobre minha afiliação político-partidária explicito minha posição. Para mim houve Mensalão e os responsáveis devem ser severamente punidos. Entendo a corrupção como endêmica, mas também imputo aos indivíduos uma capacidade de escolha na política. Ou seja, como dizia o poeta espanhol, quem faz o caminho são os caminhantes. Não estou aqui para defender de forma indireta a José Dirceu e companhia. Muito pelo contrário. Faço a crítica e condenação do politburo petista desde um ponto de vista à esquerda.
É justo deste ponto que quero começar. A presença de partidos com origem nas esquerdas e o envolvimento em casos de corrupção não é uma novidade no mundo. O senso comum crê que a prática de atos ilícitos é algo exclusivo dos partidos de direita, particularmente da brasileira. Ledo engano. Diversos fatores levam à corrupção, e um deles, depende necessariamente dos correligionários. Explico.
Quando estávamos no período da “abertura” lenta, gradual e restrita, um debate de fundo e com vigorosa base social grassava no movimento popular do país. Animava a reorganização político-social uma postura anti-estalinista, na defesa incondicional da democracia interna e controle dos dirigentes por suas bases organizadas. Em termos de teoria democrática contemporânea, estas posições conformam a defesa da democracia participativa, deliberativa e direta em oposição à democracia indireta, representativa e delegativa. Assim, a figura do político profissional era execrada. Aos poucos, foi sendo tolerada, e logo após torna-se um desejo e anseio como projeção de vida.
Mas, na década de ’80, as coisa ainda não estavam neste ponto. Na trajetória da esquerda, a experiência de frente única da social-democracia européia dos anos ’30 ganhava rumos mais radicalizados e populares na América Latina. Naquela conjuntura, do início do ascenço do neoliberalismo, o stalinismo vivia em crise mundo afora. Já a América Latina saía de um ciclo de ditaduras. Três países centro-americanos, El Salvador, Nicarágua e Guatemala, experimentavam mais de uma década de guerras civis e unidade política, legitimada pelo movimento popular e fundamentada na Teologia da Libertação. No Brasil, esse perfil ganhou outro tom, de participação popular e luta institucional, galvanizado no Partido dos Trabalhadores (PT). Um leitor desavisado pode se perguntar qual a relação da luta da redemocratização e o Mensalão? Digo que tem toda relação.
Um dos princípios da democracia socializante, ou de esquerda, é o controle das bases sobre os dirigentes. Este era um tema sagrado na interna do PT, entre suas distintas correntes. Isto até a derrota na eleição de 1989, quando Luiz Inácio perdera para Fernando Collor. A partir daí outra lógica começara a imperar na interna do maior partido político da América Latina.
A formação do Campo Majoritário dá-se na dissolução das correntes, na liberação a tempo completo de militantes profissionais e na tomada de postos-chave do Estado. O mesmo ocorrera na Izquierda Unida (IU) peruana do início da década perdida. Os partidos políticos na interna da IU se dissolviam dentro da legenda eleitoral. A direção torna-se profissional e permanente. A “esquerda” do país incaico crescia eleitoralmente e promovia alianças com o partido de Haya de La Torre e Alan García, o APRA. Já em 1985, os partidos políticos estavam em uma ponta da sociedade e o movimento popular em outra. A guerra civil campeou até o auto-golpe de Fujimori em 1992.
Qualquer semelhança com o PT dos anos ’90 não é mera coincidência. A diferença está no sucesso da proposta. A IU não ganhou uma eleição para presidente e Lula sim. Quando assumem o governo, o sistema de secretariado-executivo, aos moldes de um partido político satélite da antiga União Soviética, funcionava às mil maravilhas. Para quem se recorda da primeira metade dos anos ‘80, vai compreender que isto é o oposto do projeto original. Trabalhavam os “sindicalistas autênticos” com a idéia de democracia operária ou popular. Os dirigentes, necessariamente teriam de se revezar entre o mundo do trabalho e o da política, e todos com remuneração modesta. Burocracia permanente e bem remunerada era impensável e execrado. Justo o oposto do que ocorreu.
Trago esta reflexão porque vivemos um momento de espetáculo midiático e ausência de teoria explicativa para o fenômeno da corrupção de esquerda. Particularmente entendo que os corruptores e corrompidos deveriam amargar uma punição exemplar. Não somente penalidades legais, mas um rigoroso julgamento moral do grosso dos militantes populares do Brasil. Ou reinventamos a forma de fazer política no país, ou veremos a corrupção e o descontrole dos políticos profissionais como norma e não a exceção.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat