Não vou me debruçar sobre estatísticas, mas sobre conceitos. Para expressá-los com honestidade intelectual, entendo que o analista sempre deve expor sua posição sobre o tema em pauta. Assim, afirmo que sou a favor do feriado no dia 20 de novembro e defendo que seja nacional; que vejo o Brasil como um país de estrutura racista, onde a dominação racial é mascarada pela estrutura desigual; que este país só reencontrará a si mesmo quando assumir com todas as letras o fardo da escravidão; que a política de cotas é um paliativo, mas como tal é necessária; e que a história dos afro-descendentes deve ser matéria obrigatória em todos os currículos escolares.
Boa parte da chiadeira contra a política de cotas parte do princípio de que a medida é geradora de ódio. Eis a desinformação somada ao preconceito mais arraigado. Ideologia é isso. Quando se nega com veemência um tema central da construção nacional, se nega a possibilidade de mudar o destino coletivo. A chamada questão racial foi deixada de lado por anos a fio. Se hoje temos feriados municipais em nome da consciência negra, isso se deve a uma geração de ativistas negros que começou a se organizar ainda durante o AI-5, na primeira metade da década de ’70. No campo das idéias e da identidade coletiva, é uma árdua peleia travada até hoje.
É preciso compreender que a república brasileira, nascida nas Casas Grandes dos cafezais, tapou a vergonha do escravagismo com o mito da “democracia racial”. Junto deste veio outro mito, criado pela historiografia marxista e seu determinismo econômico. Afirmam os “clássicos” que a opção pela mão de obra imigrante foi devido às modernas relações de capital e trabalho. Empregando assalariados europeus seria modernizada a economia local, gerando mercado consumidor para os produtos ingleses. Isto que não passa de meia verdade, gerando a miopia que causa estranheza a respeito da luta pela igualdade racial.
O desemprego estrutural nasce junto da república dos cafeicultores. Com a lei do crime de vadiagem, o novo Estado podia aplicar a repressão sistemática sobre uma população marginalizada. Nunca é demais lembrar que a libertação dos afro-brasileiros não foi acompanhada de nenhuma reparação econômica. Nos Estados Unidos, após o fim da Guerra Civil, ao menos prometeram 40 acres e uma mula para cada homem negro adulto poder se emancipar economicamente. Prometeram, e não cumpriram, porque tinham de prestar contas às tropas formadas de homens negros e que lutaram pela União contra os estados confederados. No Brasil, as elites nacionais sabem operar de uma forma institucional mais sutil.
Temos duas histórias, uma social, com níveis altíssimos de violência. E outra política, onde o arranjo de bastidores quase sempre se sobressai. Assim foi no retorno das Cortes do Porto e o acerto para a independência sob o reinado da família real portuguesa. O mesmo ocorreu na libertação dos escravos. Após mais de 350 anos de lutas quilombolas, o mito construído foi o decreto da Princesa Isabel no dia 13 de maio de 1888. Um século após a assinatura da Lei Áurea, a construção histórica cai por terra. Assim como ocorrera no dia 21 de abril de 2000, o país não aceitou mais a versão única da história, contestando nas ruas o que seria um momento de consagração oficial.
É preciso compreender que o feriado de 20 de novembro surge como resposta étnica e social ao mito da democracia racial. Por mais duro que seja o país tem de compreender como foi sua colonização para poder superar as conseqüências. O Brasil de 119 anos atrás tinha como regra legal a escravidão dos homens e mulheres negros. Para “corrigir” uma relação de trabalho e obediência, a educação era feita atando um ser humano a um tronco e dando-lhe chibatadas. Esconder a dor não vai fazer a ferida cicatrizar mais rápido, muito pelo contrário.
Não se trata aqui de defender a racialização da política, mas a compreensão política das relações raciais no Brasil atual. Enquanto as prisões estão apinhadas de gente, temos a capacidade de criar cadeia especial para quem tem curso superior e garantimos imunidade parlamentar para crimes comuns. Nosso país funciona de forma racista em seu cotidiano e para mudar isso é necessário ir ao encontro da memória ancestral. O projeto social dos quilombos, em especial o dos Palmares, era universalista, promovendo a boa convivência dentro da diversidade. Este é um dos motivos do feriado de 20 de novembro ser tão importante.
Artigo originalmente publicado no blog de Ricardo Noblat