Bruno Lima Rocha
Sábado, cair da noite, 13 de setembro de 2008, Aeroporto de Guarulhos (Cumbica)
Os acontecimentos que se sucedem em Bolívia devem deixar aos latino-americanos em sentido de alerta. O problema não é a defesa de um governo com perfil nacionalista e raízes indígenas, mas sim a capacidade de nossos países poderem buscar a auto-determinação e o uso soberano de seus próprios recursos. A luta popular em Bolívia e a vontade expressa no jogo real da política de derrotar o projeto privatista e neoliberal remontam à Guerra da Água em Cochabamba (2000), na vitória na Guerra do Gás (2003), na posterior derrubada de Gonzalo Sanchez de Losada e logo em seguida de Carlos Mesa e numa acumulação de forças muito anterior e que vai mais além da vitória eleitoral do MAS.
É nítido que na Bolívia o jogo político é duro e sem limites legais ou institucionais. A proposta de fundo da maioria de origem tradicional é a construção de instituições políticas que expressem o Poder Popular. A vertente dessa expressão também passa, é óbvio, pelo governo de perfil nacionalista de Evo Morales e Álvaro Garcia Linera. Retomar a soberania definitiva sobre seu território ancestral passa pela superação do obstáculo manifestado pela oligarquia organizada, indo além de qualquer limite, contratando inclusive mercenários brasileiros e peruanos como é demonstrado no Massacre de Pando. Isto acontece porque Morales não faz o que quer e nem governa com os banqueiros, como faz Luiz Inácio e o governo de fato de Henrique Meirelles.
Hoje o país dos mineiros de 1952 está diante de seu maior desafio. O conjunto de povos e nacionalidades ancestrais do Alto Peru, as sociedades tradicionais quéchuas, aymaras, guaranis, tupis e dezenas de outras etnias, os descendentes na mestiçagem das cidades, mineiras e cocaleras experimentaram nos últimos 50 anos uma série de marchas e contra-marchas, golpes e contra golpes. Experimentaram também a vitória pontual e em defesa de interesses estratégicos. Esta agora é uma a mais, no momento a mais importante, mas não a definitiva. É preciso entender que as bases das relações de poder construído desde abaixo lá fez da organização do tecido social, da prática de justiça comunal e alianças de base a forma de desmontar um sistema de partidos políticos podres, corrompido com as experiências privatizadores dos anos ’80. O exército de Banzer e Barrientos ficou acantonado em 2003 e agora é uma variável duvidosa. Esta mesma força que já esteve sob comando do general traficante Hugo, já se viu derrotada em 1952 e pode ser derrotada de novo. Mas, antes de chegar ao limite do confronto, a prática da bandalha e das hordas desorganizadas pagas por gente do quilate de Branco Goran Marinkovic é o atual obstáculo. E, se derrotada for a oligarquia e impedida uma solução “negociada” que atenda os interesses dos latifundiários da soja, restará toda uma larga marcha rumo à implantação das novas bases constitucionais, do experimentalismo de Justiça Comunal, das experiências populares de auto-governo e de re apropriação definitiva do sub solo e da YPFB. Neste plano joga papel determinante a presença de transnacionais do petróleo e derivados, incluindo a prática presença sub imperialista brasileira no país hermano.
Agora a luta é intestina e defronta a oligarquia da chamada Meia Luna, dominante nos departamento de Tarija, Beni, Pando e comandada pelos latifundiários da soja e narcotraficantes de Santa Cruz. Esta gente, opera através de loggias proto-fascistas e atentam abertamente contra os interesses do povo. O governo de Morales é um alvo, mas a meta é a destruição da organização popular e das alternativas indigenistas, das formas tradicionais e comunitárias de controle da vida social, do controle boliviano das riquezas naturais. A dita luta por autonomia nada mais é do que a vontade política de uma oligarquia aliada das transnacionais, de um intento de golpe patrocinado pelo Departamento de Estado, CIA e DEA e financiado com o dinheiro espoliado do povo boliviano. As multidões de homens e mulheres que lutam por “autonomia” são, em sua grande maioria, empregados, afiliados políticos e cabos eleitorais destes oligarcas. A situação de desobediência civil e não governo é enorme na Bolívia. Por esquerda, os protestos sociais são cada vez mais enfurecidos e as metas de reivindicações obrigam a Morales a fazer o que a maioria do povo organizado propõe. Este é o conceito operacional de Poder Popular em sua prática política. Mas, por direita, a oligarquia que também saiu “vitoriosa” no referendo revocatório dos governos nacional e departamentais, joga as forças no caos, no locaute e no bloqueio econômico. Qualquer semelhança com o avanço da reação a partir de 1971 no Chile governado pela Unidade Popular não é mera coincidência.
Se os ensinamentos da história do Continente operar sobre os formuladores de política de La Paz, espera-se que uma guarda e reserva técnica seja imediatamente convocada e posta sob alerta. Se Morales confiar apenas e tão somente no aparelho militar oficial ele corre sério risco. Junto com seu governo, todo um projeto que ultrapassa, e muito, os limites da democracia liberal e da organização estatal-burguesa da sociedade. O ponto de conflito agora são os impostos que a oligarquia não quer pagar, não quer por tanto transferir renda e assim quebrar a unidade nacional se apropriando das riquezas nacionais para si. É semelhante com o aumento das taxas de juros no Brasil ou a forma como a burocracia escuálida se apropriava da Pedevesa venezuelana até a vitória do povo em abril de 2002. Uma análise séria deve compreender que na Bolívia hoje se luta uma batalha pelo destino na América Latina em conflito com o imperialismo sob o manto macabro da globalização.
O impasse político do governo Morales pode ser solucionado indo além das possibilidades legais. Existe uma esquerda popular muito mais à esquerda do que o recalcitrante vice-presidente Linera e da burocracia que vacilou na hora de gritar pela independência da YPFB. À esquerda do MAS está a ex-guerrilha do Movimento E.G. Pachakuti, está a Coordenação Regional de El Alto, estão as instituições sociais de tipo Justiça Comunitária, existe um enorme tecido social organizado que, definitivamente, não vai entregar o país e a terra ancestral para os herdeiros de Cortez e Pizarro.
Se vale a análise histórico-estrutural é para vermos as analogias e correlações de distintos momentos de uma mesma rota. Vivemos todos os latino-americanos o caminho prévio de outro Levantamento de 1809, ocorrido em Chuquisaca e La Paz. Em 1809, uma geração de jovens nacionalistas do antigo Alto Peru não reconheceu a legitimidade da pretensão de Carlota Joaquina de governar os vice-reinados. Esta decisão apontou o rumo da libertação da América, e a resposta realista veio rápida. O governador de Potosí, leal ao colonialismo, ocupou militarmente as cidades rebeldes. Tardaram 15 anos para o acúmulo de forças livrado em 1824, na Batalha de Ayacucho, quando a reação realista sai derrotada política e militarmente.
A independência política não garantiu a soberania dos povos, mas apontara uma trajetória a ser percorrida. Quase 190 anos vive-se um embate parecido. No avanço do poder do povo, na transformação do Estado nacional em espaço público e sob controle direto, no desmonte dos aparatos burgueses de regulação social, a direita aparece com toda a sua força. Hoje o epicentro do destino da capacidade emancipatória e na manifestação institucional de novo tipo formada pelo empoderamento das maiorias dentro da diversidade livra a Batalha na Meia Lua boliviana. O destino da América Latina na próxima década acabou de começar a ser escrito ou re-escrito.