A resposta à tamanha ousadia societária veio com o avanço do jihadismo mais brutal, operado através do Estado Islâmico (ISIS), cujo cerco a Kobane durou mais de 120 dias, resultando no equivalente à Batalha de Stalingrado para os povos do Curdistão. Com a vitória da esquerda em Kobane e as seguidas derrotas militares impostas aos wahhabitas comandados por Al-Baghdadi (líder do ISIS cuja origem vem de um racha da Al-Qaeda, no Iraque), chamaram a atenção mundial para a luta armada iniciada em 1984 e cuja repressão na Turquia implicou em mais 40 mil mortos e em 3.800 vilas e vilarejos removidos pelas forças armadas kemalistas (os militares turcos têm sua origem moderna na reconstrução do Estado promovida por Kemal Ataturk). Desde o início do conflito na Síria, o governo de Ankara apoia de forma implícita e por vezes explícita o Estado Islâmico e faz o possível para aumentar a repressão sobre Rojava e as linhas de apoio do outro lado da fronteira.
A partir de julho de 2015, após a vitória eleitoral do HDP (Partido Democrático do Povo), frente política da esquerda do Curdistão dentro da Turquia, o Poder Executivo vem utilizando suas potestades especiais e intensificando a incidência militar contra as forças curdas. Alegando bombardear e reprimir o ISIS e tendo o aval da OTAN (a Turquia tem o segundo maior contingente da Aliança do Atlântico Norte) para criar uma zona tampão de 100 quilômetros a partir da fronteira com o Estado falido da Síria, Erdogan e os conspiradores militares do alto-comando (as conhecidas redes Ergenekon) praticamente obtiveram carta-branca de seus pares para exterminar esta impressionante experiência democrática.
Breve trajetória e contexto do PKK
O Oriente Médio vive um momento dramático, dando sequência aos mais de cem anos de conflitos ininterruptos, boa parte destes promovido pelo interesse das potências ocidentais, como também pelo jogo realista e amoral das potências regionais. Os países com ascensão regional e atualmente com status de Estados-pivô na região são Israel, Arábia Saudita, Turquia e Irã. Neste seleto clube outrora participava o Egito no período de Nasser, mas desde os acordos de Camp David (1978), selando a paz entre Egito e Israel tendo em troca a plena devolução do deserto do Sinai, o país que foi o berço do moderno pan-arabismo inclinou-se para os interesses de sua nobreza e cleptocracia de Estado, abandonando os discursos de emancipação dos árabes.
O pensamento e a postura mais à esquerda vêm sendo progressivamente abandonados por uma concorrência de tipo sectária entre as elites dirigentes dos Estados ali localizados. A grande exceção a esta regra é a esquerda curda, representada pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), cujo embrião remonta ao ano de 1973 e a fundação fora em 1978. Os curdos são considerados a maior nação sem Estado no planeta e a busca pela criação de um Estado-nacional de maioria curda e modelo socialista centralizado foi o objetivo estratégico do PKK até o ano de 1999. Desde então, esta força político-militar passou por dez anos de reconstrução e debates internos, remodelando seu programa e ultrapassando qualquer marco de luta nacionalista. A partir de 2010, o PKK tornara-se o núcleo duro e irredutível de um gigantesco movimento social e popular dos povos do Curdistão (curdos e não curdos) vivendo — majoritariamente — como cidadãos de segunda categoria debaixo da soberania e opressão de Turquia e Irã, e de forma mais autônoma dentro dos territórios dos Estados falidos da Síria e do Iraque.
A força político-militar a rivalizar com o PKK é oriunda do domínio oligárquico do clã Barzani, líder inconteste do Partido Democrático do Curdistão (KDP) e homem forte do regime à frente do Governo Regional Curdo (KRG), cuja capital é Irbil e ocupa uma mancha territorial no Curdistão iraquiano. Ao contrário da força liderada por Abdullah Ocalan, o KDP é considerado coirmão do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), legenda do presidente islamita turco, Recep Erdogan e inimigo estratégico do PKK. Após a primeira guerra do Iraque, a região onde hoje se localiza o KRG passou por uma guerra civil entre a direita curda (KDP e os clãs oligarcas aliados) e o PKK. Os primeiros foram apoiados pela Turquia, Irã, financiados por empresas transnacionais de petróleo — detentoras de contratos de exploração — e com auxílio da aviação militar dos EUA. Isto resultou em uma vitória pontual da direita e uma trégua armada com a esquerda curda. O empate estabilizou os santuários do PKK nas montanhas do Curdistão, controlando suas rotas e podendo operar como autodefesa de massas contra os ataques da Turquia e do Irã.
O objetivo estratégico da Turquia
O provérbio oriundo desta região e mais conhecido internacionalmente é emblemático da situação. Este afirma que “os curdos não têm outros amigos além de suas montanhas”. Logo, controlar as montanhas implica em salvaguardar tanto a reserva estratégica do PKK como o local de treinamento de novos militantes do partido e voluntários das forças de autodefesa popular (o HPG). A partir dos acampamentos, o PKK alimenta as forças coirmãs do PJAK (Partido da Vida Livre no Curdistão) no Irã e o PYD (Partido da União Democrática) na Síria.
Pela lógica do conflito, o avanço turco por terra na Síria e sobre as montanhas do Curdistão rompe — de fato — com o cessar-fogo estabelecido pelo PKK e visa tanto acabar com a soberania popular no oeste do Curdistão como aniquilar as bases político-militares de seus adversários permanentes. Diante do avanço da Turquia, o governo da direita curda aplaudira a iniciativa, vendo nesta ofensiva militar a chance ideal para dar fim à única força política capaz de quebrar a hegemonia pró-ocidental nos domínios do KRG. A única saída para o Curdistão socialista é garantir um impasse militar contra a Turquia e, na sequência da vitória definitiva sobre o ISIS, também derrotar a direita curda em todos os níveis.
Expediente
Coordenadora do curso: Profa. Ms. Gabriela Mezzanotti
Editor da coluna: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha